Por Nelson Rubens Kunze*—

O governo do estado de Minas Gerais decretou a morte da Filarmônica de Minas Gerais. A orquestra, paradigma brasileiro tanto do ponto de vista artístico como de gestão, deixará de ser o que conhecemos. 

Em uma ação política inacreditável, o governo põe fim a um projeto sinfônico moderno, aberto, plural e democrático, que, além de sua função precípua de ser difusor do grande patrimônio histórico (não custa lembrar, esse patrimônio é uma das mais significativas criações do gênio humano), desenvolve programas para formação de novas plateias, academia de ensino, fomento a novas composições, concertos ao ar livre, turnês pelo estado, resgate do repertório brasileiro, música de câmara e muito mais. A Filarmônica e seu maestro Fábio Mechetti produziram álbuns distribuídos pelo selo Naxos e elogiados por alguns dos mais rigorosos críticos do mundo (clique aqui para conhecer, por exemplo, as resenhas internacionais dedicadas ao CD com obras de Nepomuceno). Por seu trabalho, a Filarmônica de Minas Gerais conquistou aclamação e repercussão internacional. 

Quando li sobre a gestão compartilhada do Acordo de cooperação técnica assinado pela Codemig e pelo Sesi Minas pensei, na minha ingenuidade, que fosse uma gestão compartilhada com a Filarmônica de Minas Gerais. Ledo engano! Lendo o documento agora, vejo o óbvio: o compartilhamento é entre a Codemig, empresa estatal proprietária do espaço, e o Sesi Minas, e exclui a Filarmônica de Minas Gerais de qualquer participação.

No Acordo em si, a Filarmônica é citada uma vez, para registrar que existe um contrato de gestão do Instituto Cultural Filarmônica com a Secretaria da Cultura (que expira em 31 de dezembro de 2024) e um termo de permissão de uso assinado com a Codemig, que vai até o dia 31 de julho de 2024. A Filarmônica aparece mais três vezes no Plano de trabalho integrante do Acordo, onde estão estabelecidos os cronogramas e prazos da nova cooperação. Ali lemos que a Filarmônica deve apresentar a “definição da agenda de utilização de 2025” até 30 de maio de 2024, e que a “desmobilização dos contratos de serviço da Filarmônica” e a “Desocupação de todos os espaços pela Filarmônica” deve ocorrer até o próximo dia 31 de julho, que é quando se encerra o termo de permissão de uso que a orquestra assinou com a Codemig. Sim, a Filarmônica deve desocupar a sua sede até o próximo dia 31 de julho! Ao subtrair da Filarmônica a sua sede, o governo de Minas Gerais escancara a sua intenção de acabar com um dos mais bem-sucedidos projetos culturais de nossa geração. 

Tenho grande simpatia pelo Sistema S, que congrega as organizações paraestatais Sesc, Senai, Senac e Sesi. Em São Paulo, sabemos do papel crucial e estruturante que o Sesc representa para a Cultura. Não conheço especificamente a ação do Sesi em Minas Gerais, mas acredito que deva ter relevância e impacto social. O fato de a entidade manter uma orquestra de câmara há muitos ano, já é bom sinal.

Ao celebrar o novo contrato de cooperação para a gestão da Sala Minas Gerais criando uma disputa entre o Sesi Minas e a Filarmônica, o governo de estado promove um verdadeiro “canibalismo cultural”. De forma ardilosa, o governo se utiliza de uma entidade de importante ação cultural de escopo geral para atropelar um projeto voltado à música clássica. Ao estabelecer uma disputa entre Sesi Minas e Filarmônica, o governo espera adesão de apoio popular contra uma atividade que julga, por ignorância e preconceito, elitista e conservadora. 

É mentirosa a fala do presidente da Fiemg – Federação das Indústrias do estado de Minas Gerais, que mantém o Sesi, quando diz que a sala é “subutilizada”, com apenas “três horas de espetáculo por semana”, o que impede o prédio de “estar vivo, ocupado, borbulhando”. Não são três horas por semana que a Sala Minas Gerais é ocupada pela Filarmônica, são 270 dias ao ano, como a orquestra bem respondeu. E o prédio está, sim!, vivo, ocupado e borbulhando! 

Portanto, pelo menos em relação à Sala Minas Gerais, não cabe o que o Acordo afirma, de que “esses equipamentos têm sido subutilizados, de modo que se percebeu a necessidade de ampliar e diversificar o uso dos espaços compreendidos pela Sala Minas Gerais, estacionamento e Mineiraria”.

Mas o governo joga a pá de cal sobre a música clássica quando afirma, no Acordo, que entre seus objetivos específicos está a “realização de eventos e ações diversas voltadas para a exposição e a valorização da cultura mineira, com ênfase nos segmentos artístico e culinário, utilizando os espaços e recursos disponibilizados pela Sala Minas Gerais e pela Mineiraria”. Ou então, “Divulgação do equipamento como um local multimodal apto a receber eventos de diversas naturezas”.

O que são eventos e ações diversas voltadas para a exposição e a valorização da cultura mineira? O que quer dizer local multimodal apto a receber eventos de diversas naturezas? Não é possível que alguém que conheça a Sala Minas Gerais não reconheça que esse espaço tenha sido pensado e construído para a música de concerto, que a vocação dele seja a música clássica. É tão óbvio quanto quadra de tênis não servir para jogo de basquete!

Alterar ou desqualificar a vocação da Sala Minas Gerais – que por meio da Filarmônica de Minas Gerais tem levado ao mundo a imagem de um estado comprometido com a cultura universal e com a excelência artística –, é um equívoco do governo do estado, da Codemig e do Sesi Minas, que esperamos seja reavaliado. 

Do jeito que está, o Acordo firmado entre a Codemig e o Sesi Minas, avalizado pelo governo do estado de Minas Gerais, significa a destruição de um dos mais relevantes e valorosos projetos culturais do Brasil!

[Matéria editada em 08/04, às 23h30, para a seguinte correção: diferentemente do que estava publicado, quem afirmou que a Sala Minas Gerais é “subutilizada” o que a impede o prédio de “estar vivo, ocupado, borbulhando” foi o presidente da Fiemg, e não o presidente da Codemig.] 

*Artigo publicado originalmente no site Concerto.


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