Os setores democráticos e progressistas, vitoriosos no combate à extrema direita – especialmente ao sufragarem Lula-Alckmin em 2022, garantirem a posse dos eleitos e, logo depois, unificarem-se para vencer a intentona golpista em janeiro –, vêm apresentando sinais significativos de fragmentação interna. Todavia, antes mesmo de abordar o assunto, é adequado rememorar o passado recente, sobretudo quando as condições que o geraram persistem ainda no presente. No caso, mais que na ocorrência de negações peremptórias e integrais, a percepção nítida sobre o velho favorece a elucidação do novo.

As lutas entre as classes até a recessão dos anos 2014-2015, com as suas derivações nas sociedades política e civil, mantinham, como cerne da linha orientadora, o tema da unidade popular, que movia para o período político então vigente as fronteiras que, no plano teórico geral, desenham o bloco histórico. Entrementes, a deposição da presidente Rousseff, o auge da Operação Lava Jato e a expansão do séquito bolsonariano em apenas dois anos transformado em alternativa de governo, exigiram que o proletariado e os seus aliados fizessem uma flexão tática. O propósito era impedir a escalada protofascista.

O quadro estava claro para os setores revolucionários mais lúcidos, mas o apoio ardente ou a leniência da burguesia, com destaque à fração reacionária do capital monopolista-financeiro, agravados pelo sectarismo e a confusão dominantes no interior de partidos e agrupamentos à esquerda, resultaram na gotícula d’água que permitiu a exígua maioria do postulante ultraconservador e a sua trágica estadia por quatro anos no Planalto. Felizmente, semelhante situação foi barrada pela prevalência do entendimento amplo, que se afirmou a despeito e contra os particularismos, as estreitezas e os fogos amigos.

Até bem pouco tempo, a situação caminhava bem, apesar das nuvens cinzentas que pairavam sobre o desempenho do primeiro mandatário e de sua equipe ministerial. Notadamente, faltava um rumo definido, mormente a frente orgânica e permanente que sustentasse a governança e a plataforma que descortinasse uma finalidade à Nação. Era preciso expressar os compromissos e acordos não apenas celebrados na campanha, mas também capazes de responder imediatamente às urgências e aos interesses populares, inclusive, de modo inequívoco, aos anseios e reclamos das grandes maiorias nacionais.

Em face do varejo empirista, em parte imposto pela composição conservadora e pela hegemonia pragmática no Congresso, mas igualmente pelo método cristalizado nos acordos e iniciativas caso a caso, foram escancarando-se as brechas nas quais vão adentrando as iniciativas da oposição vale-tudo e sistemática. Para qualquer observador atento, a mudança no discurso dos responsáveis pela intentona em 2023 e a manifestação em 25/2/2024 – encaminhada pelo seu núcleo dirigente – conseguiu certo êxito, principalmente resgatar os ânimos e as iniciativas perdidos. Mas não foi um simples triunfo da vontade.

Além das condições objetivas, entre as quais a forte bancada reacionária, o mote farsesco pró-liberdades soa como se fosse música para ouvidos “libertários”, sobretudo nos conglomerados mais zelosos por direitos sem os deveres ou limites correspondentes, hostis a regras, como as corporações de comunicação privada, e não só Musk. A recente adesão de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo à campanha do X e de seus acólitos internos contra o STF, centrada no ministro Moraes, lembra seus antigos coros em louvor do regime ditatorial-militar e dos absurdos efetivados na desditosa República de Curitiba.

Só que, agora, depois de revigorar o polo da regressão, conter a Justiça, incitar os parlamentos e impulsionar o início da crise institucional – o chamado conflito entre os “poderes” –, jogando mais água no moinho dos políticos mais oportunistas e do fascismo com fantasia de anarquismo, a mídia ultraliberal contribui para quebrantar o Supremo e o Planalto, com sérias e talvez irreversíveis consequências para o regime democrático. A desregulação das plataformas digitais, com a primazia integral dos robôs e algoritmos designados por magnatas, seria o dobre de finados para enterro das verdadeiras liberdades.

Uma pergunta não se cala: por que os defensores da permissividade silenciam quando jornalistas são reprimidos em países que celebram cotidianamente como democráticos e como impolutos “modelos” para “o caso do Brasil”, conforme particularizado pelo Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes norte-americana? Por que nada falam sobre Assange? Sobre a França, onde Ariene Lavrilleux teve a casa revistada e foi detida para interrogatórios, por agentes ligados à Direção-Geral de Segurança Interna, ou a Finlândia, onde Tuomo Pietilainen acabou condenado ao divulgar informações públicas?

Na Ucrânia, Zelensky apresentou – anteriormente à guerra – um PL contra os “Meios de Comunicação Social” e a “desinformação russa”. O Reino Unido, a Holanda, a Itália e a Polônia fazem coerções judiciais. Como pôde Greenwald ver a censura neste país “bem mais” extrema “do que em qualquer outro”? Mas Shellenberger, autor no Twitter Files Brazil, pôs a cereja no bolo, ao “defender os direitos dos nazistas, racistas e fascistas de falar”, como se fossem tertúlias e não ações delituosas. Critério tão puro e absoluto valeria para propaganda favorável ao feminicídio, à pedofilia e ao crime organizado?

Tornou-se atual rechaçar os subterfúgios da retrocessão e retomar o caminho da unidade. As sereias cujo canto mira 1964 como início de um tempo áureo, agora posando como vítimas do suposto autoritarismo, jamais poderiam encontrar guarida entre os editorialistas relacionados a publicações sérias. Concomitantemente, os partidos e políticos mais conscientes, mesmo com diferenças de pensamento e procedimento, precisam dialogar e forjar um novo consenso, contra o plano dos conspiradores que pescam em águas turvas. Por fim, o bloco popular tem que recompor os esforços de vigilância e mobilização.

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