Por Alysson Oliveira*—
Não foram poucas vezes que o audiovisual se voltou para Marx e seu pensamento a fim de embasar obras de gêneros diversos, mesmo que de maneira inconsciente, ou mesmo animar todo um projeto cinematográfico. Nesta lista, indicamos algumas produções e realizadores que deram expressão fílmica à vida e ideias de Marx, demonstrando diferentes facetas de sua obra e personalidade.
O jovem Karl Marx (2017), de Raoul Peck
Para começar esta lista de indicações, nada melhor do que partir dos primórdios de sua formação e produção teórica — as experiências e encontros com filósofos e políticos determinantes para que se tornasse o grande crítico do capitalismo, incontornável ainda hoje. Disponível no Prime Video, O jovem Karl Marx, dirigido pelo haitiano Raoul Peck (ganhador do Oscar de melhor documentário por Eu não sou seu negro), acompanha os anos de formação do autor, interpretado por August Diehl, passando por seu casamento com Jenny von Westphalen (Vicky Krieps) e o início da amizade com Friedrich Engels (Stefan Konarske).
Um dos grandes méritos do longa é sua capacidade de combinar de forma efetiva o melodrama e a produção intelectual do protagonista, discutindo seus pensamentos de forma bastante acessível mesmo aos não-iniciados em sua obra. Exemplar, nesse sentido, é a cena em que a crítica a Proudon, presente em Miséria da filosofia, é ficcionalizada como um embate público entre os dois autores.
Relembre o artigo de Michael Heinrich, autor da biografia Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna, publicado no Blog da Boitempo sobre os mitos e verdades do filme.
Miséria da filosofia, de Karl Marx
Primeiro livro que Marx publicou sozinho e o único redigido por ele em francês, foi escrito entre janeiro e abril de 1847, em Bruxelas, e saiu em edição custeada pelo autor, com tiragem de oitocentos exemplares, em princípios de julho. A obra de Proudhon que é objeto da crítica de Marx, Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère [Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria], fora publicada em Paris em outubro do ano anterior e, semanas depois, um exemplar chegou-lhe às mãos, enviado por Engels. Desde seu lançamento, Miséria da filosofia tem provocado incômodo por seu implacável tom polêmico, pelo ferino estilo que não poupa diatribes contra um autor que não só era respeitado intelectualmente (por justas razões) como tinha grande influência entre os socialistas franceses.
A crítica marxiana, à qual Proudhon nunca respondeu publicamente (embora tenha feito registros amargos e indignados em seus diários e em sua correspondência), pôs fim a uma relação iniciada em Paris em 1844, quando Marx foi recebido por Proudhon em seu apartamento. Os encontros se repetiram até 1845, quando o governo francês obrigou Marx a abandonar o país. Publicada a Miséria da filosofia, os dois jamais voltaram a se falar. A edição traz um novo Prefácio de José Paulo Netto, que também assina a tradução revista da obra, e texto de orelha do professor João Antonio de Paula, da UFMG.
Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna, de Michael Heinrich
Escrita pelo cientista político alemão Michael Heinrich, um dos maiores especialistas na obra de Karl Marx, esta biografia em três volumes promete ser o trabalho definitivo para compreender, de forma integrada, a vida e a obra do filósofo alemão. Com a missão de completar as insuficiências comuns nas outras biografias disponíveis e, inclusive, corrigir seus erros factuais, Michael Heinrich também se dispôs a escrever com franqueza, escapando das armadilhas que levaram muitos autores anteriores a tratar o biografado de forma a fundamentar uma imagem já existente, deixando muitas vezes a impressão de que a intenção não era investigar Karl Marx, mas meramente reafirmar o que se conhecia dele. Para isso, Heinrich diferencia com exatidão o que é comprovado por fontes do que é apenas uma hipótese, ora mais, ora menos plausível. Neste primeiro volume, o autor investiga os anos iniciais de Marx, de sua infância aos anos de formação intelectual, em que doutorou-se na Universidade de Jena.
A teoria da revolução no jovem Marx, de Michael Löwy
Estudo da evolução política e filosófica do jovem Marx, revisitando a teoria marxiana da revolução como autoemancipação dos explorados. Uma abordagem que desafia divisões e destaca a influência das lutas operárias em sua filosofia. Atual e essencial para compreender a mensagem marxiana original.
O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein
Obviamente, uma lista sobre filmes inspirada por Marx não poderia deixar de lado O encouraçado Potemkin, dirigido pelo soviético Sergei Eisenstein. Para além de figurar um episódio marcante da história política russa — o motim de marinheiros ocorrido na costa de Odessa em junho de 1905, que na percepção de Lênin não apenas reforçava as avaliações que fizera no panfleto Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, como induzia na prática uma mudança de posição necessária no interior do movimento revolucionário russo —, trata-se de um longa que, notoriamente, revolucionou a história do cinema por diversos motivos, mas, em especial, em razão de sua montagem. Conhecida como paralela, a montagem de Eisenstein tem como base o pensamento dialético marxista. Nas palavras do próprio diretor:
“Um mesmo princípio atravessa não apenas o conjunto e cada um dos seus elementos, mas também cada setor chamado a participar da criação do todo. […] E é nesse caso, somente, que se poderá falar de unidade orgânica da obra, uma vez que entendemos organismo, aqui, como Engels o definiu na Dialética da natureza, isto é, como ‘a unidade superior’ […] De uma célula orgânica do encouraçado ao todo orgânico do mesmo encouraçado; de uma célula orgânica da frota ao todo orgânico da mesma frota: assim desenvolve-se, crescendo no tema, o sentimento de fraternidade revolucionária. E encontramos isso no roteiro da obra que tem como tema a fraternidade dos trabalhadores e a revolução.”1
Alternando trechos de cenas distintas, o longa cria uma tensão sem igual, e transforma radicalmente as possibilidades formais do cinema, que nunca mais foi o mesmo desde então.
Uma boa cópia do filme, com legendas em português, está disponível gratuitamente no YouTube.
Dialética da natureza, de Friedrich Engels
Durante o século XIX, o progresso científico e tecnológico trouxe importantes conquistas no campo das ciências naturais: o nascimento da química moderna, a teoria evolutiva de Darwin, a descoberta por Pasteur e outros do mundo microbiano. Nesse contexto, Engels procura oferecer de uma só vez uma concepção materialista da natureza elaborada ao marxismo, e um modelo filosófico a partir do qual as ciências possam se guiar.
Obra póstuma e inacabada, a influência da Dialética da natureza pode ser notada desde sua primeira publicação, seja nos escritos de figuras proeminentes do movimento operário e do marxismo soviético, seja em controvérsias decisivas do chamado marxismo ocidental. Além disso, vem sendo amplamente recuperada pela ecologia marxista contemporânea. Portanto, é incontornável não apenas para quem busca entender a história de formação do marxismo, mas também para quem deseja conhecer os caminhos abertos por ele na atualidade.
Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, de Vladímir I. Lênin
Escrita em 1905, é uma das primeiras e mais importantes obras políticas de Lênin. O livro aponta questões importantes para os movimentos daquele ano, tido por muitos como marco inicial da agitação política russa, e aponta tarefas da classe operária para os anos subsequentes, que culminariam na Revolução de Outubro de 1917.
O cinema de Jean-Luc Godard
O grande cineasta da Nouvelle Vague, Jean-Luc Godard, se identificou como marxista durante boa parte de sua carreira e produziu diversas obras sob a influência do autor alemão, explorando suas ideias em planos formais e temáticos. Isso se dá sobretudo a partir de meados da década de 1960, especialmente em trabalhos como A chinesa (1967). Na trama, adaptação livre do romance Os demônios, de Dostoiévski, um grupo de jovens maoístas dividem um apartamento alugado enquanto planejam mudar o mundo.
Quando explodiram os protestos de Maio de 1968, Godard adotou uma atitude artística mais radical em seus filmes, o que culminaria também na criação do coletivo Dziga Vertov. Fundado por ele e pelo cineasta Jean-Pierre Gorin, o destaque da produção coletiva fica por conta de Vento do Leste (1970), cuja direção é creditada ao grupo todo. O longa aborda posições anticapitalistas e, principalmente, questões sobre a ideologia do cinema.
Infelizmente, alguns de seus principais filmes dessa fase — como o já mencionado A chinesa, Week-end à francesa (1967) e Tudo vai bem (1972) —, não estão disponíveis para streaming no Brasil, embora possam ser encontrados em DVD. No entanto, na plataforma Mubi há duas obras: o longa-metragem Masculino-Feminino (1966) e o curta intitulado Trailer of That Film That Will Never Exist: ‘Phony Wars’, lançado postumamente. Ambos dão uma boa ideia de sua filmografia como um todo, e da presença de Marx em sua obra no geral.
Na revista Margem Esquerda #30, Maria Lygia Quartim de Moraes faz um vivo retrato dos protestos que marcaram 1968 pelo mundo, passados cinquenta anos.
Eles vivem (1988), de John Carpenter
Pode parecer improvável, mas há, em diversas camadas, influências marxistas no brilhante terror Eles vivem, de John Carpenter (disponível para aluguel no Prime Video e na Apple TV). Um clássico anticapitalista, o filme aborda uma sociedade dominada por alienígenas disfarçados de humanos, que ocupam as posições de poder enquanto as pessoas comuns são induzidas a consumir e obedecer desenfreadamente. Mas o uso de um par especial de óculos escuros revela a verdadeira face dos dominadores e mostra o que há por trás das aparências — é como se o artefato permitisse que o véu da ideologia fosse retirado do mundo.
Ao mesmo tempo cômico e trágico, o longa foi lançado em 1988 e traça um retrato ácido dos EUA naquela década, sob o governo de Ronald Reagan. E apesar do tempo transcorrido, segue tendo muito a dizer sobre o mundo de hoje, marcado em especial pelas aparências nas redes sociais que, como a classe dominante alienígena, parecem apenas dizer: consumam e obedeçam. Em uma entrevista em 2017, Carpenter disse que “os anos de 1980 nunca acabaram e estão conosco ainda hoje. Passamos por essa recessão, mas simplesmente não saímos dela. E as coisas não vão bem. Elas vão para os ricos, mas não para todos os outros. Então, sim, devemos ter medo… até que façamos uma mudança séria”.
A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels
Edição integral e esmerada de um marco na filosofia. Esta versão traduzida diretamente do original alemão e baseada na MEGA-2 revela a crítica afiada dos autores à ideologia dominante e a importância da práxis na transformação do mundo e do ser humano. Um clássico, agora em português.
Ideologia: uma introdução, de Marilena Chauí
A ideologia nos permite tomar o falso por verdadeiro e o injusto por justo. Mas de que maneira essa miragem se manifesta? Pela política, pela cultura, pela educação, pela tecnologia? Quais são seus mecanismos e quais os impactos sociais e econômicos desse processo? De forma introdutória, mas sem perder a contundência de suas reflexões, a filósofa Marilena Chaui esclarece que a ideologia não é apenas um conjunto encadeado de ideias, como sugere o senso comum. Trata-se, na verdade, de um sistema histórico, social e político que não apenas estrutura a percepção da realidade, mas também a oculta, com o propósito de perpetuar a desigualdade social e a dominação política.
O poder da ideologia, de István Mészáros
Um clássico da teoria social contemporânea, desafiando o pensamento acadêmico e expondo o papel da ideologia na sociedade. O pensador marxista combina coragem intelectual e uma base sólida de conhecimento, destacando a importância de uma ideologia de emancipação na luta contra o capitalismo.
Sou de Virgem (2023), de Boots Riley
Por fim, a série Sou de Virgem (também do Prime Video), do cineasta estadunidense Boots Riley, é um exemplo contemporâneo de como o pensamento de Marx forma e se manifesta no audiovisual. A história acompanha o amadurecimento de Cootie (Jharrel Jerome), um jovem negro de 4 metros de altura. Nascido em Oakland, Califórnia, ele sai ao mundo depois de passar anos escondido em casa sob a proteção dos pais.
Criado num mundo fechado, preparado para ser um revolucionário, Cootie tenta se enquadrar no capitalismo, mas logo percebe que é explorado e oprimido. Com o despertar da consciência de classe do protagonista, a série levanta uma outra questão antiga: o debate entre marxismo e anarquismo. Ao passo que sua amiga Jones (Kara Young) é uma jovem ativista que se identifica com o comunismo, Cootie se torna um anarquista. Dessa forma, a série retrata a experiência de jovens da classe operária dos EUA hoje, cujo aprendizado virá apenas pela luta social.
Do socialismo utópico ao socialismo científico, de Friedrich Engels
Publicado originalmente em 1880, Do socialismo utópico ao socialismo científico é uma das obras fundamentais do marxismo e um dos textos mais acessíveis de Friedrich Engels. Escrito a partir de trechos de sua obra Anti-Dühring, o livro apresenta, de forma clara e contundente, a transição do pensamento socialista do século XIX das concepções idealistas e utópicas para uma abordagem materialista e científica da transformação social.
Notas:
EISENSTEIN, Sergei. Como se faz um filme, in: Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 61-64. ↩︎
***
*Alysson Oliveira é jornalista e crítico de cinema no site Cineweb, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, e escreve sobre livros na revista Carta Capital. Tem Mestrado e Doutorado em Letras, pela FFLCH-USP, nos quais estudou Cormac McCarthy e Ursula K. LeGuin, respectivamente. Realiza pesquisa de pós-doutorado, na mesma instituição, sobre a relação entre a literatura contemporânea dos EUA e o neoliberalismo, em autores como Don DeLillo, Rachel Kushner e Ben Lerner.
Matéria publicada originalmente no site da Boitempo.
Os artigos assinados não expressam, necessariamente, a opinião de Vereda Popular, estando sob a responsabilidade integral dos autores.