Continua, sem perspectivas de solução em prazo breve, o conflito mais dramático e perigoso do século XXI. As hostilidades se desenvolvem no campo militar, mas ocorrem também nas esferas econômica, diplomática e até mesmo, com densidade inaudita, na mídia monopolista-financeira, que joga uma função propagandística fundamental na contenda hegemônica, desconstituindo as razões dos seus inimigos e construindo as versões favoráveis ao campo imperialista. Sob as rédeas norte-americanas, promove-se russofobia, insufla-se conflito, bancam-se gastos e se pesca em águas turvas. Nesse quadro, a batalha percorre também o discurso da Otan, articulando a palavra, o silêncio e o sentido.

O propalado “abismo étnico” no território conflagrado exprime a luta real de classes. No entanto, a língua ucraniana é menos singular, em face da russa, que a gaélica do inglês ou a basca e catalã da espanhola. O russo, majoritário no centro-leste, mesmo em Kiev, revela-se uma derivação do antigo eslavônico, tão recente quanto a bifurcação do grupo linguístico galaico-português. O idioma ucraniano vem de um dialeto russo da fase arcaica, fixado na bacia do Rio Dniepre e derramada para oeste. Apesar de interações fonéticas e vocabulares com falas servio-croatas e polonesas, compartilham os mesmos alfabeto cirílico e morfologia, sendo as diferenças insuficientes para criar o cisma nacional.

O grande silêncio é sobre o golpismo. Em 2014 se deu contra o Governo de Victor Yanukovych, eleito em 2010. A maquiagem recebeu a glamorosa nomenclatura Euromaidan, como se tudo se resumisse à suposta vocação da Ucrânia pelo alinhamento à Otan e à UE. Foi o segundo putsch, vez que a chamada e não menos enganadora “revolução laranja”, em 2004, já bloqueara uma primeira posse de Yanukovych, eleito no pleito por fim anulado e substituído pelo segundo, condicionado pela intromissão externa e o clima de iminente guerra civil. No bigolpe – com uma posse obstruída e uma deposição em apenas 10 anos – revela-se uma conduta contumaz da extrema-direita interna e do imperialismo.

Outro mutismo é sobre Stepan Bandera, declarado herói nacional pela extrema-direita. Preso em 1941 acabou liberado pelos alemães, visando a recrutar os militares colaboracionistas, que participaram no extermínio de quase 44 mil judeus e 150 mil ucranianos soviéticos. Após a guerra foi protegido por Washington na conspiração contra o “perigo vermelho”. Agora sua figura reemerge: de 2007 a 2009, criaram-se prêmios, estátuas e selos postais em sua homenagem; a “revolução laranja” e o euromaidan ostentaram suas fotos. Em 2014, os batalhões banderistas foram incorporados à Polícia e ao Exército, para perseguirem a oposição proscrita, inclusive o Partido Comunista e a resistência no Leste.

A expressão mais ladina se refere aos chamados “rebeldes pró-russos”: de uma só cajadada, esconde a situação revolucionária irrompida em 2014 – precipitada pelo golpe com apoio dos nazifascistas e dos USA – e as insurreições de massas resultantes, além da sua tríplice trajetória: na Crimeia, com maior presença do nacionalismo-regional, predominou plebiscitariamente o retorno à Federação Russa; em Donbass, com a relevante presença das forças favoráveis ao socialismo, consolidaram-se as repúblicas populares de Luhansk e Donetsk; nas demais oblasts orientais, os antigolpistas recuaram para melhor resistir aos ataques ucranianos, encabeçados pelos violentos batalhões xenofóbicos.

Tal configuração desmascara, por si, as mentiras da Casa Branca, que recorre a duas outras palavras para perverter a “operação especial”: “guerra” e “invasão”. A contenda bélica não foi deflagrada pela Federação Russa e nem declarada pelas partes. Aliás, nem houve ruptura de relações diplomáticas. Trata-se de um conflito militar em forma de guerra civil, que tinha oito anos e descava para massacres, seja em Odessa ou nas jovens nações do nordeste, atingindo as populações vizinhas, que já contam 15 mil cadáveres, sendo 90% civis. Eis como é falso falar em invasão de “um” país: a tropa russa opera em um território trinacional, por motivo de um convite legal e doutrinariamente justificável.

Sobram dois conceitos: a “desmilitarização” e a “desnazificação”. A Otan, na reunificação alemã de 1991, concordou em limitar-se à Europa ocidental, mas descumpriu e manteve a “guerra fria”. Concomitantemente, virou “segredo de polichinelo” que a Ucrânia rompera o Memorando de Budapeste e os Protocolos de Minsk, tentando atomizar-se, ingressar na Otan e promover ataques maciços à Donbass. Para barrar tal processo, é urgente a “desmilitarização”, pois a inércia resultaria na III Guerra Mundial. Quanto à “desnazificação”, trata-se de legalizar partidos na oposição, proibir agremiações fascistas e banir formações ultranacionalistas que agem por conta própria na estrutura policial-militar.

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