Por Gilberto Maringoni e Paulo Alves Junior *—
BRANDÃO REGO, Octávio (brasileiro; Viçosa/AL, 1896 – Rio de Janeiro/RJ, 1980)
1 – Vida e práxis política
Octávio Brandão nasceu e passou seus primeiros anos em Viçosa, cidade do interior de Alagoas, núcleo de uma região produtora de açúcar dominada por oligarquias agrárias e com pouco desenvolvimento social. Segundo suas memórias, sua formação se deu no seio de uma “pequena-burguesia urbana empobrecida”, que embora adepta de ideias progressistas, era vítima do poder de grandes proprietários rurais “semifeudais”.
A morte da mãe, quando Brandão tinha apenas quatro anos, o afetou muito. A partir daí viveria com um tio, em uma pequena casa tipicamente cabocla, no engenho do Barro Branco, regressando à Viçosa só quando seu pai voltou a se casar. Frequentou a Escola Silva Jardim, no ensino fundamental, na qual teria um primeiro contato com ideias evolucionistas, por meio de um professor.
Em 1911, quando já morava com outro tio em Maceió – estando matriculado no Colégio Marista –, ficou órfão também de seu pai, homem de ideias republicanas e progressistas. Apesar de criado em um meio conservador católico, rompeu com a religião aos 16 anos, influenciado pela educação paterna, que lhe incutira o questionamento à hipocrisia social; este foi um marco emocional e intelectual dessa fase de sua vida na capital alagoana. Além disto, a percepção da situação de miséria da maior parte da população e o impacto das notícias da Revolta da Chibata (1910) e das greves operárias no Sudeste atraíram cada vez mais sua atenção para os graves problemas do país.
Entre 1912 e 1914, residiu na capital pernambucana, onde se diplomou na Escola de Farmácia do Recife (atualmente parte da Universidade Federal de Pernambuco). Logo após a formatura, regressou a Maceió. Ali tomou contato com as principais obras da literatura universal e desenvolveu um agudo interesse científico, o que o fez se voltar para as ciências naturais.
Aos 20 anos, empreendeu uma série de viagens pelo interior de seu estado para conhecer sua formação geológica e riquezas naturais. Baseado nestas pesquisas, em 1916 começou a escrever Canais e lagoas (publicado em 1919) – livro que descreve o complexo hídrico Mundaú-Manguaba e pode ser visto como uma das primeiras pesquisas ecológicas brasileiras. Sobre o tema, pronunciou também diversas conferências em Maceió, mostrando evidências da existência de petróleo na região e desde cedo observando a importância que poderia ter a prospecção petrolífera para a economia brasileira.
No ano de 1918, começou a escrever para imprensa anarquista – colaborando com o Diário de Pernambuco e tendo fundado o jornal O Povo. À época, vinculou-se também a movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, defendendo a jornada de 8 horas e a reforma agrária.
Foi preso pela primeira vez em 1919. Depois de libertado, passou a ser perseguido, o que o fez partir, no mesmo ano, para o Rio de Janeiro – onde residiria até 1931, quando foi forçado a deixar o país.
Na capital da República, travou contato com o mundo intelectual e político, em especial com Astrojildo Pereira (1890-1965) – que viria a ser um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), em março de 1922. Ali, o alagoano se mostraria impressionado com as mobilizações operárias, tendo se aprofundado nos estudos sobre a Revolução Russa. Passou então a escrever nos jornais anarquistas A Plebe, A Vanguarda e na Revista do Brasil (de São Paulo, dirigida por Monteiro Lobato), colaborando ainda com o Spartacus e o Imparcial (Rio de Janeiro), além da revista alemã Ekenntnis und Befreiung [Reconhecimento e Liberação].
Com tais atividades, teve acesso à literatura marxista que chegava ao país – e vem desses tempos sua desilusão com o anarquismo e sua rápida adesão às ideias de Marx e Engels. Em 1920, passou a integrar o integrar o Grupo Comunista Brasileiro Zumbi. Casou-se no ano seguinte com a poetisa e sua companheira de lutas, Laura Fonseca da Silva.
Embora não seja um dos fundadores do PCB, Octávio Brandão acompanhou seu desenvolvimento desde o início. Aderiu ao Partido, a convite de Astrojildo, em outubro de 1922. Logo se tornaria dirigente (membro da Comissão Central Executiva) e começaria a estudar metodicamente os clássicos marxistas. No período, adquiriu uma pequena farmácia, estabelecimento que viria a ser uma espécie de escritório e ponto de encontro de militantes populares. Suas pesquisas sobre a Revolução Bolchevique de Outubro resultaram no livro Rússia proletária, escrito neste mesmo ano.
Em 1923, já integrando o Comitê Central do Partido, empreendeu uma ousada tarefa: traduzir para o português o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels – a partir da edição francesa revisada pelo próprio Engels.
No mês de julho do ano seguinte, explodiu em São Paulo uma revolução que tinha como objetivo derrubar o governo do presidente Arthur Bernardes (1924-28) – que manteve um Estado de sítio permanente ao longo de todo o mandato. Perseguido pela repressão, Octávio Brandão viveria na ilegalidade entre 1924 e 1926, mantendo-se atento aos acontecimentos. Em uma tentativa de dar resposta às questões políticas levantadas pela insurreição, ainda em 1924 redigiu grande parte de sua mais importante obra, Agrarismo e industrialismo – elaborada com colaboração da direção do PCB –, a qual seria complementada e publicada dois anos depois sob o pseudônimo de Fritz Mayer (usado para despistar a polícia).
Em 1925, Brandão foi um dos fundadores e o primeiro editor de A Classe Operária, órgão oficial do PCB. À época, ministrou também cursos de teoria política para grupos de operários, em um paciente trabalho de formação, além de fazer panfletagens e vários discursos em manifestações públicas.
Em 1927, tornou-se editor-chefe do diário A Nação – que difundia as ideias comunistas entre os trabalhadores. No mesmo ano, com Astrojildo Pereira e outros dirigentes e ativistas, fundou o Bloco Operário, fachada legal do Partido (então na clandestinidade) – uma organização legal e de massas, cujo nome, em 1928, passou a ser Bloco Operário e Camponês (BOC). Em poucos meses, mais de 60 comitês do BOC seriam criados pela cidade do Rio de Janeiro; entre eles, o Comitê das Mulheres Trabalhadoras, a primeira entidade de massas feminina e socialista no Brasil.
Nas eleições para a Intendência (Câmara) Municipal do Rio, em outubro de 1928, os dois candidatos do BOC – Octávio Brandão e Minervino de Oliveira – se elegeram. Ambos exerceram seus mandatos de forma combativa e articulada, travando lutas memoráveis contra representantes da elite conservadora. Brandão intensificou assim seu trabalho de formação e de contato com sindicatos de trabalhadores; Minervino, operário marmorista negro, viria a ser o primeiro candidato do Partido à presidência da República (em 1930).
Contudo, com a guinada do PCB à corrente obreirista – posição influenciada pela linha de “classe contra classe” do VI Congresso da III Internacional, em 1928 –, os intelectuais da agremiação passaram a ser marginalizados. Brandão foi então acusado de “direitismo” e “menchevismo”, perdendo seu cargos na direção (juntamente com Astrojildo Pereira).
Em 3 de outubro de 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder, a Intendência Municipal foi fechada, seus membros perderam os mandatos e os dois representantes comunistas foram presos.
Em 18 de junho de 1931, Brandão foi retirado da prisão e deportado para Bremen, na Alemanha (mesmo destino de sua esposa Laura e das três filhas). Dali conseguiu seguir para a União Soviética, onde permaneceria exilado até 1946.
Na URSS, trabalhou na rádio Moscou, produzindo e apresentando programas em língua portuguesa, e atuou junto à direção da III Internacional, até sua dissolução em 1943. Porém, sua família teve uma estada difícil, a começar por enfrentar os rigores do inverno em um apartamento simples, sem calefação, numa capital em que a temperatura no inverno chega a 10º C negativos. Ademais, a partir de 1941, uma década após escapar – em suas palavras – “às balas da polícia no Rio de Janeiro”, teve de sobreviver “às bombas dos aviões nazistas em Moscou”.
Em 1942, na situação precária do exílio, sua esposa Laura morreu de leucemia. Foi um forte abalo em sua vida e nas de suas quatro filhas. No ano seguinte, casou-se com Lúcia, irmã de Luís Carlos Prestes, com quem teria mais duas filhas.
Ao voltar para o Brasil, em 1946, foi reconduzido à Comissão Executiva do Comitê Central do PCB, no cargo de tesoureiro. Um ano depois, durante a curta legalidade do Partido (1945-1948), foi eleito vereador – em pleito no qual os comunistas fizeram a maior bancada, obtendo 18 das 49 cadeiras. Com a cassação da legenda, Brandão perdeu arbitrariamente seu segundo mandato popular.
Octávio Brandão passaria a viver na clandestinidade – até 1958, quando, no governo Juscelino Kubitschek, pôde voltar à vida legal. Em 1956, o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) foi marcado por pesadas denúncias contra Joseph Stálin, feitas pelo então secretário-geral, Nikita Kruschev, o que abalou e dividiu o movimento comunista em todo o mundo. Desiludido com a situação, Octávio Brandão afastou-se paulatinamente do PCB nos anos seguintes.
Ainda que com rarefeita atuação política, mas marcado por décadas de militância, Brandão teve de voltar à clandestinidade a partir do golpe militar de 1964. Viveu então precariamente, reaparecendo na vida legal apenas 15 anos depois, em 1979, já com mais de 80 anos de idade – dos quais 65 dedicados à causa dos trabalhadores. Pouco antes de seu regresso à legalidade, acusou uma “conspiração” em torno de sua vida, obra e luta: “tratam de sepultá-las, como se nunca tivessem existido”.
Octávio Brandão morreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1980, aos 83 anos.
2 – Contribuições ao marxismo
Octávio Brandão, junto com Astrojildo Pereira (1890-1965), formou o núcleo pioneiro do pensamento marxista e do Partido Comunista do Brasil (PCB), a partir da década de 1920. Ambos se forjaram nas sucessivas mobilizações e greves operárias da década anterior e fizeram a transição intelectual e política do anarquismo para o comunismo a partir da influência global da Revolução Russa (1917) e da percepção das insuficiências das direções políticas dos movimentos sociais de então. A vida, obra e luta de Brandão são inseparáveis na sua longa trajetória: exerceu por duas vezes o mandato de vereador na cidade do Rio de Janeiro (e em ambas teve seu mandato cassado), foi preso 17 vezes e viveu exilado na União Soviética por 15 anos. Em suas memórias, definiu-se assim: um “escritor brasileiro”, “índio caboclo do interior do Nordeste”, “patriota e humanista, democrata e revolucionário”, “combatente pela libertação nacional e social do Brasil e da humanidade”, “partidário do socialismo científico de Marx, Engels e Lênin” e “poeta realista, romântico e revolucionário”.O pioneirismo, ousadia e coragem militante de Brandão são frequentemente subestimados e esquecidos; seu marxismo é volta e meia atacado como “antidialético” ou “dogmático”. Tais apreciações, contudo, são simplistas – já que se referem a um desbravador intelectual, formado em um país sem universidades, sem fontes estatísticas e no qual 65% da população era analfabeta (segundo dados do censo de 1920).
Ainda que à época Brandão tivesse pouco acesso à literatura marxista e que quase nenhum dado estatístico sobre o Brasil estivesse disponível, historicamente sua contribuição foi decisiva para a construção do pensamento marxista em nosso país. Autodidata na matéria, escreveu aos 28 anos um livro emblemático: Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classe no Brasil. Trata-se de uma das primeiras tentativas de se fazer uma leitura da realidade brasileira baseada no materialismo histórico – uma obra muito atacada, mas pouco conhecida, apesar de ter exercido forte influência entre os socialistas da primeira metade do século XX.
Trabalho seminal, o livro é uma espécie de esboço de programa partidário. Como o próprio Brandão comenta no memorialístico Combates e batalhas (1978), o texto “ainda incompleto circulou em cópias datilografadas, servindo de subsídio para as teses que Astrojildo Pereira apresentou ao II Congresso do PCB (16 a 18 de maio de 1925)”.
Na obra dos anos 1920, Brandão entende a recém-ocorrida Revolução de 1924, em São Paulo, como um “episódio da luta de classes no setor brasileiro de uma batalha internacional”. A partir daí, busca compreender os principais enfrentamentos globais no período após a I Guerra Mundial, quando o império britânico entrou em seu irreversível declínio.
A análise, apesar de impressionista e precária – dada a falta de informações disponíveis e a própria imaturidade intelectual do autor –, busca fugir do tradicionalismo historicista da época. Segundo Brandão: “A política é fatalmente agrária, política de fazendeiros de café instalados no palácio do Catete”; “existe uma oposição burguesa desorganizada, caótica”; e emenda ponderando que “o atraso político é tamanho que a burguesia industrial ainda não formou seu partido, enquanto o proletariado já conseguiu forjar seu partido desde 1922”. Sua conclusão é a de que “o país está envenenado pelo agrarismo católico, feudal e reacionário”.
A base de seu raciocínio é a dominação externa que vigorava no país: “A época atual caracteriza-se pelo imperialismo”; “imperialismo é a dominação mundial do capitalismo, a substituição da livre concorrência pelo monopólio, a formação de uma oligarquia financeira”, “é a exportação do capital”. Descreve o imperialismo como a dominação de uma “santíssima Trindade”, constituída pela “indústria pesada, pelos bancos e pelas estradas de ferro”. Ou ainda, como: “a união dos políticos com os financistas”; “a união dos políticos com os industriais”; “a internacionalização das relações sociais”; “a divisão do mundo em zonas de influência”; “a luta pelas fontes de matérias primas”; “a luta pelas esferas de aplicação do capital”; “a luta pelos mercados”.
Há nítidas insuficiências teóricas e metodológicas no livro. A própria dialética do autor soa um tanto mecanicista e alguns conceitos emanados em especial de Imperialismo: fase superior do capitalismo (1917), de Lênin, são utilizados sem muitas mediações para o contexto brasileiro. Além disso, a menção a um suposto “agrarismo feudal”, não analisado em profundidade, revela uma transposição mecânica das formações sociais da Europa Ocidental, já bastante estudadas pelos clássicos do marxismo. Mais uma vez, tal conclusão se dava mais por desconhecimento do que por alguma investigação empírica. Esse aspecto da obra lhe valeu ataques pesados dentro da própria esquerda, nas décadas seguintes. Mesmo assim, sua conceituação perdurou na linha oficial do PCB pelo menos até o V Congresso, realizado em 1960 – em cujas resoluções pode-se ler que “em sua atual etapa, a Revolução Brasileira é anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática”.
A controvérsia sobre a existência ou não de uma etapa feudal no desenvolvimento da sociedade brasileira teria forte argumentação contrária, sobretudo a partir de 1966, quando do lançamento de A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior, obra em que o marxista paulista observa: “Presumiu-se desde logo, e sem maior indagação, que no Brasil o capitalismo foi precedido de uma fase feudal, e que os restos dessa fase ainda se encontravam presentes na época atual”; com isto, “os raros traços encontrados foram logo enfocados e colocados em destaque, servindo assim para enquadrarem tudo mais que se foi por essa forma, metendo à força para dentro do esquema e do molde prefixado”.
Entretanto, Agrarismo, obra fundamental de Brandão, supera suas insuficiências, em primeiro lugar pela ousadia de um jovem pesquisador em se aventurar em voo teórico tão alto e em tarefa inédita no país. Como mencionado, o dirigente comunista faz a quente a primeira análise consistente da Revolução de 1924, rebelião ocorrida entre 5 e 28 de julho do mesmo ano em que a obra era redigida. O movimento resultava de uma intrincada teia de tensões históricas. Suas raízes estão no agravamento de problemas sociais, no autoritarismo dos governos da chamada República Velha e em descontentamentos nos meios militares (que já haviam desembocado no movimento tenentista, dois anos antes). Os bairros da Mooca, Belenzinho, Brás e Centro sofreram bombardeio aéreo, algo inédito numa capital brasileira. Três semanas depois de iniciada, a rebelião foi acuada, e dos 700 mil habitantes da cidade, cerca de 200 mil fugiram para o interior, acotovelando-se nos trens que saiam da estação da Luz. O saldo dos 23 dias de revolta foi de 503 mortos, 4.846 feridos e o número de desabrigados passou de vinte mil. No final da noite do dia 28, cerca de 3,5 mil insurgentes retiraram-se da cidade com pesado armamento em três composições ferroviárias. Brandão classifica o movimento como “a segunda batalha que a pequena-burguesia nacional travou contra os fazendeiros de café, senhores da nação”.
Apesar das qualidades e do pioneirismo da obra, Brandão, décadas depois, faria uma pesada autocrítica – em artigo publicado no jornal Imprensa Popular (“Uma etapa da história de lutas”, 1957). Depois de listar uma série de vitórias e atitudes louváveis do Partido, ele afirma: “Infelizmente, o desenvolvimento e a consolidação do PC foram travados pelos desvios de direita”; “apesar de todos os esforços e tentativas, o nosso PC não conseguiu compreender o caráter da revolução, suas etapas e forças motrizes”. E completa: “O autor destas linhas é decerto um dos responsáveis por esses erros – e as raízes deles estão em sua obra Agrarismo e industrialismo”. Brandão enumera também o que considera equívocos e desvios sérios em seu trabalho. Há aí exageros: Agrarismo e industrialismo permanece como obra fundante do marxismo e da construção de organizações de esquerda no Brasil.Como exposto, a luta do alagoano para defesa da “autonomia do povo brasileiro” – “em consequência da luta pelo petróleo e outras reivindicações sociais” – gerou perseguições, bem como muitos anos de exílio. Mais tarde escreveria: “foi motivo de alegria ver que tantas lutas não foram inúteis”. Com uma militância pautada em convicções, amplo repertório intelectual e integridade política e pessoal, sua contribuição na construção do pensamento marxista em nosso país, deixou marcas de grande vigor.
3 – Comentário sobre a obra
É difícil mensurar a extensão da obra de Octávio Brandão. Parte considerável dela foi perdida ou destruída em perseguições policiais, na precária situação da clandestinidade, ou mesmo em seu exílio, na Rússia. Em sua própria descrição, tratam-se de anotações e rascunhos de livros e de artigos sobre os quais trabalhou por anos – e cuja preservação foi para ele uma árdua tarefa. No entanto, o que sobreviveu fisicamente ao tempo é algo da maior importância histórica.
Sua principal obra é a já analisada Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classe no Brasil (Rio de Janeiro: s.n, 1926). Para prevenir seu autor da repressão política, a primeira edição está assinada com o pseudônimo Fritz Mayer e na capa é indicada a cidade de Buenos Aires, como local de publicação. O livro está dividido em três partes. A primeira, “Análise”, assim como a segunda, “Síntese”, foram escritas em meados de 1924; já a terceira, “A revolta permanente”, foi elaborada entre 1925 e 1926. Com um texto claro e indignado, Agrarismo e industrialismo não é um livro extenso; sua segunda edição, lançada pela Editora Anita Garibaldi, em 2006, 80 anos após a primeira, conta com apenas 175 páginas. Partindo da análise de dois eventos então recentes – o tenentismo e a Revolução de 1924, em São Paulo –, a proposta do autor é ousada: analisar o país, suas principais atividades econômicas, as classes dominantes e a gênese e situação do proletariado e dos pobres em geral em um país periférico, pré-industrial e atrasado socialmente. Entende a Revolução de 1924 como um “episódio” brasileiro da luta de classes internacional e analisa os conflitos globais no pós-I Guerra. Ao longo da obra, Brandão tenta realizar um levantamento das principais facções da oligarquia agrária em todo o país. Temos aqui uma busca constante de entender os elos de poder capilarizados em cada unidade federativa e em como as frações das classes dominantes se articulavam nacionalmente, com auxílio da Igreja Católica dentro do aparelho de Estado. “Eis aí o que é o Brasil” – afirma – “país estapafúrdio, onde os extremos se chocam diariamente, onde as coisas mais incríveis são realizáveis, país semicolonial, semifeudal e semiburguês industrial, país do absurdo e do conformismo, tudo isso pesando sobre os nossos ombros e procurando desorientar os nossos cérebros”.
Dentre outros trabalhos de destaque do comunista alagoano, está a pioneira tradução do Manifesto Comunista, realizada em 1923. Até então, a única obra marxista aqui traduzida era O cidadão e o produtor, um folheto de Vladimir Ilich Lênin também publicado em 1923, em Recife, contendo trechos de uma entrevista do líder soviético ao coronel estadunidense Raymundo Robnis.
Canais e Lagoas (Rio de Janeiro: edição do autor, 1919), escrito entre 1916 e 1918, foi esboçado em dois volumes, porém só o primeiro foi concluído. Sua segunda edição, publicada apenas em 1949 (Rio de Janeiro: s.n.), traz um prefácio no qual o autor afirma que “o estudo da Natureza é o ponto de partida para o descobrimento das riquezas do país, para o seu desenvolvimento industrial” – para “a produção de meios de produção”. A obra – que ganhou uma edição póstuma (Maceió: EDUFAL, 2001) – é um poético registro da natureza alagoana, em que Brandão protesta contra a miséria e o abandono do povo e procura mostrar a importância de sua ideia de uma “teoria-bússola” – isto é, uma teoria como guia para a atuação prática. Em suas palavras, o livro “estuda a geografia, a mineralogia e a geologia da região”, chamando a atenção sobre “uma série de problemas teóricos e práticos, naturais e sociais”.
A respeito da Revolução Russa, Brandão escreveu, em 1923, Rússia proletária (Rio de Janeiro: Voz Cosmopolita), em que se manifesta em defesa da Revolução de 1917. No livro, tentou pela primeira vez se utilizar do instrumental marxista para interpretar a realidade brasileira. Já Combates e batalhas (São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978) é um relato de sua vida e de sua relação com os movimentos de trabalhadores. Nele, conta experiências na vida operária brasileira entre 1917 e 1931, fazendo um “balanço dos combates travados” por ele, até ser exilado por Getúlio Vargas. Mais que um livro de memórias, é uma obra de interpretação histórica, escrita em prosa ágil, em que relata uma vida sofrida e dolorosa, na qual tomou opções não apenas para garantir sua sobrevivência em momentos difíceis, mas para se colocar do lado que julgava justo. Trata-se de uma autobiografia contextualizada e um relato sobre os primórdios das lutas operárias em nosso país. Vale ser citada ainda uma produção de Brandão, ainda que não deva ser classificada ao lado de suas principais: em 1958, publica O niilista Machado de Assis (Rio de Janeiro: Organização Simões). O trabalho representa uma contraposição à visão de Astrojildo Pereira sobre o escritor e seu tempo. Para Astrojildo, existiria “uma consonância íntima e profunda entre o labor literário de Machado de Assis e o sentido da evolução política e social do Brasil”. Já Brandão não vê Machado como alguém voltado para a realidade de sua época; considera-o apolítico e o acusa de desprezar os pobres e os negros. O livro sofreu comentários ácidos de críticos literários como Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira e Brito Broca – o que pode ter contribuído para acentuar o isolamento intelectual de Octávio Brandão. Autor com incursões intelectuais em várias frentes, ele escreveu dois artigos discutindo questões relacionadas às letras e sua importância junto a classe operária. O primeiro “Literatura sem ideologia”, publicado em 1960 na Revista Brasiliense, versa sobre um gênero que se aproxime dos interesses da classe operária: “A literatura tem sempre um conteúdo de classe”. Dando continuidade a sua obra anterior (“O niilista Machado de Assis”), Brandão reconhece as qualidades da escrita de Machado e sua preocupação em descrever “a podridão da sociedade escravista”, mas a dada altura, afirma que o escritor era um “representante da decadente burguesia”, mais preocupado em tratar personagens “decadentes”, “parasitárias”.Já no texto “Pelo realismo revolucionário”, também publicado na Revista Brasiliense (1961), o tema é a importância do realismo, definido pelo autor como “revolucionário”. Para Octávio Brandão, o realismo revolucionário, como aparece em “A mãe” de Máximo Gorki: “é a representação real da realidade, no terreno artístico e literário, sob formas específicas – representação viva e fiel, em perene movimento e desenvolvimento, transformação e transfiguração revolucionárias”. A preocupação com as discussões sobre arte e, em particular, literatura reforçam o vigor de sua produção intelectual. Nunca abandonando a perspectiva crítica e comunista, mesmo com alguns limites, mostrou-se sempre atento à perspectiva da classe operária.
É importante ainda destacar seus textos de intervenção, como “O Brasil explorado e oprimido” e “O petróleo e a Petrobrás”, ambos de 1962, publicados na Revista Brasiliense. Neles chama atenção para ação imperialista estadunidense e sua “base de apoio” na defesa de seus interesses no petróleo nacional. Acusa os “agentes do imperialismo no Brasil” de “aventureiros e provocadores, como Carlos Lacerda”. Descreve ainda os sócios do imperialismo: “Os grupos mais reacionários das duas classes dominantes no Brasil – os grandes proprietários rurais e a grande burguesia”, bem como “os políticos ligados a esses grupos”.
Dentre seus artigos, vale citar ainda sua autocrítica “Uma etapa da história de lutas” (Imprensa Popular, 20 jan. 1957) – disponível em formato digital no portal Marxists (www.marxists.org). No escrito, ele considera que o partido “subestimou a importância dos camponeses” e “superestimou o revolucionarismo pequeno-burguês em geral e, em particular, a significação dos revoltosos pequeno-burgueses de Copacabana, São Paulo e da Coluna Prestes” – tendo assim valorizado mais o “Bloco Operário e Camponês”, de que “o próprio PC”.
Na rede, sua obra pode ser lida em portais como Marxismo 21 (https://marxismo21.org) e no citado portal Marxists. Dentre seus escritos digitalizados, estão: “Uma lei sobre a imprensa brasileira” (dez. 1923); “Reação e repressão: carta do Brasil” (abr. 1924); “A penúria da crítica” (1958); “Literatura sem ideologia?” (1960); “O primado da natureza: Ciência e Filosofia” (1961); “Pelo realismo revolucionário” (1961); “Vida vivida: recordações” (1961); “O Brasil explorado e oprimido” (1962); “O petróleo e a Petrobrás” (1962); “Combates da classe operária” (1963); “A classe operária” (1978).
O acervo de Brandão está conservado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) – vinculado a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) –, incluindo livros, cartas e bilhetes, dentre outros documentos.4 – Bibliografia de referência
BIANCHI, Álvaro , “Octavio Brandão e o confisco da memória: nota à margem da história do comunismo brasileiro”. Crítica Marxista, Campinas, 2012.
DEL ROIO, Marcos. “Octávio Brandão nas origens do marxismo no Brasil”. Crítica. Marxista, São Paulo, v. 1, n. 18, 2004.
FEIJÓ, Martin Cézar. O revolucionário cordial. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
LACERDA, Felipe Castilho de, Octávio Brandão e as matrizes intelectuais do comunismo no Brasil. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, S. Paulo, 2017. MANSILLA AMARAL, Roberto. Uma memória silenciada: idéias, lutas e desilusões na vida do revolucionário Octavio Brandão (1917‐1980). Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2003.MORAES, João Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
PEREIRA, Astrojildo, Machado de Assis. São Paulo: Boitempo/Fundação Astrojildo Pereira, 2022.
PINHEIRO, Filipe. “Revisitando Canais e Lagoas, de Octavio Brandão”. Argumentos (Unimontes), Montes Claros, v. 18, n. 2, jul.-dez. 2021.
PRADO Júnior, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.
Notas
* Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais e Economia Política na Universidade Federal do ABC; doutor em História Social (FFLCH-USP) e graduado em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Autor, entre outras obras: A volta do Estado planejador: neoliberalismo em xeque (São Paulo: Contracorrente, 2022); e A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Fundação Perseu Abramo, 2004).
* Paulo Alves Junior é coordenador do Núcleo Práxis-USP e editor do Dicionário marxismo na América; professor de Historiografia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Bahia); doutor em Sociologia (Unesp) e bacharel em História (PUC-SP). Autor de, entre outras obras: Um intelectual na trincheira: José Honório Rodrigues, intérprete do Brasil (Editora Dialética, 2021). * Com edição de texto de Yuri Martins-Fontes e Joana A. Coutinho, e ilustração de Marcelo Guimarães Lima, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.