Em que pesem a violência contra civis e a oportunidade aberta para o massacre reverso em Gaza, resultou a iniciativa do Hamas em relevantes consequências geopolíticas. Primeiro, mostrou que o poderio bélico israelense, agora controlado pela extrema-direita que dirige o governo de Netanyahu, carece de uma superioridade absoluta. Depois, recolocou na ordem do dia a questão nacional-palestina. Em sincronia, impôs mais um flanco ao imperialismo estadunidense, que já se atolava na Ucrânia. Concomitantemente, jogou por terra o plano de construir uma Otan oeste-oriental em curto prazo, com a cooptação da monarquia saudita. Por fim, carreou a diplomacia de Washington ao isolamento.
A rejeição da proposta encaminhada por Vassily Nebenzia, que pretendia o cessar-fogo imediato e outras iniciativas para bloquear o genocídio anunciado, foi o prenúncio. Lastimavelmente, o boicote norte-americano prevaleceu. A nudez ficou mais evidente com a recusa, por igual, da nova resolução – desta feita, brasileira –, mediante o veto solitário de Linda Thomas-Greenfield. A embaixatriz silenciou durante a negociação toda, ignorou solenemente as concessões feitas, afrontou nada menos do que os 12 votos favoráveis – inclusive os proferidos por seus aliados França e Japão – e nem mesmo considerou que, abstendo-se, poderia preservar questões inegociáveis, como agiram os russos e ingleses.
Pode-se discutir se a plasticidade na conduta majoritária seria uma flexão tática por necessidade prática ou algum exagero próximo ao centrismo. As declarações de Sérgio Danese acolheram o dilema, ora festejando a iniciativa pelo apoio formidável, ora lamentando a oportunidade perdida: “o silêncio e a inação prevaleceram”; “infelizmente, o conselho foi mais uma vez incapaz”. Entrementes, a situação ficou desconfortável às maquinações ou provocações guerreiras em desenvolvimento, vez que “o direito herdado de autodefesa” já se transformou, visivelmente, na limpeza populacional de uma nação ainda sem aparato estatal reconhecido e na ocupação alargada sobre o seu território ancestral.
Mais grave: a escancarada intervenção do Pentágono, com suas forças ofensivas, na costa sudeste mediterrânea, é a prova irrefutável de que a poderosa potência norte-atlântica, como de praxe, já está comprometida por inteiro e até o pescoço. Ao fundear sua frota em frente à cena operacional, lança uma sombra sinistra sobre a região conflagrada. Eis porque na quinta-feira, 19, um Editorial do portal Global Times anunciou no próprio título que “o veto dos EUA está manchado com o sangue de civis israelenses e palestinos”, além de frisar que semelhante atitude contradiz o “sentimento geral da comunidade” mundial e liga um “sinal verde aos que violam o direito humanitário internacional”.
Cabe ao Brasil manter a postura de instar os contendores a evitarem uma escalada que penaliza grandes multidões, ameaça envolver a região inteira e agrava o quadro planetário. Paralelamente, urge garantir que os serviços ou bens fundamentais à sobrevivência cheguem aos civis e que a ordem para evacuação total seja suspensa. Por fim, é preciso aprovar o cessar-fogo imediato, conseguindo a paz necessária para se avançar rumo à reivindicação de consolidar plenamente a pátria palestina soberana e independente, convivendo com Israel. Trata-se de um futuro em que os dois Povos e as duas nações tenham seus Estados autônomos entre si, com prerrogativa de idênticos direitos e deveres.