Por Daniela Viana—
Um estudo sobre a flauta transversal barroca, o Traverso Barroco, preocupado em resgatar os aspectos evolutivos do instrumento com a simples pretensão de rememorar o seu grande valor histórico, ressaltando nomes que fizeram e fazem parte do percurso do instrumento, seu repertório e divulgação.

Introdução: Da flauta doce ao Traverso Barroco

A flauta é tida como um dos instrumentos mais antigos. Os primeiros indícios da sua existência remontam os tempos da pré-história, período em que era retratada em várias pinturas rupestres. Achados arqueológicos mostram a mais antiga flauta encontrada na Eslovênia, com mais de 50 mil anos de existência, feita de osso, com quatro orifícios e um bocal. Em um acervo na China há flautas de osso com sete furos e um bocal, de mais de 9 mil anos. Existe também registros da flauta apito, feita de osso e apenas um orifício.

 Flauta encontrada na Eslovênia no Divje Babe cave

Em seus primórdios a flauta foi considerada um instrumento místico, de comunicação com o mundo espiritual, com as divindades. Foi amplamente usada em rituais de cura e de atração aos fenômenos naturais como a chuva, o sol, dentre outros. Entrou inclusive para a mitologia grega com o deus Pan, que ao se frustrar na tentativa de seduzir a ninfa Syrinx, fez com os coniços nos quais ela tinha se transformado, uma flauta, a flauta de Pan, seu som reproduzia a voz da ninfa Syrinx. A flauta de Pan, é constituída da união de vários tubos (originalmente madeira) fechados numa extremidade, de tamanhos diferentes e ligados lado a lado.

Deus Pan segurando a sua flauta

Na idade média, como sabemos, a Igreja católica exerceu grande influência não só nas questões políticas, sociais e econômicas, mas também e não menos importante, nas questões culturais. Neste período existiu dois tipos de produção musical, a Sagrada e a Profana. O Cantochão ou canto gregoriano, como foi denominado a música Sagrada da época, criada dentro dos templos para a elevação da espiritualidade, teve grande produção e divulgação. Era música exclusivamente vocal, com o uso de uma ou mais vozes. Já na música Profana, música de rua, das festas, que se misturava a dança e a encenação dos corpos, foram usados instrumentos e vozes, e nestas canções a flauta era usada. A flauta na idade média não teve grandes evoluções relatadas, há poucas informações sobre a maior parte dos instrumentos tocados na época. Como relata Donald J. Grout e Claude V. Palisca em seu livro História da Música Ocidental: 
“É impossível apresentar um panorama completo e rigoroso da música instrumental dos séculos xiv e xv, pela simples razão de que os manuscritos musicais praticamente nunca dizem se uma dada parte é vocal ou instrumental, e menos ainda especificam os instrumentos utilizados. Os compositores contentavam-se em recorrerem ao costume ou à tradição no que dizia respeito à interpretação da sua música e não sentiam que fosse necessário fornecerem indicações precisas.” (Grout & Palisca, 1988:159-160)
No Renascimento, a flauta doce permanece, e acentua-se surgimento da flauta de embocadura lateral, a flauta traversa. Seu formato continuou cilíndrico, e além dos seis orifícios para os dedos ganhou um orifício muito pequeno mais ou menos 6 a 7 mm para a embocadura. Fabricada em variadas madeiras continuou com uma peça única. O tipo de madeira escolhido na fabricação influenciava na durabilidade e sonoridade do instrumento.

Réplicas da flauta renascentista

O Traverso Barroco, como a flauta transversal ficou conhecida no período Barroco, representou um grande salto evolutivo estrutural e sonoro para o instrumento, possibilitando maior uso do mesmo nas produções musicais da época. Foi quando a flauta começou a alcançar autonomia em seu repertório e a conquistar um lugar de destaque nas suítes e concertos, gênero musical da época, entrando também para as sonatas solistas. Mais do que um multi-instrumentista, o Barroco procurava por instrumentistas de destaque, os virtuosos de cada instrumento. Esse é um dos motivos pelo qual o Barroco foi um período de grande desenvolvimento da música instrumental, sendo reconhecido como uma das épocas de maior extensão musical.
 Réplica do Traverso Barroco. 

1. Dois nomes importantes na história da Flauta no período Barroco

1.1 Jacques-Martin Hotteterre (29 de setembro de 1674 – 16 de julho de 1763)
A família Hotteterre era conhecida na França por sua habilidade na fabricação de instrumentos de sopro e também por vários deles terem se tornado virtuosos músicos, sendo o principal deles Jaques-Martin Hottetere. Atribui-se ao pai de Hotteterre ou aos seus tios as mudanças estruturais feitas na flauta, as quais fizeram o instrumento dar um salto para dentro da história da música. O Traverso Barroco, como foi chamado, adquiriu sua forma mais ou menos estabelecida em 1670, quatro anos antes de Jacques Hotteterre nascer. Mudanças como, a divisão do instrumento em três ou quatro partes desmontáveis, formato cônico, mudança de diâmetro ao longo da flauta, adição de um sétimo orifício tampado por uma chave foram imprescindíveis para evolução do instrumento.
J. M. Hotteterre foi o primeiro a fazer composições específicas para a flauta transversal, permitindo o melhor estudo do instrumento, tal como afirma Sofia Cosme em seu artigo, As flautas transversais de uma chave nos séc. XVII e XVIII, “as composições de J. M. Hotteterre (de grande qualidade e alto valor pedagógico, tendo esta sido uma das razões assumida da sua escrita) foram desta forma de uma enorme importância na história deste instrumento.” (Sofia Cosme, 2017). Hotteterre escreveu o primeiro tratado para o estudo da flauta transversal e outros instrumentos de forma detalhada e abrangente. O ´´Principes de la Flûte Traversière´´, foi o primeiro manual de flauta usado na Europa.

 Jacques Hotteterre e o Traverso Barroco.

2.2 Johann Joachin Quantz (Scheden, 30 de janeiro de 1697 — Potsdam, 12 de julho de 1773)
Nascido de uma família de musicistas da Alemanha, Johan Joachin Quantz se revelou uma criança prodígio demonstrando seus talentos e habilidades para música com apenas 8 anos de idade. Por volta dos 10 anos, com o falecimento de seu pai, foi morar e estudar música com seu tio Justus Quantz em Mersebourg, dominando rapidamente os principais instrumentos de corda e sopro. Quantz iniciou os estudos da flauta posteriormente, passando essa a ser o instrumento de sua predileção, para o qual se especializou e dedicou a maior parte de seus estudos e composições.  
Quantz foi um flautista reconhecido por toda Europa, o mais requisitado de sua época. As suas composições dedicadas `a flauta se deram em formato de concerto e sonatas, sendo executadas por flautas solo, duo ou trio acompanhada ou não de outros instrumentos. Em 1752, Johann Quantz publicou o ”Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen’’, um célebre tratado sobre o estudo da flauta, uma referência para os estudos do instrumento até os dias atuais, abrangendo para além dos aspectos técnicos e teóricos do instrumento, aspectos subjetivos da performance musical. 
Johann Joachin Quantz e o Traverso Barroco.

2.  Uma brasileira e um brasileiro intérpretes das obras musicais do Barroco 

2.1 Laura Ronai
Flautista brasileira com trajetória ampla, principalmente no repertório de música antiga, carioca, filha de Nora Rónai arquiteta, escritora e campeã do mundial de natação aos 90 anos e Paulo Rónai, filósofo e escritor. Formada em licenciatura de música na Unirio, especializando-se em flauta na State University of New York (College at Purchase). Laura aprofundou os seus estudos na flauta transversal Barroca e no repertório de música antiga fazendo mestrado e doutorado em ambas temáticas.
Hoje no Brasil, Laura Rónai é responsável pela cadeira de Flauta Transversal e leciona para cursos de pós-graduação em música na UNIRIO, é dirigente da Orquestra Barroca desta mesma universidade. Como escritora, lançou em 2008 seu livro “Em busca de um mundo perdido”, que compara e analisa os métodos de ensino da flauta dos séculos XVII e XIX. Laura participou também da gravação de vários CDs com o seu Traverso Barroco.
2.2 Ricardo Kanji
Paulistano nascido em 1948, iniciou seus estudos de música com o piano aos seus 7 anos, e aos 11 anos seus ouvidos se voltaram para a flauta e para a música Barroca, estimulado por Lavinia Viotti. Com seus 15 anos ingressou na Orquestra Filarmônica de São Paulo (já extinta) e na Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo acompanhado da flauta transversal.
Decidiu-se ao estudo da música antiga e foi para Holanda, onde se especializou e estudou no Conservatório Real de Haia. Aos seus 24 anos Kanji recebe o diploma de flautista solista. Foi membro fundador e regente da Orquestra Barroca de Haia, membro da Orquestra séc. XVIII e diretor artístico da Orquestra Concerto Amsterdam. 
No Brasil, Kanji criou o conjunto Musikantiga e o projeto História da Música Brasileira, no qual também trabalhou como regente da Orquestra Vox Brasiliensis e recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos da Arte (APCA). Ricardo Kanji atua como concertista e regente no Brasil e exterior, é professor de flauta doce da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP), possui uma discografia de mais de 20 CDs nacionais e internacionais, recebeu prêmio Bravo! pelo CD Neukomm no Brasil.

3. Panorama evolutivo

O Traverso Barroco ou flauta transversal barroca, teve sua origem na Europa no final do século XVII, foi o resultado de uma nova estruturação idealizada pela família Hotteterre. Estas mudanças permitiram uma melhor performance do instrumento adequando-o às demandas musicais da época. A flauta Barroca feita de madeira ou marfim, passou a ter corpo e furações internas cónicas, a ser dividida geralmente em três partes: cabeça, corpo, pé, chegando a quatro partes por volta de 1820. A divisão da flauta Barroca possibilitou melhorias quanto a afinação, algo que era impossível com a flauta Renascentista, pois a mesma era feita de uma única peça. Esta mudança no instrumento também despertou interesse pela praticidade que representou, pois assim dividida a flauta se tornou de fácil transporte, podendo ser carregada pelos flautistas nos bolsos de seus paletós e calças. A flauta também era um instrumento considerado de baixo custo na época.
O corpo do instrumento que no Renascimento possuía seis furações, passou a apresentar um sétimo furo em seu “pé” e uma chave que o semi-ocluía, constituindo a principal diferença em relação `as flauta conhecidas até o momento, representando um salto evolutivo muito importante, permitindo o alcance das notas RE sustenido e MI bemol. Tal sofisticação provocou o interesse de mais estudiosos para o instrumento na época. Vários flautistas confeccionavam seus próprios instrumentos, usavam, portanto, madeiras diferentes com furações também diferentes, propiciando assim uma maior variabilidade sonora e a composição de repertórios direcionados para cada tipo de flauta. Para a afinação adequada `a apresentação, era comum que o flautista carregasse consigo mais de um corpo de flauta. É neste período que a flauta transversal passa a desenvolver o seu repertório exclusivo, deixando de ser uma transcrição de peças escritas para o violino, eboé e flauta doce como no Renascimento. 
Quanto à riqueza sonora apresentada pelo Traverso Barroco em comparação `a flauta de prata Böhm, a nossa flauta atual, denominada moderna, destaco a citação de HARNONCOURT, 1984, p. 102-103, feita no artigo de Geisa Cerqueira, intitulado, Música Brasileira Contemporânea para Traverso: Um Olhar sobre Obras de Sérgio Roberto de Oliveira E Luciano Leite Barbosa:
“ […] se compararmos uma flauta de prata Böhm com uma flauta de uma chave de Hotteterre, constataremos que na flauta Böhm todos os semitons soam de modo semelhante, enquanto que na flauta Hotteterre, em virtude das dimensões variáveis dos orifícios e dos inevitáveis dedilhados em forquilha, praticamente cada nota tem uma cor diferente. A flauta Böhm também soa mais forte, mas sua sonoridade é mais pobre, mais “achatada”, mais uniforme”.
Bibliografia
Flautas Transversais Renascentistas: história, construção e experimento com madeiras brasileiras Rodrigo Bueno Ferreira.
4- RICARDO Kanji. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa20866/ricardo-kanji>. Acesso em: 21 de Nov. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
*Daniela Viana é filha do cerrado goiano, hoje reside em Barbacena MG. É enfermeira de profissão, poeta e estudante de flauta nas horas vagas. Iniciou seus estudos de flauta transversal no conservatório de Barbacena. Apaixonada pela beleza do instrumento, decidiu fazer um estudo/pesquisa sobre o Flauto Transverso para a finalização do Curso Introdução ao Pensamento Crítico Musical II. Curso que fez em 2022 no Cefart, ministrado pelo professor Andersen Vianna.

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