Por PRC—

O capital em crise e a Europa em chamas

Composta por medidas concebidas e desenvolvidas para superar a Fase Depressiva da atual Onda Longa do capitalismo – que os seus ideólogos percebem na prática, mas ignoram conceitualmente –, a chamada “globalização” fracassou na tentativa de desregular completamente os estados nos países dependentes. Todavia, legou à humanidade inúmeras instabilidades e incertezas que aprofundam a crise, inclusive as suas consequências econômicas, políticas e ideológicas nos países centrais. Ademais, acirrou a agressividade dos estados imperialistas e ampliou as dificuldades nos países periféricos ou subordinados – em especial naqueles que buscam forjar saídas soberanas.

Visando a garantir o espaço vital do passado, para manter seus privilégios e lucros, as frações mais reacionárias dos grupos monopolista-financeiros procuram eliminar as liberdades democráticas, conquistas populares e garantias trabalhistas. Pretendem reorganizar as relações onde atuam e têm influência, para conservar o controle sobre áreas estratégicas. Corretamente, no caminho inverso do “Consenso de Washington”, alguns governos, cada qual no seu modo e ritmo, buscam desvencilhar-se das amarras impostas pelas políticas ultraliberais, protegendo os interesses regionais, nacionais e populares, bem como redimensionando o papel do Estado no desenvolvimento econômico-social.

Nesse quadro mundial, anunciam-se mudanças na correlação de forças e na divisão internacional de trabalho. Em reação, as forças imperialistas, capitaneadas pelos EUA, intervêm com provocações, pressões, chantagens, cercos, interferência em assuntos internos e desestabilizações de governos soberanos. O belicismo e o crescente investimento industrial-militar mostram a disposição norte-americana de utilizar a guerra para seus objetivos. A expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte – Otan –, materializada no golpe ucraniano de 2014 e no iminente massacre de populações a leste, obrigou a Federação Russa a encetar uma operação de autodefesa em sua fronteira.

A guerra, financiada e armada pela Otan em território ucraniano, arrastou países europeus e de outros continentes ao conflito, ameaçando a paz mundial com artefatos atômicos. Autoproclamando-se xerife do mundo, a Casa Branca camufla suas intenções com a falsa contraposição Ocidente versus Oriente. Assim, promove seguidas afrontas à China e a países latinos, como Cuba, Venezuela e Nicarágua. Concomitantemente, aproveita-se da situação defensiva em que se encontram o proletariado e as demais classes populares. Os falcões do capital monopolista-financeiro e seus porta-vozes tudo fazem para jogar o peso da crise nas costas dos trabalhadores e das nações dependentes.

Para tanto, apoiam-se nos seus aliados locais de sempre, além de especular com as necessidades, as carências e as demandas das maiorias nacionais, inclusive de setores burgueses, colocando em xeque o regime democrático. Concomitantemente, favorecem a extrema-direita, concedendo-lhe espaços institucionais para consolidar suas bases de massas em cada país a partir das contradições internas, das particularidades locais e das divergências sobre os problemas internacionais. Seu objetivo é implantar governos subservientes, dirigidos por agrupamentos entreguistas e hiperliberais, ou impor regimes políticos fascistas, comandados pelos setores reacionários da política nacional.

Mesmo assim, a ultradireita acumulou derrotas eleitorais na América Latina. Nos últimos anos, surgiram vários governos democráticos e progressistas no Continente, cada qual assumindo a luta anti-imperialista ao seu modo, a exemplo de Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, México e Nicarágua. Todavia, longe de amargarem reveses decisivos, os reacionários se mantiveram vivos e se transformaram na principais forças oposicionistas, dificultando a promoção dos interesses majoritários. Merece destaque o Chile, onde as forças conservadoras– aproveitando os erros à esquerda e governamentais – se reagruparam e ficaram majoritárias no conselho que discutirá a nova Constituição.

Considerando as lutas populares no mundo, as respostas mais eficazes a regimes ou governos fascistizantes têm sido as frentes amplas, que reúnem comunistas, anti-imperialistas, democratas e progressistas, bem como consideram as contradições internas â burguesia. Tais coalizões fortalecem as resistências e alcançam vitórias. Em termos de plataformas e atitudes, deve reafirmar-se a denúncia ao imperialismo estadunidense, à corrida armamentista e às sanções unilaterais, assim como a solidariedade entre os oprimidos, a autodeterminação dos povos e a soberania das nações. Por fim, urge defender a paz mundial, inclusive o cessar-fogo imediato e incondicional na Ucrânia.

O novo período político aberto no Brasil

A vitória da frente ampla democrática nas eleições de 2022, com a posse dos eleitos, a constituição do Governo Lula-Alckmin, o fracasso da intentona golpista e o estancamento da crise militar, abriu um novo período na luta de classes no País, com repercussões positivas na América Latina e no mundo. Desalojados do Governo e da chefia estatal, Bolsonaro e sua camarilha se viram obrigados reciclar suas táticas para manter o propósito de implantar um regime ditatorial. Portanto, o inimigo permanece o mesmo: a extrema-direita. O centro tático também: unir forças e setores democráticos para isolar cada vez mais as falanges, sustentar os governos progressistas e garantir novas conquistas.

O êxito em 2022 foi possível graças ao apoio popular, ao arco de alianças em torno da Coligação Brasil da Esperança, aos entendimentos no segundo turno e aos acordos – nacionais, estaduais, regionais – entre forças distintas. Também foram imprescindíveis as soluções que permitiram a montagem de novo governo, a resistência às conspirações nos quartéis e a base de sustentação institucional. Mesmo enfrentando a mais expressiva aliança democrática desde a luta pelo fim do regime ditatorial-militar a partir de 1964 e desde a campanha pelo retorno à eleição direta para presidente em 1983-1984, a extrema-direita conseguiu sobreviver e permanece enraizada na vida nacional.

Na disputa presidencial, o candidato reacionário teve apenas 1,8% de votos menos que a chapa vitoriosa. Obteve maioria em disputas por executivos estaduais importantes, notadamente nos três maiores colégios eleitorais – SP, MG e RJ, inclusive as suas capitais –, além de crescer no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas. No entanto, com a derrota de Bolsonaro e suas milícias, mesmo parcial e provisória, as instituições estatais que articulam o regime democrático passaram a agir como maior desenvoltura no indiciamento, denúncia e julgamento aos responsáveis por crimes contra os direitos constitucionais e as liberdades políticas, mostrando assertividade.

O novo ambiente trouxe à luz os delitos dos antigos governantes et caterva, que são instados a responder por seus atos. Mas a disputa nem de longe acabou ou mesmo se arrefeceu. De fato houve, na Câmara e no Senado, um crescimento de parlamentares ligados a setores progressistas, mas igualmente aumentou a presença da extrema-direita. O esgarçamento dos partidos políticos, inclusive de apoiadores do Governo Federal, manteve uma maioria à conservadora, fisiológica e clientelista. Eis porque, longe de trazer tranquilidade, a eleição da Presidência nas duas casas congressuais, os movimentos parlamentares e a condução dos trabalhos evidenciam a imensidão dos desafios.

Tais circunstâncias tornaram a superação das amarras bem complexa e mais difícil, especialmente as injunções preparadas nos períodos Temer e Bolsonaro, que obstaculizam as pautas comprometidas com as maiorias nacionais. O Governo Lula-Alckmin tem possibilidades e limites definidos também pelos necessários compromissos assumidos nas eleições, com seus alcances e fronteiras. Além desses constrangimentos, há outros imprevisíveis nos prazos médio e longo, que se gestam nas lutas de classes, com repercussões na sociedade civil e na sociedade política. Todavia, apesar da estreita margem de manobra, o Governo Federal vem enfrentando os problemas com altivez.

O imperialismo e as frações burguesas internas mais à direita combatem importantes iniciativas governamentais, como a reintegração ao Brics, a reaproximação de organismos multilaterais conforme os interesses nacionais, a retomada de articulações latino-americanas e a posição em face da Guerra na Ucrânia. Destaque-se o envolvimento despudorado do capital monopolista-financeiro transnacional e de governos hostis em temas afetos à soberania nacional, como nos casos PL no 2630/2020, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, os debates em torno da preservação ambiental na Amazônia e a campanha permanente contra a Petrobras.

O PRC em face da oposição fascista

Considerando as circunstâncias que cercaram os estertores da velha composição governamental, a delicada situação conjuntural, a transição ao novo Governo, a posse e os primeiros 100 dias, o Palácio do Planalto vem mantendo o rumo e demonstrando habilidade em contornar os obstáculos interpostos à sua atuação. As medidas tomadas e os posicionamentos assumidos em seis meses têm-se mostrado no fundamental positivos, entre as quais o enfrentamento à intentona golpista e suas consequências imediatas, passando pela retomada de projetos e políticas sociais anteriormente suspensos ou deteriorados, até o cumprimento inicial dos compromissos assumidos na campanha.

Sublinhem-se a valorização das relações com as demais instituições estatais, dos espaços democráticos e das políticas governamentais para o desenvolvimento nacional. Especial destaque merece a promoção de interesses populares, como a elevaçãom real do salário-mínimo, o alargamento na faixa de isenção para o Imposto de Renda das Pessoas Físicas, o movimento para regular o trabalho intermediado por aplicativos, o reajuste de 9% nos vencimentos para os servidores públicos federais, a destinação de créditos especiais para o piso salarial da enfermagem, a reativação de programas sabotados – Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos, além do reajuste nas bolsas, benefícios e auxílios – e outras providências para segmentos sociais e áreas específicas.

A vitória eleitoral da frente ampla e a constituição do governo democrático, nos limites da injunção estatal e da correlação de forças, estão longe de garantir a derrota decisiva da extrema-direita. O fascismo surge na sociedade civil e transborda na sociedade política. Não se reproduz, exclusivamente, na esfera da política e dos governos, embora tais práxis e órgãos joguem papel importante nas suas ações de retorno. A ultraconservação brasileira tem financiamento das frações reacionárias da burguesia, base de massas policlassista, grupos ativistas fanáticos, falanges paramilitares e estilo violento, todos conformados como instrumentos centrais de seu missionarismo político.

Os seus chefes e hordas adotam uma retórica verborrágica, agressiva e irracional. No caso brasileiro, incorporam o fundamentalismo religioso, o moralismo exacerbado, o conservadorismo nos costumes e a mentira, todos articulados como instrumentos na disputa de hegemonia. Como fazem mundialmente, buscam os retrocessos, violam as normas constitucionais articuladoras do regime democrático, afrontam as liberdades políticas, pregam o fim dos direitos populares e atacam diretamente o proletariado. Consequentemente, perseguem os revolucionários, democratas, progressistas, patriotas e humanistas – todos que se lhes oponham –, especialmente os comunistas.

Para garantir audiência e manter a sua base social, formada pelos devotos que lhe dão sustentação, a extrema-direita, demagogicamente, especula com as inúmeras carências materiais e espirituais da população brasileira. Poupa o capitalismo, o imperialismo e o latifúndio, mas imputa aos seus próprios desafetos e ao regime democrático as mazelas acumuladas na formação econômico-social brasileira, inclusive as condições de vida precárias, agravadas pelo rebatimento da crise no terreno nacional, o pauperismo, a Pandemia, as precárias relações de trabalho, a retração nos direitos sociais e a dependência nacional. Obviamente, esconde que tais mazelas se acentuaram no governo anterior.

Assim, mascara-se como alternativa inovadora, transformadora e antiestablishment, como se desejasse sanar os problemas das maiorias nacionais. Portanto, o novo governo nasce sob o signo de complexos desafios, que exigem um rumo claro, a vinculação com as massas e capacidade tática. Atrelar as lutas, econômicas e políticas, a medidas e desempenhos governamentais ou pleitos nas instituições estatais, significa abrir a guarda para o inimigo e menosprezar a sua capacidade. Acima de tudo, representa a inibição das energias populares e a entrega à sociedade política burguesa uma tarefa de antemão condenada ao fracasso, pois nunca poderia realizar-se meramente “por cima”.

Pontos para consolidar a vitória e avançar

Deixar para a extrema-direita a crítica aos equívocos das administrações democráticas é o mesmo que se alhear da disputa política. Em vez de somar-se ingenuamente à oposição ou de adotar um alinhamento subserviente, as forças e entidades populares, incluindo seus partidos políticos, têm que manter sua autonomia em face dos governos que apoiam e ao mesmo tempo defendê-los dos ataques reacionários. Quando for preciso, encetar críticas mediadas e refinadas, de forma que não se convertam em instrumentos da oposição, assim como apoiar as medidas que concorram para isolar a extrema-direita, sempre considerando a correlação de forças na sociedade e nas instituições públicas.

Jamais haverá mudança na correlação de forças sem a mobilização de massas. Ainda que os governos e os embates institucionais cumpram papel destacado, as conquistas só terão efetividade se obtidas pelas camadas populares, pelas multidões em torno de suas aspirações e pela sociedade civil com base nas suas necessidades, considerando-se os seus graus de consciência e discernimento político. Para criar pontos de apoio à mobilização, cabe ao Governo Federal promover medidas que equacionem os problemas concretos e impactam a vida cotidiana, a exemplo do emprego, do transporte, da educação e da saúde, além da expansão das liberdades e direitos democráticos.

A frente ampla, em torno das candidaturas majoritárias para presidente e para governadores, não foi uma artimanha e uma esperteza eleitoreira, ou mesmo uma espécie de engenharia tão útil quanto passageira. Na verdade, promoveu a união para valer de forças que garantiram a destituição do ex-presidente e o envio ao Planalto de uma candidatura unitária com opiniões diversas, bem como a eleição de governadores, senadores e deputados, implicando responsabilidades. Para manter e fortalecer o combate à extrema-direita na conjuntura atual é incontornável que semelhante entendimento ganhe uma organicidade própria, adequada à sua natureza, à sua composição e aos seus objetivos.

Sem a ação consciente das forças populares como polo dinâmico da frente ampla, unindo-se por cima das diferenças, aglutinando forças, tomando iniciativas e ganhando organicidade em todas as instâncias da sociedade civil – como no movimento sindical, nas entidades populares representativas e nos agrupamentos temáticos – os partidos e forças do bloco histórico ficarão à margem das disputas, sem desenvolver as suas possibilidades, potencialidades e energias. Assim, o seu protagonismo será procrastinado, perpetuando a paralisia das massas, enfraquecendo o Governo Federal e abrindo caminho para derrotas, até mesmo para sua instabilidade e inviabilização.

O movimento sindical, que deu os primeiros passos na direção da frente ampla com a tática adotada no 1º de Maio unificado de 2021, em São Paulo, é de novo chamado a cumprir o papel de baluarte na defesa dos interesses do proletariado, bem como das demais classes trabalhadoras e populares, inclusive na questão política, ainda chave, de manter e aprofundar o regime político democrático. O acúmulo alcançado pelo Fórum das centrais sindicais precisa tomar quatro providências principais: definir uma plataforma enxuta de reivindicações dos trabalhadores; formar um comando único; fixar o calendário nacional de mobilizações unitárias a partir dos locais de trabalho; e organizar as lutas.

Ademais, é preciso tomar iniciativas já este ano, com vistas aos próximos pleitos municipais, que decerto serão um dos elementos que definirão os contornos da política na dobra da conjuntura. Contrariamente ao discurso covarde, escapista e inodoro de centrar na busca de supostas soluções para os chamados temas e problemas locais – como vem sendo veiculado em certos setores, ganhando adesões inconscientes, defensistas ou imprudentes até mesmo entre segmentos partidários e agrupamentos populares –, em 2024 as disputas eleitorais serão inevitavelmente nacionalizadas, repletas de discursos radicalizados à direita e tendentes a reforçar a bipolaridade ainda presente na sociedade.

Para reduzir as defecções, os desencontros, os sectarismos e os carreirismos, a frente democrática e progressista precisa apresentar-se como proposta única em cada cidade. O ponto de partida está nos acúmulos nacionais, estaduais e locais até agora obtidos. Para dirimir os conflitos que brotam ou se acirram, é importante constituir coordenações estaduais e municipais da frente, com poderes para contornar divergências e equacionar a unidade. A partir daí, tecer a aliança das forças interessadas contra a extrema-direita. As vitórias obtidas colocaram a luta em novo patamar, exigindo o aprofundamento das alianças sob a pena de recidivas nas tragédias que assombram o Brasil e o mundo.

Belo Horizonte, 26-28 de maio de 2023,

Comitê Central do Partido da Refundação Comunista – PRC/Brasil

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