Por Fábio Rodrigues—

O dia 19 de abril de 2023 marcou a celebração do primeiro “Dia dos Povos indígenas no Brasil”, instituído pela lei nº. 14.402, de 8 de julho de 2022, revogando-se o Decreto-Lei nº. 5.540, de 2 de junho de 1943, responsável por introduzir no calendário das efemérides nacionais o até então denominado “Dia do Índio”. Naturalmente, esta é uma alteração que vai além da simples mudança de nome. Não se restringe, assim, a uma mera questão de forma, trazendo consigo importante mudança de conteúdo relativo à data. Destaca-se que a referência ao 19 de abril como marco para a celebração da cultura e da herança indígena em todo o continente se estabeleceu a partir do 1º Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em 1940. Em âmbito mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece o “Dia Internacional dos Povos Indígenas” (Originários), celebrado em 9 de agosto. Outra data importante no calendário nacional é o dia 7 de fevereiro, “Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas”.

Em relação ao 19 de abril, é possível afirmar que, mediante aprovação da lei nº. 14.402 ‒ cujo projeto é de autoria da então deputada federal e atual presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Joenia Wapichana (Rede-RR) ‒, busca-se valorizar a identidade dos diferentes povos indígenas brasileiros, suas culturas, línguas e crenças. Trata-se, em suma, de grande conquista do movimento indígena, que já utilizava o termo “povos indígenas”, por considerá-lo mais adequado, rejeitando a denominação “índio”, considerada pejorativa e reforçadora de diversos estereótipos construídos durante séculos. Relator do projeto de lei ‒ em parecer favorável à sua aprovação ‒, o senador Fabiano Contarato (PT-ES), destaca que “o termo ‘indígena’, que significa ‘originário’, ou ‘nativo de um local específico’, é uma forma mais precisa pela qual podemos nos referir aos diversos povos que, desde antes da colonização, vivem nas terras que hoje formam o Brasil. O estereótipo do ‘índio’ alimenta a discriminação que, por sua vez, instiga a violência física e o esbulho de terras, hoje constitucionalmente protegidas”. [1]

A relevância dessa mudança de conteúdo no que se refere à data, fica explícita na atitude do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, que ao receber o projeto de lei do Senado, em 4 de maio de 2022, vetou-o na íntegra, justificando que a Constituição federal utiliza a expressão “Dos Índios” no capítulo dedicado aos povos originários. Dessa maneira, coube ao Congresso Nacional, em sessão conjunta realizada no dia 5 de junho de 2022, derrubar o veto. [2]

Como se sabe, ao longo de seus quatro anos de existência, o Governo Bolsonaro se colocou abertamente como inimigo dos povos indígenas. A esse respeito, o dossiê Interfaces da Criminalização Indígena, lançado no dia 30 de março deste ano ‒ uma produção do Observatório de Justiça Criminal e Povos Indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) , considerando a chamada “Lei Antiterrorismo” aprovada em 2016, identifica cinco projetos de lei apresentados durante o Governo Bolsonaro que poderiam estimular a criminalização do movimento indígena no Brasil, associando movimentos sociais à desordem, ao crime e ao terrorismo.

Em entrevista ao Globo [3], Maurício Terena, coordenador jurídico da APIB e um dos organizadores do dossiê, explicou que o relatório surge no contexto de criminalização dos movimentos sociais durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, que lançou mão do aparato estatal para criminalizar as populações indígenas e suas organizações, alvos constante de perseguições por setores das elites brasileiras, marcadamente ligadas ao chamado “agronegócio”, que constitui uma bancada no Congresso Nacional e “um poder econômico muito fortalecido”.

O uso da terra é, sem dúvida, a questão mais conflituosa entre indígenas e não-indígenas. Apesar de a Carta Magna assegurar em seu artigo 67 que a União concluiria a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (1988), isso não ocorreu. E o descumprimento legal assevera as disputas nos campos e nas florestas. A homologação de terras indígenas esteve estagnada nos últimos quatro anos, diante do que especialistas nomearam de “antipolítica indigenista”. Treze processos demarcatórios estão agora em fase de conclusão para serem efetivados pelo governo federal nos próximos meses em áreas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul. Mesmo em áreas já homologadas, o desrespeito à posse indígena é algo corriqueiro. [4]

Provavelmente, o exemplo mais cabal dessa “antipolítica indigenista” praticada durante os últimos quatro anos trata-se do caso que veio à público no último mês de janeiro, ocorrido na maior terra indígena do Brasil, a dos yanomamis ‒ que abriga cerca de 31 mil indígenas em aproximadamente dez milhões de hectares ‒, quando veículos de imprensa divulgaram a situação de miséria, desnutrição, doenças e abusos a que foram submetidos homens, mulheres, jovens e crianças dessa população, resultante da invasão garimpeira e da conivência do antigo governo federal.

Na perspectiva da mudança de conteúdo em relação ao trato com as questões dos povos indígenas, é preciso assinalar a postura do atual Governo Federal, quando ainda nos primeiros dias de seu mandato, no final de janeiro, em visita à terra Yanomami em Roraima, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou sua disposição em combater e acabar com o garimpo ilegal em terras indígenas, além de oferecer medidas de proteção e auxílio àquela população, instituindo o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami.

Na verdade, essa nova postura do Governo Federal já se configura desde o desenho do terceiro mandato presidencial de Lula, sobretudo pela criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas, ocupado pela deputada federal Sônia Guajajara (PSOL-SP), além da escolha de outras lideranças indígenas para órgãos do Poder Executivo que têm a função de garantir os direitos constitucionais dos povos originários. Em seu discurso de posse no Ministério dos Povos Indígenas em janeiro, Sônia Guajajara ressaltou:

Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de História ainda costumam retratar. Se, por um lado, é verdade que muitos de nós resguardam modos de vida que estão no imaginário da maioria da população brasileira, por outro, é importante saberem que nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar […] A invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e subnotificações sociais do país. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra. [5]

Conforme analisa o filósofo e ex-presidente da Funai entre 1995 e 1996, Márcio Santilli, embora o discurso anti-indígena do governo Bolsonaro possa ter influenciado no aumento do preconceito contra os povos originários entre parcelas mais radicais da direita brasileira, fortalecendo grupos e indivíduos interessados na apropriação das terras indígenas e seus recursos naturais, tem havido também o rechaço desse discurso e dessas práticas pela maioria da sociedade, que tem se mobilizado na adesão às políticas públicas em defesa dos direitos dessa população. Nesse sentido, argumenta Santilli, “a fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas”. [6]

Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apresentado no relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, com base em dados de 2021, existem no Brasil 429 terras indígenas registradas (com demarcação concluída), além de inúmeras outras, em diferentes situações, totalizando cerca de 117,3 milhões de hectares, o equivalente a 13,8% do território nacional, de acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA).

Conforme registrou o Censo Demográfico de 2010, na ocasião, o Brasil contava com 305 povos indígenas, que falavam, pelo menos, 174 línguas diferentes. Quanto ao total da população relativa a esses povos, dados preliminares do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registram a existência de 1.652.876 indígenas no país, número aproximadamente 84% maior do que o contabilizado no levantamento de 2010, quando somavam 896,9 mil pessoas, sendo 817,9 mil declaradas.

[1] Agência Senado. Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, substitui Dia do Índio após derrubada de veto. Publicado em: 11/07/2022. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/11/dia-dos-povos-indigenas-em-19-de-abril-substitui-dia-do-indio-apos-derrubada-de-veto>. Acesso em: 17/04/2023.

[2] Idem.

[3] O Globo. Projetos de lei no Congresso podem estimular criminalização do movimento indígena, diz entidade. Publicado em: 30/03/2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/03/projetos-de-lei-no-congresso-podem-estimular-a-criminalizacao-do-movimento-indigena-diz-entidade.ghtml>. Acesso em: 17/04/2023.

[4] Agência Senado. 19 de abril: povos indígenas lutam por mais visibilidade e valorização. Publicado em: 14/04/2023. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2023/04/19-de-abril-povos-indigenas-lutam-por-mais-visibilidade-e-valorizacao>. Acesso em: 17/04/2023.

[5] Idem.

[6] Mídia Ninja. Protagonismo político do movimento indígena. Publicado em 02/03.2023. Disponível em: <https://midianinja.org/marciosantilli/protagonismo-politico-do-movimento-indigena/>. Acesso em: 17/04/2023.


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