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A tentativa de golpe – afinal vencida e, portanto, fracassada – legou ao Brasil, como rescaldo, a maior crise militar no período posterior à reimplantação do regime político democrático em 1988. Só nos dias últimos as relações institucionais regulares do Governo Federal com a oficialidade, sabotadas ou tumultuadas na preparação e no desfecho do putsch, foram reconstituídas e acomodadas, conforme as célebres abóboras do caminhão em movimento. Ao mesmo tempo, vão surgindo e se acumulando informações acerca dos fatos em desenvolvimento nas vésperas da janeirada brasiliense. Hoje há elementos para compreender os propósitos em jogo nas hostes bolsonaristas, seja durante o período em que mandaram no Planalto, seja no processo eleitoral, seja logo após a derrota nas urnas. 

O protofascismo nunca renunciou à pretensão de aplicar, baseado no controle do aparato estatal comandado pela Presidência, um autogolpe para preservar o continuísmo de uma revogação pelo sufrágio. Tal conduta, em face da resistência democrática em ascensão, consolidou na cúpula extremo-direitista uma construção conspirativa para liquidar o estorvo que viam pela frente. Assim, aumentou a retórica hostil ao “establishment” ou “sistema”, logo direcionada contra os direitos constitucionais e as instituições articuladoras das normas políticas vigentes. A contenção do retrocesso foi obrada pela oposição constante, ampla e firme, na sociedade civil e na sociedade política, inclusive o movimento proletário-popular e a frente ampla, com destaque ao papel da Justiça e órgãos auxiliares. 

O processo golpista, mesmo contido, isolado e barrado, gerou, como em todo ambiente paramilitar, uma lógica própria, que ao fim se incorporou às condições objetivas como valores, culturas, compromissos, práticas e circunstâncias, relativamente autônomos em relação às opções individuais. Em última instância, tal externalidade, consubstanciada em segunda ordem, foi determinada pelos interesses ou contradições surgidos “na produção e reprodução da vida real” – Engels, Carta para Bloch – e refletidos na dimensão política das lutas entre as classes ou frações, tal como acontecia concretamente. Adquiriu, porém, um estatuto condicionante, restringindo, pronunciadamente, as liberdades à disposição dos agentes comprometidos e constrangendo suas posturas ou ações. 

A sequência do projeto foi do autogolpe, quando seu comando controlava o cargo de Primeiro Mandatário, com suas competências e prerrogativas em disputa feroz, até o golpe direto, após a posse de Lula-Alckmin. O plano estratégico, que lida com a finalidade – vale dizer, objetivo – e considera o quadro sociopolítico de conjunto, foi, desde o ano 2019, a reimplantação do velho regime ditatorial, mas desta feita repaginado mediante a personificação imutável do novo chefe no topo da hierarquia, Para tanto, a tática formulada consistia em provocar uma intromissão tutelar com base no artigo constitucional de número 142, interpretado canhestramente pelos pedintes. As ocupações nas estradas e as concentrações defronte os quarteis, com mobilização de multidões, seriam uma senha. 

Pari passu, as três Armas seriam pressionadas pelas propagandas e agitações calcadas em mentiras e intrigas. Programaram-se o assédio ao corpo de profissionais por generais acumpliciados, acoitados nos corredores de cima e integrados ao comando preparador, e a leniência na PMDF. Lugar destacado coube à espinha dorsal, formada por falanges no complexo de CACs, nas milícias criminosas, no ativismo de conscritos inativos, nos cabos-eleitorais de candidaturas hiperconservadoras, nos remanescentes monarquistas, no fundamentalismo religioso de várias procedências e nos grupelhos nazifascistas com diversas origens, além de atrair os pequeno-burgueses, populares ou lumpens que flutuam soltos na crise do capital, na decepção com a política e no moralismo lacerdista. 

O decisivo seria promover o caos social e pôr a tensão político-institucional no mais alto nível de paroxismo, precondições para o desencadeamento e o exercício de uma tutela restauradora da “ordem”. Mas o laço prático entre a estratégia e a tática exigia uma linha operacional cheia de incertezas e dificuldades, além de sujeita e dependente no que se refere à evolução da conjuntura. Como poderia um campo desgastado garantir o apoio institucional das casernas, especialmente no Exército, e mobilizar multidões nas ruas? Como invadir e quebrar “os três poderes” com destacamentos violentos, mas desarmados para evitar que fossem vistos como responsáveis pelos conflitos, que perdessem o “argumento” suplicante às tropas regulares ou que desmoralizassem o reclamo “protetivo”? 

Eis a causa dos seguidos protelamentos, que levaram, sucessivamente, ao ingresso na disputa pelo voto, aos dilemas de fazer campanha ou acionar o arbítrio, à expectativa tênue de vitória na eleição, à ilusão de anular o sufrágio, à tentativa de obstruir a posse dos eleitos e, por fim, ao esgotarem-se as opções, o caminho restante naquele oitavo dia, em um janeiro para nunca esquecer. Havia poucas escolhas: combate ou capitulação, ataque ou desmoralização, continuidade ou desagregação. As possibilidades? O êxito não era uma “poule de dez”, mas estava, estatisticamente, mais longe do resultados em aposta simples da Mega Sena. Prevaleceu a lógica da seita belicista fundada, preparada e fanatizada, unicamente, para o levante, que se tornou a sua “razão” dogmática de ser. 

Visto que o plano era passivo – a espera da “intervenção” e a carecia de um desdobramento por iniciativa dos engajados –, eis que o colapso instalou-se. Faltaram grandes massas. O apoio geral da extrema-direita, vez que o entorno percebeu a bancarrota, refluiu à sobrevivência. Os policiais militares, após a vacilação, agiram. Os legalistas salvaram da cisão as FAs, já que a intenção era envolvê-los na guerra civil. A participação das esquadras, com violências e depredações programadas, foi contida logo, sem mortes. A batalha terminou. Resta, porém, a disputa pela hegemonia e a responsabilização – policial e judicial –, bem como a reestruturação política para varrer os criminosos de funções públicas. Mas o risco de conflagração persiste, pois o fascismo está organizado e armado. 

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