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Poucas vezes houve, no Brasil, uma transição entre governos tão atribulada e tensa. Semelhante assertiva em nada pretende ser uma expressão forçada; é uma constatação historicamente comprovável. Durante a Independência, em 1822, mesmo em plena guerra contra o poderio colonial e fundação do Estado nacional, praticamente o governo local deslizou do regencial principado à primeira gestão imperial. Mesmo em abril de 1831, quando Pedro I abdicou após forte pressão, manteve-se a continuação dinástica e nem de longe surgiram estremecimentos administrativos. Também na deposição de Pedro II a coerção preservou a ordem, sem atribulações na burocracia e no poder oligárquicos.

Durante a Segunda República, pode-se asseverar o mesmo padrão. Em 1946, Getúlio recuou e renunciou, abrindo mão do Estado Novo e deixando, sem resistência militar, o governo à Presidência do STF, ministro José Linhares. A posse de Juscelino, ainda que precedida pelo traumático suicídio político de 1954 e objetada em quarteladas, completou a passagem sem grandes ameaças. O fim do regime ditatorial-militar em 1988, trafegando em meio à renhida resistência popular e ao Colégio Eleitoral, ocorreu sem ruptura e por cima. Houve só duas exceções, ambas em situação especial: uma em 1930, pela guerra civil que rematou a revolução burguesa, e outra em 1964, mediante um golpe castrense.

A transição atual entre governos se processa em uma crise político-institucional que se vinculou à concavidade cíclica da economia e se arrasta por anos. Ademais, é tumultuada pelo autogolpismo e pela sabotagem que o atual presidente incita com seus acólitos, deixando e armando problemas para inviabilizar o primeiro ano do sucessor, além de respaldar os atos anticonstitucionais de suas falanges. A extrema-direita estrebucha, do lockout à súplica em prol da intervenção militar. Mas se depara com dificuldades para liquidar o regime democrático e deter a troca de bastão. Sua mobilização rescende a uma seita violenta, incapaz de sequer sensibilizar o conjunto que votou no seu candidato.

Boa porção do patronato, mormente a fração mais responsável dos conglomerados monopolista-financeiros – inclusive internacionais –, aos quais a ultrarreação intrinsecamente serve, agora relutam em seguir os acessos aventureiros dos putschistas. Sabem que o contencioso eleitoral findo, na derivação de hoje, de modo nenhum coloca em xeque o metabolismo mercantil, a estrutura estatal e a formação econômico-social. Nas instituições públicas da sociedade política burguesa, como a esfera do Judiciário e orgãos auxiliares, além da Câmara e do Senado, a base da hiperdireita vai esgarçando-se, pelo menos até uma eventual contraofensiva no devir da luta real entre as classes ou frações.

Até o esquema bolsonarista na cúpula militar mostra sinais de adaptação. As pressões do chefe sobre os comandantes, para renunciarem aos postos em protesto contra os novos superiores ao pretexto pueril de prevenir futuros constrangimentos, já evidencia um implícito assentimento à posse, tanto mais que nem tal posição gerou consenso. Fato é que, no momento, articula-se uma nova maioria, mais ampla do que a frente vitoriosa nas eleições, certamente alicerçada em uma plataforma tática propriamente cabível à conjuntura: isolamento à oposição sistemática, estabilidade governamental, superação da crise conforme o interesse popular e aplicação dos compromissos estabelecidos na campanha.

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