Desejando abrir a porta que separa o mundo real das fábulas, os generais reacionários festejaram o golpe de 1964 mediante a “Ordem do Dia alusiva ao 31 de março”. Aparentemente, nada mais fizeram do que dar vazão à sua nostalgia. Órfãos incorrigíveis da repressão policial-militar e do arbítrio, eles repetem o seu ritual enfadonho há exatos 58 anos. Na sua cantilena de sempre, afirmaram que o “movimento” – apelido com que brindaram o putsch – “refletiu os anseios e aspirações da população”. Alegaram, também, que “a história não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização.”

No entanto, a própria quartelada se autodesmentiu, pois foi o método possível para deter a vitória dos setores democráticos e progressistas, que se mostravam favoritos para o pleito presidencial do ano seguinte. Aliás, isso vinha ocorrendo há 20 anos contra os extremo-direitistas, exceto no caso de Jânio Quadros, que mesmo assim logo saiu do efêmero controle udenista para um imprevisível voo solo, com resultados bem conhecidos. Ademais, são as sucessivas cúpulas militares que vêm procurando reescrever “a História […] em mero ato de revisionismo” e sem a devida “contextualização”, motivo pelo qual sua postura não passa de uma desfaçatez sem limite.

Os signatários vincularam “o Bicentenário da Independência” com sua visão acerca do interesse nacional e do combate “às forças nazifascistas”. Disseram que “a Guerra Fria” trouxe “incertezas” e “instabilidade […], comprometendo a paz”. Repaginaram o famigerado motim como reclamo da “sociedade […] para restabelecer a ordem e para impedir […] um regime totalitário”. Prosseguiram gabando-se de que o Brasil alcançou a “estabilização”, a “segurança” e o “crescimento econômico”, resultando no “restabelecimento da paz”, no “fortalecimento da democracia”, em “ascensão do Brasil no concerto das nações”, bem como em “anistia ampla, geral e irrestrita.”

Todavia, só fazem tripudiar sobre os 200 anos do Estado Nacional, já que velam pela dominação imperialista e hoje sustentam falanges protofascistas. Se “a Guerra Fria” comprometeu “a paz”, trata-se não de naturalizá-la, vez que a “ordem” implantada se associou ao campo que a gerou, inclusive com a imposição do “regime totalitário” que pretextou evitar. Quanto à “estabilização”, a “segurança” foi um sinônimo de violência contra opositores, os direitos políticos acabaram destruídos, a “paz” se tornou confronto armado, a pátria ficou desmoralizada, o “crescimento” virou “crise do milagre”, a Lei da Anistia – clamada pelas maiorias – poupo autoridades criminosas.

Como se não bastasse, o pronunciamento militar niquelou a pílula castrense, para torná-la reluzente, asseverando que “as Forças Armadas” observaram, “estritamente, o regramento constitucional”. Por fim, aludiu a “valores […] inegociáveis” – inclusive a “democracia” –, “cuja preservação demanda […] o eterno compromisso com a lei, com a estabilidade institucional e com a vontade popular”. O texto é assinado, em uníssono, pelo novo Ministro da Defesa e pelos comandantes nas três armas. Para completar, o manifesto, com a intenção de sublinhar o seu caráter intencionalmente oficial, foi divulgado no site “gov.br”, além de acompanhado pelo apelo “compartilhe”.

O estrito “regramento” foi revogar o diploma constitucional promulgado em 1946, com a outorga de outras duas intracasernas, só eliminadas pela de 1988 ao fim do regime ditatorial-militar vencido pelas forças democráticas, embora em correlação de forças favorável à conservação liberal. Esse discurso de modo nenhum pode ser levado a sério quando se refere à “democracia”, pois nem os ilusórios “valores” universais – ditos “inegociáveis” – respeitou, muito menos como “eternos compromissos” e “vontade popular”. Eis por que os rabiscos publicados no dia 30 de março mais parecem provocação e golpismo.

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