Ao ser convidado pela Orquestra Ouro Preto, para uma apresentação no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, no dia 22/09/2024, às 11h, Celso Adolfo concedeu uma entrevista à assessora de comunicação Soraya Belusi. O Vereda Popular a publica na íntegra.
Soraya Belusi – Como estão as expectativas para o encontro com a Orquestra Ouro Preto?
Celso Adolfo – Em encontros com o condutor Rodrigo Toffolo, músico de espírito refinado, dedicado à causa como convém, eu tive a notícia de que um dia faríamos um concerto juntos. Fiquei na expectativa, vivendo uma espécie de “silêncio obsequioso”. Rompido o silêncio, chegou a hora, mas não sem deixar os primeiros agradecimentos ao Rodrigo Toffolo, capitão da nau cujo sobrenome é nome de hotel em Ouro Preto (Hotel Toffolo), onde se hospedaram Manuel Bandeira e Carlos Drummond em 1940. Se em 1951, no Claro Enigma, Carlos Drummond publicaria o poema Hotel Toffolo, eis a prova de que um Toffolo antigo daria num atual, honrando duas formas artísticas: a poesia escrita e a música.
Soraya Belusi – Um pouco da sua hitória na música.
Celso Adolfo – Em 1967 e 1968, recebi as primeiras lições de teoria musical do Maestro Tacinho, na minha terra, São Domingos do Prata (MG). Ele usava o “Canto Orfeônico” de Villa-Lobos. O adjetivo “orfeônico” me chamou a atenção: ele se referia a orfeão, ou à música dos orfeões, ao canto orfeônico, e logo eu me vi um orfeão da música que precisaria da companhia de outros orfeões. Solitário só quando componho, sempre entendi que, feita a música, ela e eu precisaríamos de mais gente por perto. Sempre ouvindo música coral e orquestral de todos os estilos (especialmente a música sacra coral que nos chegava de Mariana e de Ouro Preto), tudo era resultado do trabalho orfeão.
Soraya Belusi – Sua carreira profissional começa quando?
Celso Adolfo – Em 1983. Se desde São Domingos do Prata orfeões montaram bandas de baile e grupos vocais comigo, eu chegaria a mais um: o grupo que montei para o show Coração brasileiro, em 1982, no Teatro da Imprensa Oficial. A turma era Juarez Moreira na guitarra, José Eymard no sax, Iuri Popoff no baixo, Renato Xavier, Eduardo Marchetti e Gerson Alvim Pessoa nos vocais, e eu no violão e voz, interpretando as minhas composições da época. Na plateia, a surpresa era Milton Nascimento (@miltonbitucanascimento). Daí é que veio o meu primeiro LP, Coração brasileiro, produzido pelo próprio Milton Nascimento. Minha vida mudou de funcionário público (do DER/MG) para profissional da música. Seguindo a trilha dos orfeões, formei o trio Celso Adolfo / Lincoln cheib / Ivan Corrêa. no meu CD Pratiano, de 2023, continuamos juntos.
Soraya Belusi – Como os novos arranjos orquestrados soaram para você?
Celso Adolfo – Uma orquestra reafirma e acentua o que uma composição tem. No caso, uma coisa me bateu, imediatamente: o total respeito que o excelente arranjador Frederico Natalino teve pelos meus fraseados, e modo de tocar e compor ao violão. Grandes formações artísticas são assim, têm poderosas almas artísticas confirmando as aptidões de todos do meio. Se existe felicidade maior, só depois dessa.
Soraya Belusi – O concerto é uma homenagem à sua carreira de mais de quatro décadas. O que você ressalta que o público vai conferir?
Celso Adolfo – Pois é, quatro décadas e mais uns dias! Isto é uma quantidade e tanto! Gosto de todas elas, na boa. Sobre as músicas do show, de tudo que compus e que está gravado em 11 discos lançados nas plataformas, o público ouvirá o que escolhi por conta própria, sempre pensando no que seria mais “orquestrável” para uma formação de cordas como a @orquestraouropreto. São composições de que gosto, distraidamente, quando estou sozinho em casa. Se bater do mesmo jeito na plateia, será uma maravilha.
Soraya Belusi – Qual a assinatura do Celso Adolfo, que se percebe nas canções que serão tocadas?
Celso Adolfo – Sempre componho assim: letra, melodia e harmonia ao violão nascem ao mesmo tempo. Quando sou aquele romântico mal desempenhado, componho coisas como Amor doendo (de 2023), ou estas duas que estarão no show: Depois do amor (parceria com Juarez Moreira, de 1978) e Nós dois (que compus em 1982, na varanda do apto. 1308 do Ed. Panorama, em BH). Quando o mundo cosmopolita some de mim, os caracteres de quem é interiorano aparecem nas composições, por meio da citação de nomes, lugares, estados de espírito, lembranças, conclusões, dificuldades etc. Eu não sei como eles me acham, mas os achados (os inventados principalmente) são constantes em composições desse tipo. Das já gravadas e já nas plataformas, mas que não couberam no show, Divina luz de janeiro (2023) é feita destas sentenças curtas, cheias de expectativas morais tão elevadas, que jamais seriam alcançadas até por quem refletiu sobre elas. Nesse mesmo espírito, a música O tempo, que está no show, é só máximas que fui encontrando na medida em que a composição me vinha enquanto os bem-te-vis faziam a sua cantata numa antena do prédio dos dentistas da OAB, na Rua Albita, em BH, em frente à janela do meu quarto. A canção Pratiano, do CD de 2023, vem do adjetivo para quem é de São Domingos do Prata. Ela está no final do show, acentuando tudo isso.
Soraya Belusi – Como foi a escolha do repertório e como ele é representativo para você?
Celso Adolfo – Numa circunstância tão especial, cheguei a pensar em cantar algo que não fosse da minha lavra, apenas como referência. Mas o que me fez ficar nos meus domínios foi a necessidade de eu me fazer compreendido pelo que eu componho. Se Mário de Andrade era 300, 350, eu não passo de 3: o violão que toco, o que escrevo para as músicas e eu mesmo, um interiorano quando se deita, cosmopolita ao longo do dia e interiorano novamente ali pelas seis da tarde, até recomeçar o ciclo.
Soraya Belusi – A série é uma grande celebração da música mineira. Como você se vê inserido nesse contexto?
Celso Adolfo – Eu me sinto sortudo, pois ser compositor mineiro é como aquele “viver é muito perigoso”, de Guimarães Rosa. Música mineira é literatura, buraco na rua, barranco, viaduto, favela, futebol, igrejas, cultos, sinos; é chuvas e serras, asfalto e terra, remanso e vau de rio raso, cosmopolitana e interiorana; são os Resíduos Setecentistas de Affonso Ávila, é pratiana mariana ouropretana itabirana drummondiana rosiana. E ainda tem esta consideração: começa tendo aquele rosiano triste amor à honestidade, melódica e harmonicamente fácil e repentinamente complexa, sem preguiça, leve ou densa, variada, dotada de habilidade e de imprescindível honestidade mental. Como eu sempre desejei a experiência orfeônica de ver minhas músicas arranjadas para uma orquestra, encontrei isso na primeira e maravilhosa vez me apresentando com a JOB (@jovemorquestradeourobranco), regida pelo craque e competentíssimo Marcos Silva-Santos (@maestromarcossilva_santos), formada por jovens talentosos que a música ajuda a tirar do mundo de grandes dificuldades materiais e mentais. Chegando à Orquestra Ouro Preto, continuo sortudo por ser celebrado justamente quando eu imaginava poder me aproximar de tão exitoso e belo grupo orquestral. Detalhe: Para esta apresentação, contamos com três dos músicos que gravaram comigo várias das músicas deste repertório: @christianocaldas ao piano, @lincolncheib na bateria e @aloisiohorta no baixo elétrico.
Soraya Belusi – E você se influencia por esse contexto nas suas canções?
Celso Adolfo – Cada um é produto do seu lugar, de preferência com pinceladas do Planeta inteiro, pois a terra ainda é redonda. Ouvindo de tudo, o que sai do pacote, mesmo buscando a originalidade, é consequência. Certas condutas me interessam particularmente, como as de Juarez Moreira (@juarezmoreiraoficial), parceiro que me é particularmente caríssimo desde os anos 1970. Postura cotidiana, o violão que toca, o que compõe nesse instrumento… Juarez Moreira é daqueles que considera o Planeta inteiro, a vida em bloco, geleira, pedreira, cachoeira, matos, montanhas, desertos, planaltos, planícies, tudo. Como cada meio interessa ao outro, o exemplo que vou dar tem razoável utilidade. Olha só, no show, tocaremos Ralando coco, música que fiz com as quadrinhas das novelas Minha gente, A volta do marido pródigo e Corpo fechado (do Sagarana, de Guimarães Rosa). Originalmente lançada no meu CD Remanso de rio largo (2019), tenho outra gravação dela, no CD Voz e violão (2020 – Lei Aldir Blanc). Um dia a apresentei ao fisioterapeuta Márcio (@dr.marckbr) da banda @sextrash, heavy metal na alta. Gênero e estilo de outro meio, @dr.marckbr entrou na música com vontade e com total liberdade. Os timbres da guitarra com aquelas distorções acentuaram nela a pegada que ela tem, e essa pegada surgiu de uma simples apresentação entre duas coisas que nunca se viam: a guitarra do metal e aquela música. Gênero e estilo de outro meio se descobriram. Resultado: já penso em gravar essa versão.
Confira aqui o álbum Pratiano, de Celso Adolfo.