Por Fábio Rodrigues—
O “Abril vermelho”, capitaneado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), é um marco da luta pela reforma agrária no Brasil, buscando mobilizar para os embates que a envolvem e dar visibilidade à questão dos sem-terra, tendo como referência histórica o massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 28 anos. Um dos crimes mais violentos cometidos pelo Estado brasileiro contra as famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
O massacre de Eldorado dos Carajás
Com atuação no sudeste do Pará desde o final da década de 1980, os sem-terra deslocavam-se pela região em pequenos grupos que, gradativamente, foram se aglomerando e definindo metas. Em novembro de 1995, o então presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Francisco Graziano, em visita à região, havia prometido aos sem-terra locais realizar uma vistoria na chamada “Fazenda Macaxeira” – um complexo rural com área de 42,5 mil hectares, situado entre os municípios de Eldorado do Carajás e Curionópolis, no lado esquerdo da Rodovia PA 275 –, com a finalidade de averiguar a possibilidade de desapropriação. Uma reivindicação dos trabalhadores rurais, uma vez que tratava-se de terra improdutiva.
Diante a promessa da vistoria e seguindo o acordo feito com o INCRA, durante cinco meses, os sem-terra não ocuparam o Complexo, até que recebessem o resultado do laudo que, de forma fraudulenta, segundo o MST, apontava “que o que se conheceu por Complexo Fazenda Macaxeira”, havia sido “desmembrado em 12 propriedades, consideradas produtivas”. Considerando a situação, em março de 1996, cerca 1.500 famílias que estavam acampadas às margens da Rodovia PA 275, decidiram ocupar o Complexo Macaxeira.
Concomitantemente, buscando chamar a atenção das autoridades quanto as necessidades dos assentamentos no sul do Pará, por volta do dia 10 de abril de 1996, um grupo sem-terra, composto tanto por camponeses daquela região quanto por outros que ali haviam chegado há poucos dias, integrando a “Marcha pela Reforma Agrária e pelo emprego”, organizada nacionalmente pelo MST, resolve partir de Curionópolis em direção a Belém, rumando em caminhada pela Rodovia PA 150. No dia 16 de abril, nas proximidades do município de Eldorado do Carajás, os lavradores, cansados e famintos, em assembleia, decidiram bloquear o transito para negociar com o Governo do estado. Queriam ônibus para seguir até Belém e alimentação.
Acampado naquele momento na denominada “Curva do S”, com acesso aos municípios de Marabá, Curionópolis, Parauapebas e Xinguara, de início, o grupo – estimado em 1.500 trabalhadores rurais – conseguiu a sinalização das autoridades de que seria atendido, desocupando a via. No entanto, na manhã do dia seguinte, 17 de abril, houve a notificação – por um oficial da Polícia Militar – que o Governo do Estado não manteria o acordo, o que levou a nova ocupação da rodovia.
Na capital, o então governador, Almir Gabriel (PSDB), fez uma reunião de emergência com o secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e o superintendente estadual do INCRA, Walter Cardoso, além do presidente do Instituto de Terras do Estado do Pará, Ronaldo Barata. Decidiram retirar os trabalhadores da Rodovia a qualquer custo. Para tanto, na tarde daquele dia, foram enviados ao acampamento mais de 200 efetivos da Polícia Militar do Pará, fortemente armados. Ao chegarem, cercaram os sem-terra nos dois sentidos da estrada e não se dispuseram a negociar, lançando imediatamente gás lacrimogêneo. Entretanto, como os sem-terra se recusaram a dispersar, os policiais passaram a dar tiros de fuzil, resultando na morte de 19 trabalhadores no local, de acordo com números oficiais, além de cerca de 70 feridos levados ao hospital.
Após as investigações do Ministério Público do estado do Pará e a conclusão dos inquéritos civil e militar, 155 policiais militares – oito oficiais e o restante praças – foram denunciados pela Promotoria de Justiça e submetidos a julgamento pelo Júri. Apenas dois réus foram condenados, sendo eles os comandantes das duas tropas que realizaram a criminosa operação policial: o Ten. Cel. PM Mario Colares Pantoja, responsável pelos efetivos de Marabá, e o Major PM José Maria Pereira Oliveira, à frente do destacamento de Parauapebas.
Repercussões do massacre
O massacre de Eldorado dos Carajás ganhou enorme repercussão dentro e fora do Brasil, em meio à crescente pressão da opinião pública sobre as diferentes esferas de governo, visando a garantir o assentamento das famílias sem-terra. Destarte, ainda em 1996, foi criado pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Ministério Extraordinário de Política Fundiária e, no ano seguinte, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) – ambos extintos nos governos Temer e Bolsonaro, respectivamente, e retomados por Lula no atual governo. Também em 1997, ocorreu nova vistoria ao Complexo Macaxeira, quando atestou-se sua improdutividade, sendo a área desapropriada para fins de reforma agrária, criando-se, em 19 de julho daquele ano, o projeto do Assentamento 17 de Abril, com capacidade de abrigar 690 famílias, em uma área de 18 mil hectares.
No local do massacre, que tornou-se um memorial em homenagem aos mártires do movimento dos trabalhadores sem-terra, recebendo atividades anuais, foi erguido um monumento às vítimas, onde estão fincados – no chão – troncos de castanheiras, simbolizando a forma violenta como a questão da terra é tratada no país. Por outro lado, além da memória dos que ali tombaram, o monumento evoca também a possibilidade de concretização da reforma agrária, por meio da luta organizada do povo sem-terra.
Vale ressaltar que, após o massacre, a Via Campesina relembra anualmente a data da morte dos mártires de Eldorado do Carajás como o Dia Internacional da Luta Camponesa, e o MST realiza, sempre na semana do dia 17 de abril, a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, que em 2024 tem como lema: “Ocupar, para o Brasil alimentar!”.
A luta pela terra hoje
Segundo o MST, que também celebra seus 40 anos em 2024, a Jornada Nacional de Lutas deste ano engloba um conjunto de ações em todas as regiões do país, contabilizando-se, até o momento, 30 ações diversas, em 14 estados, mobilizando mais de 20 mil famílias sem-terra. Desse total, o MST realizou 24 ocupações de terra em 11 estados. Além disso, aconteceram outras atividades, como a construção do Acampamento em Defesa da Reforma Agrária, em Maceió (AL); a realização de uma Assembleia Popular no Maranhão; a ocupação no Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (Incra) em Pernambuco; uma manifestação em Sergipe; e uma Audiência Pública no Incra de Santa Catarina – além da continuidade da Marcha Estadual em Defesa da Reforma Agrária na Bahia e o Acampamento Pedagógico da Juventude Sem Terra, na Curva do “S”, em Eldorado do Carajás.
Em meio a atual Jornada de Lutas, o Governo Federal anunciou, na última segunda-feira (15), o programa Terra da Gente, que busca assentar 295 mil famílias até 2026. Regulamentado em decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além dos mecanismos tradicionais de reforma agrária, como desapropriação de áreas improdutivas, a iniciativa possibilitará a transferência de terras de grandes devedores da União. Busca-se, dessa forma, acelerar o processo de obtenção de terras e a ampliação da produção de alimentos saudáveis no Brasil.
Considerando-se o orçamento destinado à desapropriação de terras, ainda que este não seja o ideal (se analisado em uma temporalidade maior, abarcando as últimas duas décadas), destaca-se a sua recomposição em relação ao que vinha sendo praticado nas gestões recentes. De acordo com levantamento apresentado pelo portal Poder360 a partir de dados do INCRA, em 2023, primeiro ano do terceiro mandato presidencial de Lula, o número de famílias assentadas cresceu 612%, totalizando 50.592 famílias inseridas no Programa Nacional de Reforma Agrária, registrando-se somente 7.105 no ano anterior. O total de famílias assentadas em 2023 equivale a mais do que o dobro do total de beneficiários que ingressaram no Programa durante o Governo Bolsonaro.
Apesar desses avanços, a violência no campo persiste como problema a ser solucionado. Segundo o Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no primeiro semestre de 2023 aconteceram 973 conflitos no campo, sendo a maioria por terra (791), resultando em um aumento de 8%, se comparado ao mesmo período de 2022. Ainda segundo o relatório, a população que mais sofreu com a violência foram os indígenas (38,2%), seguidos pelos trabalhadores rurais sem-terra (19,2%), posseiros (14,1%), quilombolas (12,2%) e assentados (5,5%).
A respeito da questão da violência, ressalta-se que, durante a Jornada de Lutas desta semana, o MST registrou a ocorrência de conflitos entre os sem-terra e as forças de segurança pública durante as ocupações em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Goiás. Ao mesmo tempo, o “Invasão Zero”, grupo investigado pela Polícia Federal (PF) por atuar como milícia rural e suspeito de envolvimento no assassinato de uma líder indígena, divulgou uma cartilha denominada “Abril Amarelo”, contra as “invasões de terra”.
No Congresso, os embates políticos também ganharam novo capítulo, com a aprovação, pela Câmara dos Deputados na noite da última terça-feira (16), do regime de urgência para a tramitação de uma proposta que impõe sanções administrativas e restrições a ocupantes de terras rurais e urbanas, entre elas, o fim da necessidade de ordem judicial para usar força policial na retirada de ocupantes de terra; proibição de pagamento de benefícios sociais a membros de ocupações; e obrigatoriedade de criação de personalidade jurídica para os movimentos que desejem atuar politicamente. A proposta em questão é o projeto de lei (PL) 895/2023, que faz parte do pacote de medidas que busca criar entraves à ação política do MST, aguardando análise da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ). A inclusão do requerimento de urgência em votação, revoltou parlamentares do campo da esquerda – surpreendidos pelo fato –, uma vez que não constava na lista de pautas a serem avaliadas após acordos feitos pelos líderes das bancadas.
Fontes:
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MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJÁS COMPLETA 28 ANOS EM MEIO A TENTATIVAS DE INVIABILIZAR A LUTA PELA TERRA. Brasil de Fato. Publicado em 17 de abr. 2024. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2024/04/17/massacre-de-eldorado-do-carajas-completa-28-anos-em-meio-a-tentativas-de-inviabilizar-a-luta-pela-terra>.
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