Por Jorge Luiz Souto Maior*

Não é de agora que o jornal O Estado de S. Paulo se empenha na militância contra os direitos da classe trabalhadora e contra a Justiça do Trabalho. Há muito, aliás, foi identificado como “órgão de imprensa que foi inquebrantável bastião dos liberais paulistas por várias décadas e ferrenho crítico de Getúlio Vargas”.[1]

Em abril de 1957, o jornal se dispôs a publicar, quase na íntegra, o teor do discurso proferido pelo professor de direito econômico José Pinto Antunes, na aula da abertura do ano letivo, com o tema “O Robô e as consequências econômico jurídicas de sua utilização”,[2] precisamente porque o referido professor, para o regozijo do jornal, após citar vários exemplos de unidades produtivas nas quais os trabalhadores foram substituídos, no todo ou em parte, pelas máquinas, preconizava o fim do direito do trabalho.

Em 2004, depois de atuar fortemente na defesa da extinção da Justiça do Trabalho, durante todo o processo de “reforma do Judiciário”, o Estadão não se conformou com o resultado final da reforma (EC 45/04), que não só não extinguiu a Justiça do Trabalho, como, também, ampliou a sua competência.

No editorial de 22 de novembro daquele ano, a empresa jornalística não se conteve e desabafou: “Entre as diversas inovações introduzidas pela reforma do Judiciário, a que causou maior surpresa ocorreu no âmbito da Justiça do Trabalho. Em vez de ser esvaziada como se esperava, por ter sido criada há décadas sob inspiração do fascismo italiano e estar hoje em descompasso com as necessidades da economia, a instituição, graças à ação do seu poderoso lobby no Senado, especialmente no decorrer da votação dos destaques, conseguiu sair bastante fortalecida”.

No ano de 2007, quando se debatia a Emenda 3, que impedia a atuação de auditores fiscais do trabalho, o jornal, tentando contribuir para a aprovação da Emenda, publica, na edição de 12 de fevereiro de 2007, a reportagem “O Brasil é campeão em ações trabalhistas”, cuja chamada é feita, inclusive, na primeira página do Jornal. Na reportagem, baseada na posição de “especialistas” (na verdade, dois, um ex-ministro, Almir Pazzianoto, e um economista, José Pastore), procura difundir a ideia de que se existem muitas ações na Justiça do Trabalho é porque a legislação instiga o conflito, gerando um desestímulo às contratações pelas empresas.

Em 08 de abril de 2009, o jornal publica o editorial intitulado “Ativismo dos TRT’s pode agravar efeitos sociais”, retomando a carga de ataques à Justiça do Trabalho, por sua atuação de impedir as dispensas coletivas promovidas pela Embraer. Nesta autêntica propaganda empresarial, o jornal preconiza que “decisões como essas podem produzir efeitos sociais diametralmente opostos aos esperados pela magistratura. Isto porque, ao impedir os empregadores de dispensar pessoal para se adequar à realidade do mercado, as liminares ‘protetoras’ podem comprometer economicamente as empresas, eliminando todos os empregos que elas oferecem”.

Vale lembrar que, naquela oportunidade, o Brasil só não entrou em bancarrota por conta do freio imposto pela Justiça do Trabalho às dispensas coletivas, pois havia um movimento muito forte de incentivo aos empregadores a promoverem dispensas coletivas e sabe-se bem – ou se deveria saber – o quanto um desemprego em massa é desarticulador da economia, ainda mais na periferia do capital.

Quando a CLT completou 70 anos – e muitos viram na data a oportunidade para novamente atacar os direitos trabalhistas, dizendo que a CLT era “velha”, porque “setentona” – o Estadão não ficou para trás e publicou artigo de Gustavo Ferreira, com o título “Consolidação das Leis do Trabalho de Getúlio Vargas completa 70 anos”. No texto, tentou-se reforçar a visão plenamente distorcida da realidade histórica de que a CLT foi inspirada na Carta del Lavoro de Mussolini, sugerindo que os direitos trabalhistas têm uma origem fascista.

A total falta de conhecimento sobre a história da legislação trabalhista no Brasil refletida na abordagem restou, no entanto, evidenciada quando o autor afirmou que “Com a CLT, trabalhadores conseguiram direitos como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e 13.º salário”. Mas, como se sabe (ou se deveria saber), a CLT é de 1943 e o 13º salário só foi legalmente instituído no ano de 1963, durante o governo de João Goulart, e o FGTS, em 1967, no período do regime ditatorial militar.

Em 2016, no curso do golpe de Estado, o órgão se valeu de diversos mecanismos para promover ataques ainda mais fortes aos direitos trabalhistas e à Justiça do Trabalho. No dia 1º de maio, o jornal publica artigo de Almir Pazzianoto Pinto, com o título “A velha e anacrônica CLT”, repetindo aquela mesma ladainha de que a CLT foi obra da ditadura de Getúlio Vargas, com inspiração fascista etc.

No ano de 2016, integrou um pool de empresas jornalísticas, para difundir “fake news” sobre questões relativas aos direitos trabalhistas e um dos expedientes mais utilizados foi exatamente este de dar voz a autoridades e personalidades historicamente ligados à defesa dos interesses do capital.

Estadão, inclusive, promoveu um Fórum (“Modernização das Relações de Trabalho” – evento público), para repercutir tais falas, sobretudo, do então Presidente do TST, Ives Gandra da Silva Martins Filho, ardoroso defensor da retração de direitos como forma de alavancar a economia e ferrenho crítico da atuação dos juízes do trabalho que ainda se mantinham com a “teimosia” de aplicar o Direito do Trabalho. As falas do Ministro foram reproduzidas, com frequência, pelo jornal.[3]

Em 05 de novembro de 2016, o editorial do Estadão, “Um novo trabalho”, faz uma defesa pública de Ives Gandra Filho e, para tanto, profere uma grave ofensa à Justiça do Trabalho e aos juízes e juízas do trabalho do Brasil, firmando o pressuposto de que estes profissionais nada sabem sobre direito do trabalho, mas, ao mesmo tempo, negando a própria existência e a relevância do direito do trabalho, vez que, na sua concepção autoritária e antidemocrática haveria “um evidente desajuste no modo como o Estado lida com as relações de trabalho, sendo este um grave entrave ao desenvolvimento econômico e social do país” e que, por isso, caberia aos juízes e juízas negar vigências às leis trabalhistas, protetivas dos trabalhadores, e criarem um novo direito, mais flexível, pois a CLT já estaria muito “velha”…

No dia 28 de janeiro de 2017, o jornal, sem qualquer compromisso com a realidade ou demonstração de respeito mínimo às instituições democráticas, chama o Ministério Público do Trabalho de “ideológico” por ter este se manifestado contra a reforma trabalhista pretendida pelo governo federal, inquinando-a de inconstitucional. Segundo sugere o editorial, as propostas de alteração da legislação do trabalho não podem sequer ser questionadas. Desinformado e desinformando, o Estadão sustentou que a visão do Ministério Público do Trabalho seria “peculiar”, quando, de fato, refletia a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência trabalhistas.

Em 09 de outubro de 2017, novo editorial, desta vez destinado a tentar acuar a magistratura trabalhista, para que esta se submetesse, de forma autômata, ou seja, sem qualquer questionamento, às supressões de direitos impostas pela lei da “reforma” trabalhista, já aprovada e prestes a entrar em vigor. Para o Estadão, os juízes não poderiam aplicar outras leis e outros preceitos jurídicos presentes na ordem jurídica. Deveriam, isto sim, corroborar a ideia da retração de direitos e, para se chegar a este resultado, valeria, até mesmo, desconsiderar alguns termos explícitos da própria lei da reforma que pudessem conduzir a direção diversa – ainda que no editorial não tenha dito isto de forma expressa.

Agora, em 14 de novembro de 2023, o jornal volta ao ringue, para acusar a Justiça do Trabalho do cometimento de um ato de “rebeldia”.[4] Mas, desta feita, a empresa jornalística foi longe demais, pois, expressamente, fez uma apologia da ilegalidade, atentou contra uma instituição da República e feriu a honra e a integridade moral de juízas e juízes do trabalho.

De início, o texto rebate a tecla do fake news difundido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em 2016, de que a Justiça do Trabalho é “campeã mundial” de “passivos trabalhistas”. Melhor nem comentar…

Mas, na sequência, a coisa ficou bem mais séria, pois, em um único golpe desferido desconsiderou a própria legitimidade da legislação trabalhista; atentou contra o poder jurisdicional da magistratura; transformou direitos em “custo”; tratou as trabalhadoras e os trabalhadores como oportunistas aventureiros; chamou juízes e juízas do trabalho de coniventes e estimuladores das práticas abusivas; posicionou as empresas como vítimas desse conluio entre a Justiça do Trabalho e os trabalhadores e as trabalhadoras; afirmou que a crise econômica brasileira, o desemprego e a informalidade são culpa da Justiça do Trabalho.

Poucas vezes se viu tanta mentira, distorção e violência em um único parágrafo! Ei-lo: ““Historicamente, na legislação trabalhista e, sobretudo, na Justiça vicejou uma concepção ideológica segundo a qual toda relação entre empregador e empregado envolve algum tipo de injustiça constitutiva. Entre os juízes trabalhistas prevaleceu a ideia de que sua missão seria corrigir essas injustiças. O ônus quase nulo para litigâncias infundadas, combinado à generosidade dos juízes, generalizou a percepção de que sempre vale a pena para o trabalhador entrar com alguma reclamação. O custo da indústria de litigâncias não está apenas no congestionamento da Justiça, mas no desestímulo às empresas, sobretudo pequenas e médias, a empregar mais pessoas. No afã de fazer ‘justiça social’ a cada trabalhador, os juízes ativistas prejudicam coletivamente os trabalhadores, impondo barreiras à criação de empregos, estimulando a perpetuação do mercado informal e, com isso, afastando investimentos e freando o crescimento.”

Segundo se extrai da versão do Estadão, se não houvesse lei trabalhista e a Justiça do Trabalho, as relações de trabalho seriam plenamente igualitárias, o desemprego e a informalidade não existiriam e a economia do Brasil estaria em virtuoso e constante crescimento.

O problema, para a versão ideológica do Estadão, é que a situação preconizada já se verificou durante a pré-história do direito do trabalho, quando as relações de trabalho eram reguladas pelos preceitos contratualistas do direito civil e o que se viu foi: número elevado de acidentes do trabalho; jornadas de trabalho ilimitadas; salários pauperizados; crianças de 5 a 12 anos no trabalho fabril; mulheres trabalhando até poucos dias antes de darem a luz etc.

A aposta de que hoje isto não mais ocorreria não se sustenta, nem como retórica, pois o trabalho uberizado, que, por enquanto, de forma geral, corre ao largo da legislação trabalhista, está aí para demonstrar como são as condições de trabalho quando o poder econômico não encontra limites institucionais.

Mas, o mais grave mesmo é o pressuposto autoritário e antidemocrático da fala, vez que simplesmente desconsidera a prevalência da Constituição Federal, onde os direitos trabalhistas encontram-se expressamente previstos e onde, também, se instituiu a Justiça do Trabalho, precisamente para fazer valer esta ordem jurídica. Para o Estadão o respeito à ordem jurídico-democrática expressamente consignada na Constituição é apenas uma ideologia.

O ofensivo editorial vai além: acusa os juízes do trabalho de “justiceiros sociais” e também cria a versão de que a lei da reforma está acima da Constituição, difundindo, com apoio em duas versões, a concepção de que não cabe a juízes do trabalho a aplicação da Constituição porque, afinal, o que vale mesmo é a redução do “custo Brasil”. A Constituição Federal seria mero detalhe.

Diz o texto: “A fim de reduzir o ‘custo Brasil’, a reforma trabalhista de 2017 eliminou entraves de uma legislação esclerosada. Os legisladores definiram, por exemplo, que acordos coletivos concretos prevalecem sobre leis genéricas, normatizou o trabalho intermitente e remoto e impôs custos às litigâncias infundadas. Mesmo após o STF ter decidido pela constitucionalidade de medidas como essas, os justiceiros sociais togados continuam a decidir contrariamente à lei. ‘O órgão máximo da Justiça especializada, o TST (Tribunal Superior do Trabalho), tem colocado alguns entraves em opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo’, constatou o ministro do STF Gilmar Mendes”.

“A ideia desse grupo de juízes é, através da jurisprudência, pressionar para mudar a reforma trabalhista, mas ele não é legislador’, avaliou o professor de direito trabalhista da Fundação Getúlio Vargas Paulo Renato Fernandes da Silva. ‘Então, eles começam a declarar tudo inconstitucional e a negar a aplicação da reforma trabalhista. Isso tudo vai parar onde? Para o Supremo.’ Em 2018, um ano após a reforma, as reclamações contra decisões do TST somavam 41% das ações no STF. Hoje são 54%.”

Ora, foi dito inúmeras vezes, durante o processo antidemocrático da elaboração e aprovação da “reforma” trabalhista que o texto legal apresentado no Congresso Nacional era repleto de inconsistências jurídicas, contradições, aberrações técnicas e inconstitucionalidades. Mas os poderes políticos e econômicos não quiseram nem ouvir falar da necessidade de se estabelecer um debate mais sério e profundo a respeito, pois consideravam que era preciso se valer do período de ruptura democrática – cuja duração não era possível prever – para introduzir na ordem jurídica trabalhista um texto de lei que atendesse os seus interesses mais imediatos (e nada além disso). Só que como foi um texto escrito a muitas mãos e às pressas, o resultado foi a criação de um autêntico “labirinto jurídico”, conforme denunciei em texto escrito em janeiro de 2018.[5]

Assim, quando acusam a Justiça do Trabalho de criar “entraves” para a aplicação da lei da “reforma”, o que se promove é a idealização de uma lei que, no concreto, não existe. E, não bastando, ainda se tenta colocar esta lei (idealizada, forjada no imaginário) como sendo o centro de todo o ordenamento jurídico, isto é, o núcleo do qual todos os demais preceitos derivariam.

O mais curioso é que o próprio STF, em diversas decisões, mesmo de forma envergonhada (recriando a norma legal), já declarou a inconstitucionalidade da “lei da reforma” em diversas ações: ADI 5938 (trabalho da gestante e trabalho insalubre), ADI 5766 (condenação do reclamante beneficiário da justiça gratuita ao pagamento, inclusive com os ganhos do processo, dos honorários advocatícios da reclamada); ADI 5867 (juros e correção monetária dos créditos trabalhistas); ADI 6050 (tabelamento limitador das condenações por dano moral); Recurso Extraordinário (RE) 999435 – Tema 638 (dispensas coletivas sem qualquer condição); ARE 1.121.633 – Tema 1046 (negociado sobre o legislado) e ADPF 324 – Recurso Extraordinário 958.252 (terceirização irrestrita).

Repare-se que tanto nos principais temas abordados no editorial do Estadão, do “negociado sobre o legislado” e da “terceirização irrestrita”, o que prevaleceu na posição do STF não foi exatamente o que havia sido consignado na “lei da reforma”.

Ora, para o STF o negociado só prevalecerá sobre o legislado quando forem “respeitados os direitos absolutamente indisponíveis” (Tema 1046). E a terceirização, por sua vez, não poderá ser instrumento para precarizar as condições de trabalho e aniquilar direitos trabalhistas, como forma de redução do “custo Brasil”, conforme pressupunha, indiretamente, a “lei da reforma” e defende, expressamente, o jornal O Estado de S. Paulo. Nos termos da decisão do STF, há de se evitar o exercício abusivo da terceirização e para tanto “os princípios que amparam a constitucionalidade da terceirização devem ser compatibilizados com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: (i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e (ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias (art. 31 da Lei 8.212/1993)”.

Então, o que o Estadão e seus parceiros preconizam, qual seja, a aplicação da “lei imaginária” da “reforma” é um projeto racionalmente inexequível, fruto de um processo mental completamente alienado e forjado a partir de aberrações jurídicas, e que nem mesmo o STF, ao menos até aqui, havia se proposto a realizar.

Mas o poder econômico, sobretudo em países localizados na periferia do capital, não está disposto a fazer concessões e não se conforma com a manutenção de limites institucionais à exploração do trabalho.

E é aí que mora o maior perigo, pois, para levar adiante o objetivo, duas posturas extremamente danosas se prenunciam e que são ainda mais graves no cenário de recorrentes ataques ao conhecimento e de afrontas às instituições democráticas: primeira, a de fingir não saber como se deu a elaboração e a aprovação da “lei da reforma” e o quanto ela é carregada de problemas jurídicos; e, segunda, a de reconstruir arbitrariamente a ordem jurídica e o próprio texto constitucional, para que tudo pareça coerente e coeso.

No primeiro aspecto, o problema é o quanto fazer vistas grossas à realidade histórica e de construir argumentos retóricos para criar uma versão conveniente do real contribui para o movimento dos negacionismos, das brutalidades e dos ódios que se difundem mundo afora e, sobretudo, no Brasil, nos últimos anos. O oportunismo e a dissimulação são alimentos da irracionalidade e da bestialização e o Estadão e seus parceiros se apresentam, portanto, como instrumentos e difusores desse movimento.

No segundo aspecto, a gravidade é de se efetivar um ataque institucional à ordem democrática. Ora, no presente momento, para reforçar o propósito de não permitir aos magistrados e magistradas reconhecerem a disparidade entre a ordem constitucional e os termos da “lei da reforma” e mesmo a inconstitucionalidade de seu processo de elaboração e votação, os Ministros do STF, já tendo, em diversas decisões, sobretudo de 2011 em diante, promovido uma leitura parcial das normas constitucionais, para impulsionar e legitimar o processo de retração de direitos trabalhistas, agora, cedendo aos sempre ameaçadores reclamos cada vez mais contundentes da grande mídia e do poder econômico, estão sendo conduzidos ao ponto de reescreverem, a seu modo, a Constituição Federal e, até mesmo, a desrespeitar os seus próprios entendimentos anteriores proferidos (que, embora já eram destrutivos, eram um tanto quando envergonhados).

Assim, as inconstitucionalidades da lei deixam de ser evidenciadas, mas isto porque, até mesmo com desconsideração da inequívoca literalidade dos artigos, se têm modificado o conteúdo da Constituição democrática e cidadã de 1988, de modo a torná-la um documento à semelhança dos preceitos antidemocráticos e neoliberais que orientaram a “reforma”.

Verifique-se que no caso concreto da terceirização, que está no centro da suposta “rebeldia” da Justiça do Trabalho, o próprio STF, como já mencionado acima, deixou evidenciado que a terceirização não seria obstáculo à aplicação das “normas constitucionais de tutela do trabalhador” e que caberia ao tomador dos serviços “verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada”. Ocorre que nas situações em que Ministros do STF, por decisões monocráticas em Reclamações Constitucionais, o que se tem, primeiro, não é propriamente uma terceirização, pois a discussão em torno do reconhecimento de vínculo empregatício quando o trabalhador constitui uma Pessoa Jurídica para a prestação de serviços há, concretamente, uma contratação direta e não uma relação intermediada, sendo que por meio do disfarce desse tipo de contratação o que se intenciona é, precisamente, afastar a aplicação de todas as normas constitucionais de tutela do trabalhador.

O precedente utilizado pelos Ministros, portanto, não se aplica às situações em questão e, se aplicável fosse, o efeito seria o inverso daquele que se tem efetivado, pois este tipo de “terceirização” (que de terceirização não tem nada, repita-se), estaria sendo utilizado de forma abusiva, com o intuito de afastar a aplicação das normas constitucionais de tutela do trabalhador.

A elevação vertiginosa do número de Reclamações Constitucionais levadas ao STF contra decisões da Justiça do Trabalho durante este ano de 2023 é sintoma de que a Justiça do Trabalho ainda está cumprindo o seu dever constitucional de aplicar o Direito do Trabalho nas situações fáticas em que a ilegalidade do descumprimento das leis trabalhistas é identificada, contrastando com a posição de alguns Ministros do STF que, nas decisões dessas Reclamações, têm ultrapassado os limites constitucionais do seu poder jurisdicional para, como dito, reescreverem a Constituição, negando, desse modo, cidadania, dignidade e direitos sociais à classe trabalhadora.

Importante dizer que não há, nem na “lei da reforma”, nem em nenhum outro dispositivo constitucional ou legal, qualquer possibilidade de uma relação de trabalho ser definida como emprego ou como trabalho autônomo pela mera “opção contratual” das partes, ainda que na perspectiva falseada de um trabalhador que “terceiriza” a si mesmo, sobretudo, quando se tem em mente os efeitos de ordem pública – contributivos, assistenciais e tributários – que da relação de emprego defluem, sendo que, também por isso, os direitos trabalhistas são irrenunciáveis por parte do trabalhador e da trabalhadora.

E, nos termos expressos da Constituição (art. 114), é a Justiça do Trabalho o órgão do Poder Judiciário responsável por processar e julgar as ações oriundas das relações de trabalho, sobretudo, para definir, no caso concreto, se estão, ou não, presentes os elementos configuradores da relação de emprego, preservada, como tal, no inciso I, do art. 7º da CF e delineada nos artigos 2º e 3º da CLT (artigos que, na essência, não foram alterados nem mesmo pela “reforma” trabalhista).

Então, caríssima empresa jornalística, seria bastante recomendável que antes de emitir um “parecer” jurídico, com tom ofensivo e mentiroso, que procurasse conhecer um pouco melhor a ordem jurídica e o sistema de Justiça nacionais.

E o que dizer, então, sobre a ofensa final trazida no malsinado e agressivo texto? “A insegurança jurídica, com todas as suas consequências para a credibilidade da Justiça e o ambiente de negócios, se prolifera. A reforma deveria reduzir o mercado dos litigantes profissionais, mas a Justiça do Trabalho insiste em mantê-lo lucrativo, contribuindo para perpetuar um dos maiores, mais caros e mais lentos Judiciários do mundo. E também um dos mais irracionais. Os juízes trabalhistas têm todo o direito a cultivar sua concepção de justiça social e desejar que ela seja consolidada em lei. Para isso têm, como todo cidadão, o seu voto. Se quiserem ir além, podem abandonar a toga e partir para o ativismo ou disputar cargos no Legislativo e no Executivo. Mas valer-se de chicanas para reverter à força de seus martelos as decisões dos representantes eleitos é coisa que atenta profundamente contra o Estado Democrático de Direito. Assim como todo cidadão, inclusive legisladores e governantes, tem a obrigação de cumprir decisões judiciais das quais discorda, os juízes têm a obrigação, mesmo a contragosto, de aplicar as leis decididas pelos representantes eleitos.”

Talvez apenas que, por certo, o jornal tem todo o direito de emitir suas opiniões, mas se quiser que o direito e as instituições jurídicas e jurisdicionais estejam subordinadas à sua vontade, que abandone o discurso retórico da defesa das leis e da democracia e assuma de vez e explicitamente o que de fato propõe para que o seu objetivo seja alcançado: um golpe de Estado.

Agora, que o Estadão, considerando todo o seu histórico, aja desse modo é até previsível, mas que o faça com o suporte do Supremo Tribunal Federal não é possível conceber. Então, diante das graves agressões promovidas no editorial contra uma instituição da República, com a palavra o STF!

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores). [https://amzn.to/3LLdUnz].

Artigo publicado originalmente no site A Terra é Redonda.

Notas


[1] AGGIO, Alberto; BARBOSA, Agnaldo; COELHO, Hercídia. Política e sociedade no Brasil (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002, p. 28-29)

[2] ANTUNES, José Pinto. O “Robot” e as consequências econômico jurídicas da sua utilização. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 52, p. 250-260, 1957. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66272/68882>

[3] (ALVES, Murilo Rodrigues. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-do-tst-ve-desbalanceamento-da-justica-em-favor-dos-trabalhadores,10000085271.

[4] (https://www.estadao.com.br/opiniao/a-rebeldia-da-justica-do-trabalho/)

[5] (https://www.conjur.com.br/2018-fev-27/souto-maior-reforma-trabalhista-labirinto-juridico/).


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