O portal Vereda Popular continua publicando a Linha Sindical do Partido da Refundação Comunista (PRC), aprovada no Ativo Nacional Sindical e depois ratificada pelo Comitê Central. Segue o Capítulo VIII.


VIII – A base social do movimento sindical no Brasil

Nas condições brasileiras atuais, as entidades de massa podem continuar representando, às vezes, além do vasto semiproletariado, as camadas empobrecidas e intermediárias do campesinato e da pequena burguesia urbana – os trabalhadores independentes que desenvolvem suas atividades-fim sem recorrer a empregados permanentes –, de vez que esses se relacionam de forma conflituosa com a ordem monopolista-financeira, na esfera da circulação e da política. No entanto, como suas funções laborais ainda não foram impregnadas pela determinação e pelo controle do capital na esfera da produção, seu papel nas reivindicações, nas mobilizações e nas formulações permite inserções próprias, não raro dúbias e moderadas, às vezes impacientes e exacerbadas. A greve, por exemplo, seria uma forma de luta ineficaz para promoverem suas demandas, pois inexistem patrões a pressionar diretamente.

No campo, os sindicatos podem filiar, além dos proletários, proprietários rurais com pouca terra, posseiros, pequenos arrendatários – inclusive parceiros, que pagam suas obrigações com produtos – e assalariados sazonais ainda fixados no porto seguro das glebas familiares. Nas cidades, também contemplam, por critérios profissionais ou de ofícios, parcelas de artesãos, camelôs, microempreiteiros, mecânicos de garagem, profissionais liberais, operadores autônomos de computadores, caminhoneiros proprietários, taxistas independentes, motoboys, biscateiros e toda a gama de trabalhadores mais ou menos especializados, manuais ou intelectuais, usuários de ferramentas técnicas tradicionais ou avançadas, instalados em imóveis ou itinerantes, estáveis ou “precarizados” em graus diferenciados, mas sempre sem patrão fixo e, portanto, tendo que se converter em negociantes diante dos compradores de seus bens ou serviços, ou seja, os vários tipos de trabalhadores conhecidos por meio da expressão “por conta própria”.

Tal extensão pode ser admitida, mas sem diluição conceitual da classe fundamental. O reducionismo que incide sobre a representação do conjunto proletário acabaria incentivando e promovendo, no extremo polar, por ecletismo ou por inadequação, a mistura geral de todos os segmentos sociais ocupados – os despossuídos ou os detentores de seus equipamentos, controladores do próprio processo laboral e vendedores de seus resultados – no amorfo protoconceito de “classe trabalhadora”, tão usado pelo senso comum. A tal respeito, a substituição das palavras “campesinato” e “proletariado”, de usos consagrados, pela vaga expressão que passa por cima das relações laborais, se efetivou no Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, e foi amplamente acolhida no regime militar. Eis como as várias espécies de miséria classificatória podem nutrir-se no culto ecumênico à ocultação do trabalho abstrato e à diluição das fronteiras de classe, que acabou predominando no discurso acadêmico, oficial, político e sindical, provocando confusão teórica e transtornos práticos.

No Brasil, o proletariado compõe, indubitavelmente, a grande maioria da força laboral. Sua presença estrutural vem aumentando, embora de maneira variável, descontínua ou com retrocessos conjunturais, sob a influência de ciclos econômicos e políticos. O número de empregados em relação às pessoas ocupadas ficou abaixo de 60% nos anos 1990, quando se pronunciaram a destruição de forças produtivas e a difusão do trabalho considerado supérfluo pelo capital, pois relegado ao desemprego crônico. Naquele período, parte considerável da força laboral foi, porém, reabsorvida pelo mercado nas condições de assalariamento informal ou trabalho por “conta própria”, engrossando assim as fileiras inorgânicas do semiproletariado que, somado aos trabalhadores pequeno-burgueses urbanos e aos camponeses, compõem a esmagadora maioria dos 40% restantes. Tal fenômeno de sanfona retorna ou se agudiza em toda crise conjuntural.

No século XXI, a percentagem de assalariados na população cresceu continuamente: de 2001 a 2011, subiu de 62% para 69%, abarcando 15 entre as 16 milhões de pessoas que passaram a ocupar novos postos laborais no período. Descontando-se a cúpula do setor improdutivo nas empresas, que integra o terço parasitário da camada gerencial lato sensu e que foi estimada em 5,8% pela Síntese de Indicadores Sociais – IBGE – de 2013, a taxa de proletarização girava em torno de 67,7%. Portanto, as relações de produção caracteristicamente capitalistas – portadoras da subjunção formal e real do trabalho pelo capital – alcançaram, desde a conclusão da longa e complexa revolução burguesa no País, um patamar avançado na formação econômico-social monopolista-financeira e dependente. Paralelamente, persiste a reprodução marginal das relações dominantes no assalariamento informal ou sazonal, inclusive por obra de verdadeiras empresas dedicadas a negócios ilícitos e criminais, passando pela contravenção, à sonegação e à simples burla da legislação trabalhista.

A propósito, em 2011, a ocupação sem qualquer registro oficial, embora em recuo, estava em 41,5%, atingindo 38 milhões de pessoas, que com seus familiares ultrapassam a população da Alemanha, o mais populoso país-membro da Comunidade Europeia. Quem se abstém de promover a dignificação do capitalismo e de redefini-lo pelas formalidades jurídicas, ignorando as relações reais de produção, pode perceber sua lógica nos poros da legalidade. A chamada exclusão, ao contrário de um gesto autofágico em que a burguesia expeliria forças produtivas humanas para o exterior do “sistema”, é a passagem do capital, do labor vivo e do mercado para fora do cenário formal dos direitos e deveres consagrados no Estado, isto é, à semiclandestinidade no interior do sociometabolismo reinante.

Atualmente, infinitos e profundos vasos comunicantes continuam permitindo ao dinheiro e às mercadorias fluírem pelas esferas ditas “incluída” e “excluída”, que se tornaram típicas da formação econômico-social brasileira. Na raiz da suposta “retração” proletária na sociedade civil institucionalizada operam processos concomitantes, que movimentam bilhões: a marginalização do capital legal e a legalização do capital marginal. Nesse quadro, a violência, a criminalidade e a corrupção crônicas em nada se assemelham à ausência de capitalismo e nem são determinadas pela imoralidade dos políticos ou pela incivilidade do povo. Ilude-se quem sonha em resolver a crise da cidadania burguesa por meio da “inclusão”, dos vitimados pela “exclusão”, à sociedade formal do trabalho abstrato, ainda mais quando tal discurso cede lugar a expedientes conservadores como a privatização das empresas estatais para “combater” a corrupção, o mero endurecimento penal para enquadrar a população pobre ou o combate às instituições democráticas para colocar “ordem” no País.

As mudanças operadas na estrutura do emprego revelam, além de oscilações conjunturais, o impacto causado pelas tecnologias de ponta na economia fabril clássica. Mas a concentração e a centralização de capitais, associadas ao papel das novas teorias gerenciais burguesas e das mudanças operadas pelas políticas governamentais conservadoras, também devem ser consideradas, de vez que são vetores de uma determinação multilateral, objetiva e subjetiva, que atua sobre o perfil do trabalho produtivo e o modifica. Eis o constrangimento complexo sob o qual, ao fim do século XX, o número relativo de pessoas “ocupadas” caiu nas chamadas “indústrias de transformação”, exatamente onde as unidades de grande concentração operária estavam mais presentes.

Nos demais ramos econômicos, o emprego continuou estagnado ou se expandindo absolutamente e até, em alguns casos, relativamente ao crescimento demográfico, como nos “outras atividades industriais”, “administração pública”, “transporte e comunicação”, “indústria de construção”, “social”, “serviços auxiliares da atividade econômica”, “comércio de mercadorias”, “prestação de serviços” e “agrícola”. Eis como a desproletarização fenomênica da sociedade capitalista no País desvela seu real caráter: transferência de trabalho vivo das unidades fabris tradicionais para novos setores industriais e, em conjunturas de atividade reduzida, para o capital informal, o estoque de pessoas desempregadas e as tarefas “por conta própria”, como, aliás, repete-se na crise cíclica de 2014 até no mínimo o quinquênio subsequente.

A reprodução das formas tradicionais de trabalho produtivo e improdutivo – ambos proletários –, que se mantém, combina-se à expansão de novos ramos industriais, inclusive de empresas dedicadas a serviços fornecidos por empregados próprios, aos quais se agregam, em interface, os negócios informais e o trabalho supérfluo. Ocorre a quíntupla regeneração do proletariado: em novas funções produtivas, como nas indústrias de microeletrônica, equipamentos informatizados, saúde, ensino e cultura; em algumas funções produtivas tradicionais, como na indústria de construção e de transporte; nas terceirizações de processos e funções; em antigas funções improdutivas, mas úteis, como no “comércio de mercadorias”, na atividade “social” e em setores públicos; em atividades informais, produtivas ou não.

Tais mudanças ficam eclipsadas pelos critérios adotados pelo IBGE no enquadramento dos estabelecimentos por ramos, que: ignoram o trabalho produtivo subsidiário em empresas tradicionais de “prestação de serviços”, como embalagem no comércio, lanchonetes ou padarias nos supermercados e reparos mecânicos em concessionárias de veículos; recusam-se a inserir no grupo “indústrias de transformação” setores inteiros, como energia elétrica, abastecimento de água, estiva, estocagem, transporte, construção e agropecuária, em que transcorre algum tipo de mudança nas matérias-primas; caracterizam como “prestação de serviços” muitos segmentos em que há trabalho produtivo, que inclusive abarcam algum tipo de valorização material; desconsideram os negócios informais.

Há, inclusive, indústrias de serviços que geram mais-valia e incrementam o capital: a estocagem, o transporte, a medicina e o ensino possuem funções de “transformação”. Na estocagem, modificam-se os bens materiais no tempo, protegendo e aumentando seu valor-de-uso. Analisa Marx: “Durante a estocagem, o valor das mercadorias só é conservado ou aumentado porque o valor de uso […] é colocado em […] condições materiais que exigem dispêndio de capital, e é submetido a operações em que trabalho adicional atua […].” Nas funções improdutivas, “O cômputo dos valores das mercadorias, a contabilidade desse processo, os negócios de compra e venda, ao contrário, não influem sobre o valor de uso em que existe o valor das mercadorias. Relacionam-se apenas com a forma do valor”.

No transporte, a posição das matérias-primas ou dos bens já elaborados sofre modificações no âmbito espacial – por exemplo, do local onde está a fábrica ao comércio ou a outras praças e do ponto do atacado ao varejo –, como foi constatado por Marx: “Esse intercâmbio pode determinar mudança de espaço dos produtos, seu movimento efetivo de um lugar para outro. […] Assim, o capital produtivo […] acrescenta valor aos produtos transportados, formado pela transferência de valor […] e pelo valor adicional criado no trabalho de transporte. […] esse valor adicional se divide, como em toda produção capitalista, em reposição de salário e em mais-valia.” Quando a mercadoria transladada é a própria capacidade de trabalho – os seres humanos livres, como no transporte urbano de massas –, incorpora-se valor diretamente a uma esfera da força produtiva socialmente disponível.

Nas indústrias do ensino e da saúde, os trabalhos realizados se destinam diretamente ao consumo, no ato mesmo de sua efetivação. Naquela, atende à demanda prioritária pela criação e reprodução da capacidade produtiva em forma de força laboral, correspondente à necessidade fundamental da sociabilidade capitalista, em matéria de técnica e cultura, para gerar mais-valia, articuladamente à reprodução da ideologia burguesa e subsidiariamente respondendo à procura de autossatisfação espiritual. Por seu turno, os procedimentos médico-hospitalares respondem à manutenção, recuperação e reprodução da saúde corporal ou mental – logo, de força produtiva –, além de prevenir a capacidade de trabalho futura, de amparar o labor passado e prover a realização individual multifacetada.

Em ambas, o valor-de-troca é a presumível transformação material e intelectual da pessoa compradora e consumidora, embora, não raro, os efeitos alcançados sejam as suas morte e incultura. O trabalho do proletariado no ensino e na saúde acaba valorizando o capital, sendo apenas por tal motivo produtivo e não pelos efeitos causados no consumidor. Storch disse que a sua produtividade repousaria na criação de “cultura” e “saúde”, merecendo assim a ironia de Marx, que lhe sugeriu mordazmente: “com a mesma razão”, seriam os médicos e professores gerados pela doença e ignorância. A tais setores se somam os assalariados improdutivos, dos porteiros aos funcionários administrativos, complementando os conjuntos conhecidos como “trabalhadores do ensino” e “trabalhadores da saúde”.

Cabe ao movimento sindical brasileiro, demarcando com a ilusória catástrofe da “sociedade do trabalho” e olhando para além dos setores tradicionais da indústria fabril, perceber o fundamental: processa-se uma restruturação endógena do proletariado, com mudanças nas características e nas relações mútuas de suas camadas, bem como no seu aspecto externo – desenho formal –, porém, sem violar em nada sua essência. Destacam-se, pois, as suas relações adensadas com as modernas técnicas emergentes na contemporaneidade, com a socialização de suas diferentes atividades manuais ou intelectuais e com a intensa migração interna rumo aos ramos vulgarmente nomeados como “serviços” ou aos setores informais, paralelamente aos pulsos de trabalho supérfluo.

Atividades há bem pouco tempo inexistentes – como a produção e a comercialização de chips, hardwares, softwares, acessos por servidores, labor em redes, educação on line a distância, formação informática, operações virtuais, consultorias especializadas, apoio a produtos originais, entre tantas outras – estão interagindo com as demais e gerando novos proletários, a exemplo do que se passa na fabricação de máquinas ou equipamentos, na robótica, na engenharia genética, na pesquisa científica, nos ramos culturais e assim por diante. Em vez de perdas irreversíveis no rol do proletariado, de fato se reproduzem o trabalho abstrato e as funções concretas. Considerando-se a concentração de labor passado e de capital variável nas mãos de alguns magnatas, com elevação astronômica na produtividade, aprofunda-se a centralidade do trabalho na reprodução das riquezas e da vida social.

Obviamente, a experiência comum, dentro das grandes fábricas, encontra-se debilitada pela relativa dispersão física dos produtores diretos e pelo caráter estrutural do estoque supérfluo, que desfavorecem a formação da ideologia sensível e a consolidação da consciência de classe. Todavia, longe de inviabilizarem a reprodução do movimento sindical, tão-somente aumentam o papel da subjetividade e da contenda contra-hegemônica nas categorias econômicas e no conjunto da sociedade, incluindo a dimensão da cultura, dos valores, da estratégia, da organização e das mediações táticas na ideação transformadora. Assim, reafirmam, em nova situação histórica, as preocupações de Engels ao final do século XIX, dos bolcheviques no início dos 1900, e de Gramsci, nos anos seguintes. A nova condição proletária apenas sublinha o colapso do corporativismo e do economicismo, que dependem exclusiva e absolutamente da convivência profissional e setorial, com seus limites.

Hoje, diversamente ao que aconteceu por ocasião do ludismo, inexistem quebras generalizadas de robôs, computadores ou smartphones, embora haja muita perplexidade e desorientação. Todavia, não há porque soltar interjeições de assombro, admiração ou pavor, como aqueles ocorridos quando a burguesia nipônica, antes de mergulhar na crise, anunciou a eliminação completa do trabalho manual na sua indústria até o final do século XX. Além de ser inviável a completa extinção da esfera física presente no labor social, lembre-se de que a introdução de novas forças produtivas é limitada pela primazia da compulsão por maiores taxas de lucro. Afinal, o capital, em nível internacional e mais ainda nos países dependentes, jamais conseguirá libertar-se da natureza combinada, mas sempre desigual, da evolução tecnológica e também do mar proletário de baixa ou média qualificação que continuará habitando o cinturão em torno das ilhas douradas da produção e da fruição excelentes.

Tal realidade desaconselha certa elaboração de políticas sindicais, que se referencia em um “futuro” só existente na imaginação de alguns. Mesmo supondo que o devir se configurasse como antecipam os profetas do fim inapelável da chamada “sociedade industrial”, seria necessário responder ao presente e travar a luta de classes atualmente existente. Se a concentração-centralização de capitais, as doutrinas gerenciais burguesas e as tendências tecnológicas são obviamente temporais, podem e devem sofrer, mesmo que nas condições históricas legadas pelo passado, a incidência das intervenções dos seres humanos, entre as quais inclui a política. A ideia de que o mero desenvolvimento nas forças produtivas tecnológicas – quando muito secundado por agentes sociais dispersos – determinará o porvir nada tem em comum com o marxismo e nada mais é que uma quimera criptonaturalista.

O capital continua e sempre estará condenado a explorar a força laboral despossuída, porque, ao contrário de mera coisa, é uma relação social. Portanto, jamais conseguirá livrar-se de seu irmão siamês – o trabalho abstrato. Numa equação matemática, o índice de capital constante aplicado na produção é função direta e complexa da variável automação. Aquele só representaria, hipoteticamente, 100% do investimento global na sociedade caso essa conseguisse tocar o absoluto, eliminando as diferenciações técnicas, o capital variável, o mercado e, finalmente, o próprio capitalismo, assim mesmo com tudo chafurdado nos processos e conflitos sociais. Trata-se de uma impossibilidade e, como hipótese, uma futilidade. Ademais, a sociabilidade humana nunca logrará descartar o trabalho concreto, para uns, sua maldição, para os marxistas, sua gênese criadora e reprodutora irrecorrível.

Se, por meio de um exercício utópico, fosse concebida uma sociedade em que toda função produtiva estivesse, no limite, substituída por robôs – inclusive a programação, a operação, o reparo, a educação e a recriação – e em que o direito ao lazer opcional fosse trocado pelo regime da inutilidade compulsória, mesmo assim a futura ação dos indivíduos livremente associados haveria de modificá-la para refundar o mundo e desenvolver alguma função capaz de suprir suas necessidades ou de exteriorizar seus anseios, antigos e novos, do modo e quando melhor a realidade lhes apresentasse como adequado. A síndrome de 2001: Uma Odisséia no Espaço, ao contrário de ser a revelação do futuro, foi mais o diagnóstico sobre uma terrível moléstia psicoideológica do presente.

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