Por Roberto Finelli—
O portal Vereda Popular publica neste espaço o prefácio realizado por Roberto Finelli, professor da Università Roma Tre, do livro Dialética e valor em Marx e nos clássicos do marxismo, de Zaira Rodrigues Vieira, obra resultada de sua tese de doutorado em Filosofia defendida na Université Paris Nanterre e agora traduzida para o português. O livro está disponível para compra na Paco Editorial.
PREFÁCIO
O mais-valor como antecedência
Há muitas razões de interesse para se ler este belo volume de Zaira Rodrigues Vieira, que teve a coragem e a fineza de intelecto de abordar um tema tão carregado de história, interpretações e polêmicas, como necessariamente ocorre com questões que envolvem as problemáticas do valor, do método e da dialética no Capital de Marx.
O leitor poderá constatar, neste sentido, como a autora não se esquivou a uma tarefa tão exigente, argumentando muito bem seja quanto à competência historiográfica sobre o status quaestionis seja sobre o plano mais propriamente teórico do domínio da problemática categorial em questão. Os três núcleos temáticos que mais caracterizam, na própria amplitude do volume, a reflexão de Vieira podem ser destacados e resumidos da seguinte forma:
1) A centralidade da categoria força de trabalho (Arbeitskraft) para a compreensão da sociedade capitalista, em oposição à reivindicação de um paradigma demasiado genérico e vagamente determinado como o trabalho (Arbeit).
2) A conexão entre força de trabalho e trabalho abstrato, como nexo que dá pungência e substância de realidade à categoria abstração no interior do processo de produção capitalista. Ou seja, a centralidade da produção de trabalho abstrato como consequência do uso/consumo capitalista da força de trabalho, através das renovadas transições tecnológicas de subsunção formal para subsunção real.
3) A concretização da abstração na esfera da produção como resolução e clarificação da problemática do trabalho abstrato igual enquanto conteúdo da forma valor na esfera da circulação. Em outros termos, a retirada da questão da abstração de um âmbito lógico-epistemológico-metodológico e sua atribuição a um âmbito propriamente histórico-social-ontológico, como aquisição fundamental de Marx na transição dos Grundrisse para O Capital.
Para resumir em minhas próprias palavras, diria que esta descentralização radical que Vieira faz na sua interpretação do Capital de Marx, deslocando o seu centro de gravidade da esfera da circulação para a da produção, também pode ser designada, usando uma expressão muito sucinta, como como a antecedência do mais-valor ao valor. Dito de outro modo, é precisamente o disciplinamento da força de trabalho através do seu uso capitalista – disciplinamento que visa ao fornecimento de trabalho não remunerado – que dá vida real a uma abstração in corpore vili, ou seja, a uma abstração que já não é meramente mental ou convencional, mas que permeia o corpo, a mente e toda a vida da massa de trabalhadores que troca a sua força de trabalho por dinheiro-capital.
Sobre este ponto, a convicção de Vieira é muito clara. O trabalho abstrato é o trabalho necessário, ou seja, depende da quantidade de tempo de trabalho destinado, na média da produção, a uma determinada mercadoria. É uma determinação de natureza social cuja socialidade não é dada na troca, numa suposta igualização realizada pelos agentes do mercado de compras e vendas, mas na comparação dos tempos de processamento e pela obrigação de se situar dentro do tempo médio global que a sociedade dedica à produção daquele produto específico. “O valor (e, por conseguinte, também o valor de troca) é uma determinação da produção (e não da troca)” (p. 71).
Mas, o interesse suscitado pela pesquisa de Vieira não reside apenas nesta posição ontológico-teórica, para a qual as relações de produção são, na análise marxiana do capitalismo, muito mais decisivas na estruturação da sociedade contemporânea do que as da circulação e do mercado. Está também numa reconstrução historiográfico-genética do desenvolvimento do pensamento de Marx sobre as categorias fundamentais da sua obra madura. Deste ponto de vista, a dominância de uma conceituação do valor a partir do valor de troca como horizonte da circulação e troca de mercadorias é ainda muito relevante, segundo a autora, nos cadernos I e II dos Grundrisse. Mercadoria e dinheiro – aqui especificamente com todas as três determinações funcionais do dinheiro – ainda ocupam todo o quadro e a categoria trabalho abstrato, como trabalho geral, parece depender ainda da necessidade de se comparar e trocar entre si valores de uso. Assim, esta categoria é susceptível de ser uma abstração lógico-contábil-comercial implementada para estar basicamente ainda a serviço do valor de uso e da sua centralidade no consumo, visando satisfazer às necessidades individuais. A consequência disso é vislumbrar-se, por parte de Marx, uma apresentação da “forma-valor” que fala muito mais da forma do valor que do conteúdo do valor, ou seja, mais da importância universalizante do valor de troca (na medida em que é capaz de estender a trocabilidade a todo o universo das mercadorias) do que daquilo que é materialmente a condição histórica e social dessa capacidade de universalização. Mas isso significa, sublinha Vieira, que neste contexto, a polarização que constitui a vida social é entre valor de troca e valor de uso, que é uma configuração de oposição entre individual e universal em que sequer entra um fragmento de relação assimétrica entre classes.
É apenas com o caderno III dos Grundrisse que Marx introduz, mesmo se com sucessivas aproximações, a categoria fundamental “força de trabalho”, através da qual ele abandona o horizonte geral da troca de mercadorias, a fim de dele extrair o ato de troca mais peculiar que é a troca entre trabalho e capital. Dito de outra forma, é apenas no decurso dos Grundrisse que Marx abandona uma dialética ainda hegeliana de alternância e oposição entre individual e universal (que pode ainda ser válida como configuração de uma lógica entre polaridades dialéticas atemporais) e permite, ao contrário, a entrada da história, isto é, implicitamente o longo tempo histórico da acumulação primitiva, que durou séculos e que teve como produto final e por excelência a entrega da força de trabalho. E é precisamente o aparecimento, na história das sociedades humanas, de uma classe de homens e mulheres portadores e possuidores de apenas força de trabalho que constitui algo epocal, dando origem ao surgimento, pela primeira vez nas relações humanas, de uma “abstração real”. De fato, se considerarmos cuidadosamente a passagem dos Grundrisse em que Marx define e determina as características que histórica e socialmente pertencem à força de trabalho, percebemos com extrema clareza o complexo de separações que produzem a força de vida, abstraindo-a/separando-a do mundo da vida.
O trabalho, posto como o não-capital enquanto tal, é: 1) trabalho não objetivado, concebido negativamente (no entanto objetivo; o próprio não objetivo em forma objetiva). Enquanto tal, o trabalho é não-matéria-prima, não-instrumento de trabalho, não-produto bruto: trabalho separado de todos os meios e objetos de trabalho, separado de toda sua objetividade. O trabalho vivo existindo como abstração desses momentos de sua real efetividade (igualmente não valor): esse completo desnudamento [completa spoliazione] do trabalho, existência puramente subjetiva, desprovida de toda objetividade. O trabalho como pobreza absoluta: a pobreza não como falta, mas como completa exclusão da riqueza objetiva. (Marx, 2011, p. 229-230, grifos do autor)
Que o portador de força de trabalho se encontre numa condição de pobreza absoluta significa, portanto, que sua pessoa é absoluta, desenredada de toda posse e utilização possível do ambiente-mundo e que, como tal, sendo incapaz de reproduzir de alguma forma a sua existência, é forçada a vender-se ao dinheiro-capital. A pobreza absoluta, portanto, é muito diferente em significado da pobreza relativa, porque enquanto esta última se refere a uma relação de confronto e comensuração entre classes, a pobreza absoluta refere-se a uma relação de separação/abstração radical do mundo-ambiente (obviamente causada pela interposição do monopólio e da dominação de classes) que reduz essas vidas à “vida nua”: se quisermos usar este termo aqui num significado explicitamente diferente, se não oposto, ao da filosofia política de ascendência metafísica e heideggeriana de Giorgio Agamben.
Que a força de trabalho é a classe da vida nua significa, no contexto histórico de Marx em que a tecnologia da “Grande Indústria” utiliza predominantemente trabalho manual, que a força de trabalho, devido à sua abstração de qualquer relação de posse e uso com o ambiente-mundo, é determinada e identificada como mero corpo, desprovido de mediações, ou seja, de outras características antropológico-socioculturais. E, como tal, é obrigada a permanecer e reproduzir-se numa identidade, individual e social, essencial e unicamente corpóreo-materialista.
Ou ainda, como o não valor existente e, por conseguinte, valor de uso puramente objetivo, existindo sem mediação, tal objetividade só pode ser uma objetividade não separada da pessoa: apenas uma objetividade coincidente com sua imediata corporalidade. Como é puramente imediata, a objetividade é, de maneira igualmente imediata, não objetividade. Em outras palavras, não é uma objetividade situada fora da existência imediata do próprio indivíduo. (Marx, 2011, p. 230, grifo do autor)
Assim, precisamente porque apenas corpo, desprovido de determinações e qualificações da riqueza tanto externa como interna, ela é trabalho em geral, trabalho abstrato: ou seja, trabalho que pode ser utilizado, manipulado, disciplinado e consumido de acordo com a vontade de outros e de acordo com o plano de produção de uma mercadoria, cada vez concreta e específica, na qual a produção de capital é encarnada.
Deste ponto de vista, deve-se notar que o grande mérito da investigação de Michel Foucault sobre a biopolítica, como regime de discursos e práticas orientado para o governo dos corpos individuais e do corpo social coletivo, para além das belas pesquisas sobre os universos concentracionários, tem como contrapartida negativa a remoção em sua obra do que Marx já tinha teorizado e antecipado nesse sentido com a categoria força de trabalho enquanto categoria teórica e sócio-histórica central do Capital. A estraneidade de Foucault quanto à cultura alemã, com particular ressentimento pela tradição dialética, na qual acabou por enterrar também Marx, levou-o a uma teorização do biopoder que, embora interessante e inovadora, como mencionado, para muitas outras áreas sociais e jurídico-políticas, contribuiu na verdade poderosamente para o afundamento da crítica de Marx à economia política nas ciências sociais contemporâneas.
Ao contrário, a redução da vida à vida nua é consubstancial, para Marx, à definição de força de trabalho, e é apenas através do estudo desta mercadoria peculiar, da sua gênese histórica, bem como da sua reprodução através do ciclo de produção do capital, que se compreende o coração da sociedade moderna. Pois, uma biopolítica que, por uma preclusão quanto à cultura da tradição dialética, não inclua no seu campo de visão a questão de como e por que uma abstração construa realidade sócio-histórica, ou seja, de como e por que na sociedade contemporânea se dê o domínio de abstrações reais, corre o risco de ler o capitalismo moderno muito mais através de Nietzsche e da sua dissolução da realidade numa contínua e mutável contraposição de forças ativas e passivas do que através da lição, ainda indispensável numa era de globalização, do Capital de Marx. Mas talvez, para usar uma expressão bastante esquemática, poder-se-ia dizer que toda a grande distância que se percorreu entre a French Theory da segunda metade do século XX e a cultura alemã de tradição em certa medida dialética teve sua origem e seu fundamento mais profundo precisamente na dificuldade, por parte do estruturalismo e do nietzsche-heideggerianismo francês, de extrair da lição hegelo-marxiana uma teoria da integração social baseada em abstrações reais.
É por isso que Vieira colocou, na minha opinião, a questão da força de trabalho no centro do seu discurso, afirmando energicamente que “é do deciframento da categoria de força de trabalho que decorre a principal descoberta de Marx em sua crítica da economia política” (p. 359). Porque, partindo também de uma inspiração lukacsiana, compreendeu bem que ler O Capital significa pôr em prática uma abstração que, tal como a força de trabalho, não implica qualquer generalização lógica, qualquer enquadramento epistemológico, mas sim uma abstração ontológico-histórica, que tem a sua realidade in corpore vili: no corpo de mulheres e homens que, em massa, vendem a sua existência abstrata à abstração do dinheiro-capital.
Isto explica, além disso, o fato de o lado teórico e conceitual do seu discurso ser acompanhado e interligado com uma análise da história das ideias que examina criticamente uma parte da literatura marxista mais explicitamente orientada para uma acentuação muito mais epistemológico-metodológica da crítica da economia política do que para uma consideração de conteúdo consubstanciada em práticas sociais fatuais.
Neste sentido, é muito claro o pronunciamento de Vieira contra a abordagem de L. Althusser, sua excessiva concentração sobre o problema da cientificidade, com sua pretensa necessidade de distinguir, no que diz respeito à teoria do conhecimento, entre o plano do conceito e o plano do objeto, entre o concreto-de-pensamento e o concreto-realidade. A tese da interioridade radical da prática teórica, que seria validada através de princípios de cientificidade que não fazem referência a um mundo objetivo externo, ou seja, a teoria althusseriana da ciência como trânsito da Generalidade I para a Generalidade III através da Generalidade II, faz parte de uma filosofia geral que acaba por impor seu logicismo e suas abstrações generalizantes sobre a história específica e temporalmente determinada da sociedade moderna como sociedade do capital. Ou seja, a oposição em muitos aspectos maniqueísta entre estruturalismo e historicismo levou o pensamento de Althusser a uma hipostasiação da ciência que o impediu de ver qualquer possível fundamento e geração de processos de abstração e generalização no próprio cerne do ser social e das suas práticas fatuais, e levou Vieira a falar de um verdadeiro processo de substanciação da ciência realizado pelo althusserianismo: como consequência, inclusive, da sua teoria de um processo sem sujeito e, portanto, do impedimento de se aceitar qualquer hipótese de um processo de universalização e de extensão à totalidade por parte do Sujeito/Capital.
Ele dá primazia a uma ordem teórica compreendida como posta e como resultado de uma escolha. Por esse raciocínio, suprime-se então o caráter real das abstrações e de suas conexões, para só conferir de alguma maneira esse caráter aos campos teóricos. Pois, se se pode escolher entre campos teóricos diversos, isso quer dizer que eles se equivalem, que todos eles possuem um mesmo estatuto de validade – o que, evidentemente, não é o caso quando se trata da obra de Marx e do que ela autoriza como interpretação possível. (p. 270)
Mas, em se tratando de um marxismo que pretende conter a história na lógica e especificamente na lógica da ciência, a posição crítica de Vieira em relação ao marxismo italiano da escola dellavolpiana é igualmente clara. Para a nossa autora, essa escola elaborou uma transformação, em sentido epistemológico, da tradição dialética e inclinou assim a leitura da obra de Marx numa direção cientificista justamente, induzindo a mal-entendidos e a profundas deformações. A dialética que Della Volpe empreendeu revela-se de fato uma estranha mistura de kantismo e empirismo, com uma forte inclinação humana, que transfere as oposições sócio-históricas de Marx para o plano das duas faculdades transcendentais de sensibilidade e intelecto teorizadas por Kant na Crítica da Razão Pura. Daí o materialismo de Marx passar curiosamente de fatos particulares finitos – apreendidos através dos sentidos e depois generalizados por meio de abstrações lógicas – à busca de leis universais a serem finalmente verificadas com a experiência em um retorno aos dados sensíveis iniciais. Assim, a eterna lógica da ciência, constituída pelo “círculo concreto-abstrato-concreto”, encontraria sua confirmação na sociedade capitalista moderna, onde os processos de alienação dos indivíduos sensíveis e concretos seriam homólogos a um processo cognitivo que se eleva do individual à lei universal para verificá-la novamente no mundo concreto do individual. Mas, mesmo aqui, Vieira não hesita em falar de um logicismo que prevalece forçosamente sobre a história. Funda-se, como ela observa, sobre o fato de não haver nenhum ponto de partida empírico no Capital de Marx, como pretendiam Della Volpe e seus alunos, inclusive L. Colletti, uma vez que o concreto marxiano não tem a simplicidade da sensação humana, mas é uma síntese de muitas determinações. Assim, como tal, já é rico de todo o corpo social e na sua aparência já está presente, embora implicitamente, a totalidade das mediações e abstrações que são a estrutura e a base da gênese e reprodução desse corpo.
Aliás, não por acaso a leitura dos primeiros capítulos do Capital avançada por G. Backhaus é também objeto de fortes críticas por parte da nossa estudiosa, na medida em que também ela permanece sob o signo de um domínio lógico e metodológico. Isto ocorre especificamente sob o pretexto de que o método de Marx, na exposição da forma valor, siga fielmente o curso das categorias da lógica hegeliana: quer procedendo da substância ou conteúdo do valor a sua expressão no valor de troca (e assim passamos da essência à aparência), quer inversamente procedendo do imediato, através da mediação, ao imediato mediado. No entanto, argumenta Vieira, tal recondução do Capital de Marx à Lógica hegeliana deve ser rejeitada porque a exposição marxiana se move e procede não de acordo com a alternância das categorias, e especificamente, do abstrato e do concreto, mas sempre a partir da sua copresença. Apenas que se trata, justamente pela exposição e ampliação progressiva da visão, de explicitar o implícito, de trazer à luz o que já está subjacente, mas ainda não definido. Trata-se, em outros termos, não de um método dedutivo no sentido estrito do termo, mas de um desdobramento que pode explicitar, apenas com a passagem do antes ao depois da exposição, os pressupostos que já estruturam aquele par inicial que, no corpo da mercadoria, é constituído pela copresença do valor de uso e do valor de troca.
Se me permitem uma referência pessoal, é o que tentei definir nos meus escritos como o “círculo do pressuposto-posto”, que me parece ser a forma peculiar da ciência marxiana no Capital e que, a meu ver, coincide com a substância do discurso de Vieira quando ela nos diz que, contra logicismos e formalismos dialéticos, é apenas a introdução da história e especificamente da força de trabalho que nos permite voltar, com sua força ontológica de abstração real, a dar substância e conteúdo àquele trabalho abstrato, que no princípio diz respeito apenas à troca de mercadorias e, consequentemente, tem a ver com um conceito de valor, que paradoxalmente ainda parece ser uma abstração demasiado lógica, precisamente porque diz respeito a um valor que ainda está sem e antes do capital.
Finalmente, confirmando as múltiplas diligências que abre esta investigação muito fina e original de Vieira, não podemos deixar de referir as observações que a autora faz sobre Moishe Postone, um dos estudiosos mais interessantes dos últimos vinte anos, com sua proposta de uma superação agora definitiva de um materialismo histórico ainda muito rigidamente ligado a uma filosofia da história baseada na dicotomia estrutura e superestrutura e na contradição entre forças produtivas e relações de produção. Ou seja, ligado a uma teoria da história para a qual o progresso contínuo e unilinear da história seria o crescimento e o poder do homo faber, em que as restrições e contradições só derivariam das relações de distribuição e propriedade dos bens produzidos. De fato, Vieira reconhece o mérito de Postone por ter compreendido bem e enfatizado como no Capital de Marx, por oposição a uma teoria do trabalho em geral como fundamento da história, exista uma teoria historicamente específica do trabalho, que deve ser intrinsecamente entendido como trabalho abstrato. E assim, só a abstração do trabalho, como coração da sociedade contemporânea, pode explicar os automatismos abstratos e impessoais que impulsionam o nosso tempo e a despersonalização geral das nossas relações sociais. Mas, observa nossa autora, que o que paradoxalmente falta na análise do estudioso americano é precisamente a análise e categoria do mais-valor e sua intrínseca relação com o uso e consumo capitalista da força de trabalho. Desta forma, mesmo em Postone e em função da presença de uma teoria do valor sem mais-valor, o trabalho abstrato termina por emergir novamente do mercado e da circulação simples de mercadorias. Quase como o que acontece, devemos acrescentar, à concepção de abstração real situada na Grécia do século VII/VI a.C., por meio do surgimento do dinheiro, de acordo com a teorização desenvolvida por A. Sohn-Rethel – para citar, mais uma vez aqui, outra teorização sobre o valor abstrato que, na minha opinião, foi paradoxalmente concebida antes e sem mais-valor.
Mas, para um prefácio, isto pode ser suficiente. A contribuição deste texto ao desenvolvimento dos estudos marxianos parece-me inquestionável na sua originalidade, tanto teórica como historiográfica. Entre outros méritos já definidos, sua contribuição apresenta-se, em particular, na capacidade de historicizar os próprios Grundrisse no que diz respeito à diversa contextualização da gênese e do conteúdo do valor. Resta apenas felicitar a autora e aguardar com expectativa a leitura das suas próximas obras.
* Zaira Rodrigues Vieira: É doutora em Filosofia pela Université Paris Nanterre. Possui Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2015). Mestre em Filosofia e graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professora Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais/ Campus BH.