Por Gládis Lorinda Ludwig*—
“A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”. (Bakhtin: 124)
Percebe-se que, ainda hoje, desde os anos 70, há, entre alguns militantes de esquerda, a ideia de que seja possível mudar a realidade social, promover a inclusão de todas as identidades de gênero criando uma suposta linguagem neutra. Isso é, no mínimo, desconhecer tecnicamente esse fenômeno tão complexo que é a linguagem. É confundir identidade de gênero com gênero gramatical. É aferrar-se a um ideologismo, que desconhece as especificidades do fenômeno a ser analisado.
Há algum tempo tenho lido textos e assistido vídeos sobre esse tema. Percebo que as pessoas, principalmente fora da área de Letras (mas também e infelizmente de dentro), confundem o sistema virtual (Língua) com a sua realização concreta, que se desmembra em fala e discurso, e não identificam a parte ideologizável na linguagem, o ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e sócio-históricos que é o discurso e não a língua, ou seja, onde ocorrem as coerções sociais.
Como exemplo dessas interpretações, a meu ver equivocadas, em que se misturam fenômenos da estrutura superficial com os da estrutura profunda da língua – o que confunde a cabeça de todos, principalmente dos leigos na área – cito um vídeo publicado na página do facebook Podihhcast em 7/11/22, intitulado “A polêmica do Pronome Neutro”, no qual o entrevistado, faz as seguintes afirmações:
– Que há duas situações, dois encaminhamentos para essa questão;
– Um que ele considera mais avançado, que estaria para “além da língua”, que seria a gramaticalização do “es” – todes. Afirma corretamente que a Língua é adaptável, viva e está a serviço de uma inclusão ou exclusão; que fazemos uso dela de acordo com as nossas intencionalidades (conscientes ou inconscientes); que a Língua é heteróclita (aceita mudanças); que quem determina esse processo são os falantes e não os professores de Português ou a Gramática; que o que movimenta uma língua é a fala e não a escrita; que é um processo longo, pois uma série de elementos entram no jogo – sociais, políticos, antropológicos, filosóficos, estéticos; que se isso vai vingar, só o tempo dirá; que, na linguagem neutra, há uma intencionalidade política e social de identidade, de marcação de território, de marca de fala, do ethos (imagem);
– Outro que segue a questão clássica da Língua na qual “o” não é masculino, é neutro; que, a rigor, não temos o masculino no Português, mas o neutro; que o masculino e o singular não são marcados, enquanto o feminino e o plural são marcados; que a presença e a ausência têm significado na Língua.
No entanto, “Para a ABL, que cuida da parte normativa do idioma, a estrutura do Português não suporta um gênero neutro, que existia no latim e persiste no alemão, mas desapareceu nas línguas neolatinas. Numa língua sem gênero neutro, na qual o feminino e o masculino são sempre bem definidos, a transferência seria extremamente complexa e custosa, além de exigir flexões em vários elementos do sintagma. Outro problema é que as soluções encontradas para expressar o gênero neutro atrapalham a leitura de pessoas com dislexia e a comunicação de deficientes auditivos”. (copiado do post de 4/01/23, da página do facebook “DaLíngua Portuguesa”, intitulado “A impossibilidade Normativa do Gênero Neutro”.
Segundo José Luiz Fiorin, linguista brasileiro, no livro Linguagem e Ideologia, a natureza da flexão do gênero gramatical independe do sexo biológico ou identidade de gênero dos seres que estão sendo designados. Embora a escolha da “dita” forma masculina para expressar o genérico na Língua Portuguesa (referência ao masculino e feminino ao mesmo tempo) possa ter relação com um determinado papel do homem (sexo masculino) na sociedade, ou seja, ter sido determinado por fatores sociais, diz Fiorin que, comprovar essa hipótese é extremamente difícil porque as categorias presentes nas línguas modernas são herança das que provieram e estas categorias perderam qualquer relação com as causas que lhes deram origem e ganharam autonomia. A história do sistema da língua passou a ser uma história relativamente autônoma em relação às formações sociais em que ele está presente. Passou a ser uma história do próprio sistema, que, em geral, altera-se devido a causas internas e não a fatores sociais.
Em relação a existência de gênero gramatical, o Americano John W. Martin, vai muito além, em seu artigo intitulado “Gênero?”, publicado em 1975, na Revista Brasileira de Linguística, no qual expõe uma tese radical e muito interessante, defendendo e demonstrando que não há feminino e masculino em Português. Essa tese revoluciona nossas certezas e nos deixa incomodados, pois mexe com uma das mais corriqueiras noções gramaticais que aprendemos na escola de que existem dois gêneros na Língua Portuguesa.
Segundo ele, se não fosse o fenômeno sintático da concordância, não haveria por que falar em gênero em Português. Mesa, por exemplo, “é feminino” justamente porque exige que certos outros elementos, quais sejam artigos e adjetivos, apareçam em formas também ditas “femininas”. John Martin diz que não há masculino e feminino, mas marca de gênero em alguns casos e ausência de marca de gênero em outros. Os elementos marcados quanto ao gênero, em português, coincidem exatamente com os casos que estamos acostumados a tratar como femininos. Os outros casos, todos eles, devem ser considerados sem gênero (inclusive o chamado masculino). Explicando melhor, a forma básica dos nomes (e dos adjetivos) é não marcada quanto ao gênero. Assim, “menino”, “sapato” etc. não seriam formas masculinas, mas apenas não femininas, isto é, não marcadas quanto ao gênero. O “o” final não é uma desinência de masculino, mas uma espécie de vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras, como no caso dos verbos. Observe-se que algumas palavras têm vogal temática “e”, como “valente”, e não se flexionam quanto ao gênero. O “a” final seria (em geral) uma desinência de feminino, quando acrescentada à base. Assim, a regra que sempre estudamos passa finalmente a fazer sentido: constroem-se formas femininas acrescentando “a” à base da palavra (e eliminando o “o”).
Em que pese a linguagem ser uma instituição social, veículo das ideologias, instrumento de mediação entre os homens e a natureza, os homens e os outros homens, Fiorin, em seu livro Linguagem e Ideologia, analisa qual é o lugar das determinações ideológicas nesse complexo fenômeno. Ressalta que é preciso ter em conta que a linguagem não é uma instituição social igual às outras. Ela tem suas especificidades. Não podemos abordar os fenômenos linguísticos nos preocupando somente em analisar internamente a linguagem, estudando os fatos linguísticos em si mesmos, tampouco podemos desprezar as especificidades da linguagem somente correlacionando os fatos linguísticos aos fenômenos da estrutura social.
Nem tudo pode ser mudado por nós. A Língua é um fenômeno social e vem evoluindo ao longo dos séculos, num ritmo e direção que não temos controle. Ela é, ao mesmo tempo mutável e imutável, segundo o linguista Saussure.
Mudamos coisas da superestrutura (parte superficial da língua): acentuação, ortografia, que são regras criadas por nós e por isso mesmo modificáveis por nós. No entanto, a morfologia e a sintaxe encontram-se num nível mais profundo da Língua, que vem lá de longe (evolução histórica) e se rege por mecanismo bem mais complexos.
No entanto, não devemos confundir a relação feminino-masculino do sistema morfológico do português – “imutável” com a recusa de certos setores da sociedade de usar versões femininas de cargos e funções – isso o sistema morfológico da Língua Portuguesa permite.
Passando a discutir a polêmica mais do ponto de vista sobre o caráter ideológico e classista da linguagem, a tese fundamental de Marx e Engels sobre a linguagem é a de que esta é essencialmente – e não apenas contingentemente ou secundariamente – um fenômeno social. Abordada pela primeira vez em A Ideologia Alemã, a concepção de linguagem de Marx é inseparável de sua concepção materialista da história. Para ele, as ideias não existem separadamente da linguagem; logo, se as ideias são expressão da realidade material, o uso linguístico traz a marca das relações e das ideologias de classe. Essa tese foi interpretada por linguistas soviéticos influenciados pelas concepções de Nicolas Marr (1865-1934), na década de 30, afirmando que a linguagem tem um caráter de classe e, assim sendo, é parte da superestrutura.
A concepção de Marr foi combatida política e teoricamente por Josef Stalin, o qual afirmou que a língua não pode ser considerada uma superestrutura. Ao contrário desta, que se altera conforme a modificação ou substituição da base econômica, a língua não apresenta mutações no léxico essencial nem em sua estrutura gramatical e sintática quando há modificações ou mesmo transformações na base econômica. Além disso, a superestrutura reflete a ideologia da classe dominante e atua em prol dos interesses dessa classe para a manutenção de uma estrutura econômica. A língua, no entanto, “não é criada por uma classe, e sim por toda a sociedade, por todas as classes da sociedade; satisfaz as necessidades não apenas de uma classe qualquer em detrimento de outras classes, mas, do mesmo modo, as necessidades de todas as classes da sociedade”.
Segundo Stalin, portanto, a língua não é uma superestrutura (nem é ideológica) e não é classista. Ela seria, como um instrumento de produção – uma máquina ou uma ferramenta, indiferente às classes e a sua luta, podendo servir igualmente à burguesia e ao proletariado, ao regime capitalista e ao regime socialista. Com a diferença de que a língua não produz riquezas.
O historiador e filólogo russo Mikhail Bakhtin e seu círculo estudam como se dão as relações entre os dois níveis da estrutura da sociedade, apontando para uma superação dessas duas concepções. Esse grupo de intelectuais multidisciplinares que se dedicavam a pensar nas formas de estudar linguagem, literatura e arte questionam se as superestruturas refletem automaticamente os acontecimentos da infraestrutura e em que medida a ideologia determina a linguagem. Percebem que não se pode tratar a questão de uma forma mecanicista. Embora Bakhtin não fosse um analista do discurso, mas um filósofo da linguagem, ele alerta para o fato de que é o discurso (e não a língua) o ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e sócio-históricos. Descobre que a palavra, estando presente tanto na infraestrutura quanto na superestrutura, não é nem uma nem outra.
É importante relembrar o conceito de discurso, que não é nem a língua e nem a fala. Discurso é a atividade linguística, nas múltiplas e infindáveis ocorrências na vida do indivíduo. É a língua atualizada num momento por um dado indivíduo, quer como fala (discurso oral), quer como escrita (discurso escrito); a mensagem na base de um código (Língua); a linguagem posta em ação; a língua assumida pelo falante.
A linguagem, portanto, ao mesmo tempo em que é condicionada pela organização social dos indivíduos, refletindo a realidade material da sociedade (infraestrutura), tem um índice de valor social que a insere no domínio da ideologia (superestrutura). Uma tendência do pensamento marxista é a de tomar o discurso como o lugar por excelência da realização da ideologia.
Bakthin demonstra que, tanto Marr quanto Stalin , se equivocaram. O primeiro por ter absolutizado o caráter ideológico e classista da linguagem e o segundo por ter negado esse caráter. Aquele por não perceber a autonomia relativa do sistema linguístico em relação à luta de classes, e este por ignorar o uso linguístico, inscrito numa relação ideológica de classe; ou seja, a realização concreta da língua (discurso) é que pode se prestar a servir a esta ou àquela classe social.
Vemos, portanto, que há dois equívocos no estudo da linguagem. O primeiro consiste em preocupar-se somente com a análise da linguagem internamente, estudando os fatos linguísticos em si mesmos. O segundo em desprezar as especificidades da linguagem e buscar correlacionar fatos linguísticos como fenômenos da estrutura social.
Essa compreensão generalizada entre alguns setores da esquerda que estabelece uma relação mecânica entre a língua e a sociedade é muito simplificada. Não é porque a sociedade é machista e a língua seu reflexo, que a língua também seja machista, especialmente nesse caso específico dos fenômenos morfológicos. A Língua pode ser machista nas questões inscritas no nível do discurso. Essa posição nega a relativa autonomia do sistema linguístico em relação aos seus usuários, tal qual asseverado pela própria Análise do Discurso.
Resumindo, parece-me que o “senso comum” e/ou o “ideologismo” é o que faz existir a confusão entre o sistema abstrato de regularidades (fonológicas, morfológicas e sintáticas), com o funcionamento discursivo da Língua, bem como a confusão entre gênero gramatical com sexo biológico e gênero social.
*Gládis Lorinda Ludwig, militante do PRC/RS, servidora aposentada do TRT4, formada em Letras (FAPA), com especializações em “Língua e Literatura – uma abordagem textual” (FAPA) e “Literatura Brasileira” (UFRGS).