Por Observatório do Estado Social Brasileiro*—

As mudanças na esfera do trabalho e do consumo reverberaram, de diferentes modos, na precarização do trabalho e na sociabilidade dos trabalhadores. O regime de sociabilidade do romance fabril de Charles Dickens, Tempos Difíceis, escrito no século XIX ou mesmo a brilhante imersão de Robert Linhart, em Greve na fábrica, do final dos anos 1970, pereceu.

O antigo trabalho localizado no interior das fábricas pressupunha um compromisso, movido por relações de poder assimétricas, entre trabalhadores, sindicatos, patrões e o Estado. Havia desemprego e intensa exploração do trabalho. A escala, no entanto, era outra. A contemporaneidade apresenta o desemprego e a informalidade como dado estrutural da economia que atinge, especialmente, os jovens pobres e negros.

No Brasil, esse contexto caracterizou aquilo que o economista Márcio Pochmann (2022) chamou de “guerra civil pelo emprego”. Setores tradicionais como a construção civil e a indústria de transformação passaram a empregar menos que o comércio e os serviços. O aumento da informalidade nesses setores pavimentou o caminho para atuação das empresas de compartilhamento em uma terra virgem de regulamentação. De acordo com o levantamento do IBGE, o Brasil teve, em 2022, 1,5 milhão de pessoas trabalhando por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços.

Figura 1. Brasil, evolução dos vínculos com a Gig Economy. Fonte: IPEA (2022).

A Figura 1 indica as ocupações do setor de transporte identificados, grosso modo, com o setor de compartilhamento. Não há consenso, do ponto de vista terminológico, para caracterizar essa economia. Gig economy, economia compartilhada ou mesmo urberização (SLEE, 2017) estão entre os nomes para aquilo que Srnicek (2014) denominou de “capitalismo de plataforma”. A pesquisa do IPEA (2022) tem como ponto de partida o conceito de Gig economy, também referido como freelance economy ou economy on demand. A partir desse guarda-chuva conceitual, a ocupação de entregador de moto passou de 44,5 mil em 2016 para 322,7 mil, em 2021, e a ocupação mototaxista passou de 254.797, em 2012, para 222.133 em 2021.

Não é sem motivo que a proposta de regulamentação do trabalho dos trabalhadores por aplicativo, na modalidade transporte, tenha excluído os trabalhadores motociclistas. É a parte mais frágil, formada, fundamentalmente, por jovens expostos a uma variada gama de riscos laborais. Dirigir um carro é diferente de pilotar uma moto por dezenas de horas por semana. Os riscos cotidianos dessa atividade jamais serão socializados com as grandes plataformas ou mesmo com o Estado.

Mas queremos espiar esses dados de outro prisma. É possível, sem nunca esquecer as questões estruturais, procurar compreender a totalidade a partir de um fragmento. De um trabalhador específico. Em algum lugar da Figura 1 esconde-se o jovem negro, morador de uma periferia metropolitana e entregador motociclista por aplicativo, Winicius Alves de Freitas. Resolveu, quando estudante de graduação do curso de geografia, registrar sua rotina de motociclista entregador em uma planilha. Não o fez seguindo os enfadonhos ritos daqueles que, porque distantes, pretendem mergulhar, retoricamente, no objeto de pesquisa. O fez por conta da necessidade e do pragmatismo que caracteriza a sobrevivência diária dos mais vulneráveis.

Impossível ficar indiferente diante dos dados coletados e registrados na monografia adjetivada de 99 dias no front: um relato de experiência sobre motociclistas entregadores por aplicativo de Goiânia. Nos 99 registros diários, tendo o leitor alguma sensibilidade, perceberá que a fábrica do novo trabalho precário é a cidade. Os distintos sítios urbanos, portanto, contam histórias cotidianas de exposição aos riscos. Riscos da morfologia, do clima, da ecologia urbana. Riscos de traumas ortopédicos e lesões temporárias e/ou permanentes. Risco de carcinomas. O leitor atento perceberá que, somente nesse momento histórico, o trabalhador conheceu o verdadeiro inferno da flexibilidade.

Corridas diárias e quase simultâneas com passageiros e entregas. Se a refeição esfria, a culpa recai sobre o entregador motociclista. Se a comida atrasa, a culpa recai sobre o entregador motociclista. Não há, como no velho capitalismo fabril, a necessidade do relógio de ponto fincado na porta da fábrica, banheiros ou refeitórios. Os roubos de tempo, para recordar o historiador Thompson, em Tempo, disciplina e trabalho no capitalismo fabril, é feito, aparentemente, pelo algoritmo. O algoritmo, no entanto, tem CNPJ e é facilmente reconhecido pelas cores das bags dos motociclistas que povoam a paisagem urbana. Assim, a precariedade acompanha o projeto disciplinar das plataformas.

Os custos rotineiros do trabalho, registrados com detalhes por Winicius Alves Freitas, não são mais socializados com o Estado ou mesmo o empregador. Uma água, um lanche, uma refeição, um picolé, não pesam tanto, nos custos finais, como a gasolina, o óleo, a embreagem, os pneus, a manutenção diária das motocicletas. Há uma simbiose entre a motocicleta e o trabalhador. Um não vive sem o outro e, metaforicamente, o adoecimento de qualquer um deles resultará diretamente na redução da renda. O mimetismo os desumaniza.

Durante os 99 dias no front Winicius Alves Freitas percorreu nada menos que 13.373 Km, o que correspondeu a 1.241 corridas e 1.205 passageiros e 36 entregas. A média da remuneração, por Km rodado, considerando o rendimento líquido, foi de 0,44 centavos de real. Não é, no entanto, um recordista. É preciso sublinhar que Winicius Alves Freitas, ainda, dividia o tempo do trabalho precário com o tempo das atividades acadêmicas noturnas. Aqui as histórias da educação e do trabalho se cruzam na tentativa de dobrar o destino.

O registro, em planilha, disponibilizado pelo Observatório do Estado Social Brasileiro, pode ser um insumo para compreendermos os motivos pelos quais as plataformas digitais não têm interesse em regulamentar o trabalho, estabelecendo remuneração mínima para as corridas, contribuição previdenciária, ajuda de custo para manutenção das motocicletas e o cesso a infraestrutura sanitária em pontos de apoio e/ou restaurantes e bares. Isso tem uma justificativa simples. A taxa de desocupados entre 18 e 24 anos no terceiro trimestre de 2023 atingiu 15,3% e de 14 a 17 anos 28,2%. Se fragmentarmos os dados poderemos enxergar sua espacialidade e sua natureza classistas. O jovem pobre e desempregado deposita na aquisição de uma motocicleta ou até mesmo de uma bicicleta, frequentemente financiada, a opção de alguma renda.

Essa é a verdadeira infantaria do capitalismo de plataforma. É por causa de centenas de milhares de jovens que arriscam suas vidas, transportando gente, comida e mercadorias, que devemos exigir, por meio da regulamentação, melhorias nas condições de trabalho e remuneração dos entregadores motociclistas por aplicativos.

Referências


DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2014.

IBGE. Taxa de desocupação por idade. Terceiro trimestre de 2023. In: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series-historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=desemprego.

IPEA. Carta de conjuntura número 55. Nota de conjuntura número 14. Góes, Geraldo, Firmino, Antony; Martins, Felipe. Painel da Gig Economy no setor de transportes do Brasil: quem, onde, quantos e quanto ganham. Brasília, IPEA, 2022. In: http://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2022/05/painel-da-gig-economy-no-setor-de-transportes-do-brasil-quem-onde-quantos-e-quanto-ganham/.

LINHART, Robert. Greve na Fábrica. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978.

POCHAMNN, Marcio. Entrevista. In. Sistema jagunço: porque o iFood tenta esconder sua relação com as empresas intermediárias. In: https://www.brasildefato.com.br/2022/04/14/ifood-tenta-censurar-video-que-mostra-relacao-com-empresas-intermediarias.

SLEE, Tom.Uberização. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

SRNICEK, NickCapitalismo de Plataforma. Buenos Aires: Caja Negra Editora, 2014.

 

*Publicado originalmente no site A Terra é Redonda.


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