Por PRC—

A crise do capital e da ordem imperialista

As eleições brasileiras de 2022 ocorreram durante a persistente Fase Depressiva da atual Onda Longa vivida pelo capitalismo em escala planetária, que não dá sinais de recuperação. Nesse período acontece um reordenamento na geopolítica internacional por cima da velha ordem em declínio, compondo uma situação diversificada, instável e complexa. Adicionalmente, o movimento comunista e as forças populares ainda se veem obrigados a experimentar, em geral, uma defensiva estratégica.

O cenário das mudanças na relação entre as potências mundiais e regionais é marcado pelo esgotamento nas expectativas ou políticas geradas pelo chamado neoliberalismo. Tal doutrina conservadora, adotada pelo FMI e pelo Banco Mundial nos anos 1980, buscou superar os impasses enfrentados pelo capital. Para tanto, pavimentou o caminho dito único da “globalização”, que preconizou a desregulamentação da mundialização capitalista e o pretenso fim das lutas de classes. Anunciou assim uma paz e um progresso fictícios ou enganosos no interior da ordem vigente, ainda mais quando associados a uma história finda.

O receituário, conhecido como Consenso de Washington, tornou-se a contrapartida obrigatória nas relações dos centros imperialistas com os países dependentes, sobretudo em situações de impasse agudo. Entre outros descalabros, tentou impor a completa abertura das economias locais ao capital monopolista-financeiro transnacional, inclusive o fim das medidas protetivas aos interesses regionais, nacionais e populares. Ademais, exigiu a eliminação do protagonismo estatal no desenvolvimento econômico-social, bem como a entrega dos patrimônios, empresas e serviços públicos à burguesia privada.

Concomitantemente, a bula neoclássica obrigou os governos mais frágeis ou alinhados a reduzirem as cargas tributárias sobre o capital, a minimizarem as estruturas administrativas que prestam serviços essenciais à população e a abandonarem os investimentos ou gastos. Igualmente, procurou suprimir ou desregulamentar as medidas destinadas ao controle e ao planejamento econômicos. Também atacou os direitos trabalhistas, as conquistas sindicais e as políticas públicas universais.

Tal projeto contrarreformista, aplicado inicialmente no Reino Unido e nos EUA, foi insuficiente para alavancar a prosperidade anunciada pelos ideólogos, porta-vozes e prepostos dos magnatas. Ao contrário, permanecem as crises e fragilidades estatais nos países periféricos, além da submissão aos centros imperialistas. Acontecem, ainda, a concentração de riquezas, a instabilidade econômica, as recessões, a baixa na taxa de lucros, a precarização das relações laborais, a eliminação de direitos trabalhista-sindicais, o estrangulamento dos serviços sociais e a miséria generalizada.

O fracasso da “globalização”, com a persistência dos carecimentos no mundo burguês dentro e fora dos espaços nacionais, recoloca na ordem do dia o debate sobre o caráter do Estado, além do seu papel na reprodução do capital, nas condições materiais do desenvolvimento, na proteção aos interesses dominantes e nas disputas interimperialistas por “espaços vitais” caros à tradição nazifascista. O capital, especialmente os monopólios financeiros, segue apátrida, mas controla e reafirma o papel insubstituível do seu Estado na atual sociabilidade, para o metabolismo econômico e o desenvolvimento social.

Juntamente ao esgotamento de um liberalismo anacrônico e falsificado, bem como à persistente ascensão de economias discrepantes em face da hegemonia vigente – algumas, contrapostas à “globalização”, como a asiática chinesa e a bicontinental russa –, o ditado estadunidense ao mundo pela unipolaridade iniciou o seu ocaso. Concomitantemente, há claros sinais de que está edificando-se, sob as contradições e os conflitos agudos em várias partes do mundo, uma nova divisão internacional de trabalho e alterações na correlação de forças.

Tentando superar os impasses da atual e mais longa Fase Depressiva do capitalismo, assim como a perda relativa do seu controle, domínio e influência sobre áreas estratégicas, os EUA nomearam a nação chinesa como principal inimigo e recuperaram a política de “guerra fria”. Ao mesmo tempo, promovem a corrida armamentista, expandem a Otan e patrocinam aventuras beligerantes, como na Ucrânia, acentuando o risco de confrontação atômica. A tal cenário se agregam provocações, como no território chinês de Taiwan, e operações para desestabilizar governos considerados hostis, como no Irã.

A União Europeia, controlada por potências imperialistas, amarga um doloroso inverno ao ligar o seu destino aos ditames estadunidenses. Na ausência de situações revolucionárias generalizadas, alternativas avançadas que empolguem multidões e soluções confiáveis para os estorvos econômicos, cresceu a extrema-direita com seu espectro de autocratismo e fascismo. As suas derivações, igualmente a serviço dos conglomerados monopolista-financeiros, influenciam certas camadas populares sem opções visíveis e galgam postos em algumas instituições públicas, inclusive governos.

Neste quadro de crise multilateral, agravado pelos efeitos da Pandemia e sem perspectivas de solução em curto ou médio prazo, acirram-se as disputas político-ideológicas, as efervescências sociais e os conflitos locais, nacionais ou regionais, em que ressurgem com influência considerável as forças reacionárias, marcadas pelo viés de conservadorismo, intolerância, xenofobia e racismo, às vezes o nacionalismo de direita, não raro o entreguismo. O perigo que representam somente será vencido, definitivamente, pela via da mobilização ampla e da luta popular de massas.

Na América Latina, as disputas eleitorais vêm proporcionando governos progressistas que resistem à reação política e aos efeitos da crise, sob os ângulos democráticos e populares, cada qual a seu modo. Destaque-se que todos enfrentam uma oposição sem tréguas. Considerando-se o peso do Brasil no cenário internacional, a vitória eleitoral da frente ampla, com a chapa Lula-Alckmin, tonifica o combate à extrema-direita no Continente, reforçando a ação comum entre governos, estados e nações latino-americanas com o propósito de acelerar a integração regional a partir do Cone Sul.

Para os comunistas, ao lado das forças democráticas, progressistas e populares, é fundamental pautar as atuações pela denúncia ao imperialismo estadunidense, inclusive às suas pretensões e aos seus instrumentos bélicos, como a Otan, organização militar que, ao contrário dos objetivos autodeclarados, tem um caráter ofensivo. Com a mesma ênfase, é preciso condenar a corrida armamentista, as chantagens e as sanções impostas aos países que resistem às pressões de fora, como Cuba, Nicarágua e Venezuela.

Concomitantemente, urge lutar pela paz mundial e rejeitar as guerras imperialistas. Concretamente, trata-se de sustentar a resolução de conflitos mediante as formas pacíficas, a solidariedade entre os povos, o princípio da autodeterminação, o respeito à soberania, o reforço à defesa interna e a resistência militar às agressões externas, em face da tradição e das práticas das grandes potências. Papel destacado merece o rechaço às suas interferências nos assuntos internos das nações.

Surge a reação bolsonariana

Em 1964, o golpe contra o presidente João Goulart eliminou as liberdades democráticas e implantou o regime ditatorial-militar que durou até outubro de 1988. O fim do governo burguês-reformista de então interrompeu a marcha ascensional das Reformas de Base, que procurava superar muitos dos impasses que até hoje persistem na sociedade brasileira, a exemplo das questões democrática, nacional, fiscal, agrária e urbana, além dos problemas basilares da saúde e da educação públicas.

Enquanto foi possível – sempre invocando o combate ao comunismo e à “subversão”, evocando os pretensos valores da cristandade, da Pátria e da família –, a repressão policial-militar sufocou, perseguiu, calou, prendeu, torturou, exilou e assassinou os oposicionistas, de todos os matizes e origens, incluindo antigos apoiadores. Dedicou especial atenção aos partidos e organizações revolucionários, extensivamente, aos dirigentes e militantes comprometidos com os interesses imediatos e históricos do povo brasileiro.

Foram suprimidas as liberdades de reunião e expressão. Proibidas as entidades e os movimentos civis. Eliminados os direitos políticos de manifestação ou expressão, de votar ou ser votado, de inviolabilidade aos mandatos e de livre organização partidária. O objetivo era remover os obstáculos aos interesses dos monopólios financeiros internacionais e de seus associados internos, em fase de concentração e centralização, inclusive as suas articulações em detrimento das classes exploradas e oprimidas no terreno local. Uma das consequências foi a piora significativa nas condições vitais das massas.

O domínio da caserna sobre a sociedade civil e a sociedade política foi, em ritmo crescente, justificando as diversas formas de resistência, inclusive armadas. Com o terrorismo estatal institucionalizado, as forças oposicionistas acabaram tangidas à unidade no combate democrático. Acumulando forças, as iniciativas oposicionistas somaram vitórias importantes, como o reinício dos movimentos sindicais e populares, o recurso a greves e manifestações públicas, o fim da censura e a liberdade de organização partidária. Por fim, a convocação de eleições livres e diretas.

A mobilização unificada pelo fim do regime militar incorporou diversas classes e correntes de opinião. Foi multipartidária e politicamente ampla, englobando todos que lutavam pelas liberdades. Tendo como ponto de partida a resistência democrática, assumia na mesma medida as reivindicações imediatas dos “de baixo”, além de pleitos anti-imperialistas, antilatifundiários e até anticapitalistas. Abarcando interesses distintos, os embates, frutos da necessidade histórica e do esforço consciente em diferentes setores, desdobraram-se em vontade nacional e na exigência de mudanças progressistas.

Tal processo resultou na Assembleia Constituinte que, mediante a nova Constituição, em 1988, encerrou o pesadelo ditatorial de 24 anos, reestabeleceu o regime democrático, retomou as eleições em todos os níveis e garantiu conquistas sociais relevantes. Ainda que tutelada pela hegemonia liberal-conservadora, que deteve o acerto de contas com o período anterior, a transição abriu um novo período na luta de classes, mudando a correlação de forças, implantando um cenário de liberdades políticas e isolando os egressos da vencida ordem castrense.

Desde então, as lutas de classes passaram a travar-se nos parâmetros constitucionais, ainda que sob as conhecidas restrições e limites, além de continuarem a ocorrer no interior do velho Estado do capital. A sociedade civil e a sociedade política – incluindo os órgãos e agentes públicos – assumiram a manutenção do ambiente democrático assim constituído e o seu desenvolvimento dentro das fronteiras ou prerrogativas legais. Nesses parâmetros, mesmo sem realizar todas as possibilidades no ambiente constituinte, o País avançou, ainda que amargasse retrocessos episódicos e momentâneos.

Semelhante processo resultou em sete eleições congressuais e presidenciais. Os quatro governos social-liberais, até a deposição de Dilma Rousseff, deram frutos importantes. Em uma situação econômica internacional relativamente estável e sem afetar os interesses de monopólios industrial-financeiros: protegeram as camadas populares mais empobrecidas, adotaram políticas de amparo social, incrementaram o consumo interno, fortaleceram a inserção mundial dos interesses nacionais e desenvolveram uma política externa altiva.

Entrementes, as sucessivas recessões a partir de 2014, alternadamente com baixos índices positivos do PIB, compuseram uma persistente concavidade na economia. Tal quadro favoreceu a reação conservadora, mormente em uma conjuntura internacional de estagnação industrial, esgotamento das ilusões neoliberais, fim da “globalização”, defensiva das forças populares e busca pelos grupos monopolista-financeiros de opções que redinamizassem a reprodução do capital.

A Ação Penal 470 foi um marco, pois iniciou o aparelhamento do arcabouço jurídico para fins lawfaristas. No mesmo ambiente, as manifestações de 2013 acabaram capturadas por setores à direita. Adicionalmente, a “Operação Lava Jato” instrumentalizou parcelas do Judiciário, abrindo espaços para uma campanha de denúncias orquestrada contra partidos e dirigentes populares, visando à destituição da então presidente e à prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As diferentes alternativas conservadoras disputaram a direção da reviravolta política.

Na senda aberta pelas manobras persecutórias e punitivistas nas franjas do Governo Temer, a extrema-direita se impôs como alternativa ao social-liberalismo: desbancou a oposição liberal, além de atrair os demais setores fisiológicos e oportunistas. Paulatinamente, no ambiente da crise que assolava os seus partidos tradicionais, o grosso da classe dominante se reuniu em torno de uma candidatura com discurso violento, demagógico e formalmente antiestablishment, o então deputado federal Jair Bolsonaro, até aquele momento visto na sua face meramente caricata e burlesca.

Eleito em 2018, para surpresa de muitos e preocupação das forças democráticas mais consequentes, o pretendente a ditador afirmou sua condição de porta-voz do protofascismo emergente no País. Com sua posse, em 1º/1/2019, encerrou-se um ciclo da vida política brasileira, no qual as lutas de classes se desenvolviam consensualmente nos marcos do democratismo burguês. Ato contínuo abriu-se o novo período, em que os governantes passaram a atacar o regime democrático e em que as falanges reacionárias, em franca organização e crescimento, tentavam a sua liquidação pela via autogolpista.

Ao assumir o ultraliberalismo como política econômica, conforme o qual o único papel do Estado é servir ao capital monopolista-financeiro interno e externo sem quaisquer mediações ou pruridos, Bolsonaro escancarou os seus compromissos com o imperialismo estadunidense e o desmanche dos direitos previstos na Constituição de 1988, bem como procurou eliminar completamente a soberania nacional, o patrimônio público e os serviços estatais. As cores verde e amarela foram transformadas em um símbolo postiço e sem correspondência com a realidade.

O povo atacado e a Nação dividida

A carreira política do chefete foi construída com base no elogio ao golpe de 1964 e ao regime ditatorial-militar, assim como no combate às forças democráticas e progressistas, extensivamente aos seus valores e opiniões políticos, todos invariavelmente nomeados como comunistas e petistas ou, genericamente, de esquerda. No exercício do mandato e nos processos eleitorais, o agora comandante da extrema-direita brasileira sempre anunciou as suas pretensões de sustar as liberdades, suprimir os direitos populares, implantar um regime autocrático e eliminar fisicamente os seus opositores.

Desde o momento em que virou primeiro mandatário, o ex-tenente, afastado das Forças Armadas por conduta inadequada, pregou o fim do regime democrático e colocou o autogolpe como objetivo central. No Palácio do Planalto, instrumentalizou o aparato governamental, apostou na polarização beligerante para juntar sua horda fanática, aglutinou os burgueses, políticos ou religiosos mais reacionários, atraiu parcelas da sociedade civil ligadas à direita tradicional – ou oscilantes –, montou milícias informáticas especializadas em divulgar mentiras ou intrigas e patrocinou uma rede nacional de milícias armadas.

Assim, invadiu espaços oficiais e aumentou sua audiência, consolidando o corpo de uma extrema-direita sem uniformidade doutrinária. Na reunião com Olavo de Carvalho e Steve Bannon, em Washington, no início do mandato, na fritura de aliados, nos ataques ao Legislativo ou ao Judiciário, na formação de bandos paramilitares ou digitais, na submissão das FFAA às suas pretensões particulares, na desvirtuação do Bicentenário, no rebaixamento do Dia da Pátria a comício eleitoral, nas ações dentro e fora do governo, as crises que insuflou e seus recuos táticos tinham foco: solapar e liquidar o regime político.

Para enfrentar a situação, a resistência colecionou derrotas enquanto agiu dividida e vitórias quando atuou unitariamente. Foi assim nas disputas congressuais e nos movimentos “de baixo”. Nessa alteridade, a ascensão da extrema-direita, o perigo autogolpista, a exacerbação pandêmica pela sabotagem às normas sanitárias, a degradação nas condições de vida, as mudanças na correlação de forças, as experiências em diferentes setores e a proximidade da sucessão, colocaram na ordem do dia o fim no Governo Bolsonaro pela única via possível na conjuntura: o processo eleitoral.

A situação tornou incontornável a unidade das forças democráticas e progressistas. Na sequência, a comemoração no Primeiro de Maio em 2021, pelo Fórum das Centrais Sindicais, reuniu dirigentes sindicais, partidários e populares, assim como artistas, intelectuais e religiosos de várias inclinações políticas. No ano seguinte, a Faculdade de Direito da USP, em 11 de agosto, sediou um ato de acadêmicos, empresários, juristas e artistas, com leitura de duas cartas: uma apoiada por 120 entidades da sociedade civil; outra com mais de 900 mil assinaturas, inclusive as de oito “presidenciáveis”.

O imperativo de uma frente ampla que propiciasse as condições para se unirem as forças, entidades ou pessoas dispostas a desafiar e enfrentar a extrema-direita nas lutas reais, visando a retirá-la do Planalto, foi discutido pelo Partido da Refundação Comunista desde as disputas que culminaram na destituição de Rousseff. Com Bolsonaro na Presidência, tal alargamento de alianças deixou de ser um debate teórico e se tornou a tarefa político-prática que orientou a intervenção do PRC nos movimentos populares, nos processos institucionais em todos os níveis e nos embates eleitoral-parlamentares.

Ignorada, depois atacada e posteriormente sabotada – especialmente por segmentos doutrinaristas, voluntaristas, sectários ou carreiristas –, a frente ampla de salvação democrática, inicialmente como proposta, ampliou a sua audiência. A seguir, adquiriu musculatura quando foi de fato aplicada pelo então pré-candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo sem apresentação clara. O movimento “Vamos Juntos Pelo Brasil” e a indicação da chapa Lula-Alckmin representaram uma viragem, um salto de qualidade. O resultado das eleições só comprova a correção dessa tática.

Inicialmente composta por 10 partidos, a frente ampla, mesmo com baixa densidade orgânica e personificada além do razoável, foi responsável pela vitória oposicionista e a derrota hiperdireitista. Ao reunir os setores democráticos, mostrou-se efetiva e desenvolta para alargar suas bases de apoio e sensibilizar grandes massas. Demostrou ainda seriedade e compromisso com a disputa pelo voto. Ademais, transmitiu segurança aos eleitores indecisos e polarizou definitivamente a sociedade, esvaziando as aventuras divisionistas, todas sem a responsabilidade mínima em face do drama nacional.

A incompreensão sobre o momento histórico e a conjuntura política, bem como as opções táticas equivocadas e os oportunismos, atrasaram e em alguns casos até inviabilizaram a unidade no primeiro turno. A maioria dos problemas foi contornada e, no segundo, os novos acordos se consolidaram. Certa confusão, somada à inexistência de estruturas orgânicas da aliança por cima ou por baixo para efetivar atividades e dirigir a campanha nas diversas áreas, dificultou a participação de milhões e obstou a realização completa do potencial disponível. Eis porque a margem de maioria ficou pequena.

Logo, a importância da vitória não pode mascarar os aspectos negativos. A reação bolsonariana, com seus agregados, cresceu nos parlamentos. Suas demais candidaturas majoritárias – governos e Senado – obtiveram êxito nos três estados com maior colégio eleitoral, os centros nevrálgicos do capitalismo e das lutas de classes no País: no primeiro turno, MG e RJ; no returno, SP. Mesmo com novos apoios e o predomínio da política ampla em nível nacional, a diferença de votos entre Lula-Alckimin e a extrema-direita, que antes havia sido 5,2% ou seis milhões, caiu para 1,8% ou 2,14 milhões.

Envolvendo dois polos antagônicos e consolidados em torno de temas essenciais aos brasileiros, como a soberania, as liberdades democráticas, os direitos civis, a moral, os costumes, os direitos sociais, a corrupção e as necessidades da população, a campanha eleitoral se radicalizou. Caracterizou-se por ameaças, chantagens, violência política, uso descarado dos recursos públicos, veiculação massiva de mentiras, ataques sórdidos, provocações e ameaças. Eis o arsenal exemplar e típico das hordas extremo-direitas, que expôs a complexa divisão na sociedade, de cima a baixo.

A cisão alcançou as instâncias superiores do Judiciário brasileiro e seus órgãos auxiliares, especialmente o STF, o TSE e os seus ministros. Após descaminhos e vacilações, tais instituições acabaram jogando um papel-chave para manter a legalidade constitucional, deter as tentativas golpistas e assegurar o processo eleitoral, garantindo assim a sua incolumidade, lisura e legitimidade. Mesmo compondo, por determinação sócio-histórica, um aparato estatal de classe, na conjuntura específica e decisiva de uma Nação à beira do abismo acabou somando esforços na jornada democrática.

Agora, a disposição do chefete é amplificar a instabilidade política. Encerrada a tentativa de inviabilizar a transição e a posse dos eleitos, tentará manter-se nas “Luzes da Ribalta” política, mesmo com a ruína do continuísmo e de seus esquemas institucionais, bem como a debilitação de sua base social. Para tanto, contesta o resultado das urnas e estimula os acólitos a fustigar a Justiça Eleitoral, bloquear rodovias, manter acampamentos nas portas de quartéis e pedir a intervenção militar. Neste quadro, os protocolos e ritos de passagem assumiram uma dimensão política maior, ajudando a isolar o putschismo.

As condutas adequadas ao atual período

Por mais importante que tenha sido a vitória eleitoral, as classes populares ou seus escolhidos não estão no poder e nem infligiram uma derrota decisiva na extrema-direita. Aliás, a campanha, os seus resultados e os eventos posteriores mostraram que o protofascismo, mesmo enfrentando um movimento democrático amplo e majoritário, até obteve um resultado eleitoral expressivo. Ostentou apoios diversificados, valores fundamentalistas impermeáveis, características estáveis, nível de organização, capacidade mobilizadora e agressividade.

Seus comportamentos e atitudes não deixam qualquer sombra de dúvidas sobre a oposição planejada: feroz, sectária e intransigente. Jurando hostilidade permanente e sem tréguas aos “inimigos”, apostará na polarização beligerante. Ademais, buscará consolidar suas redes apoiadoras e bases de massas, disputando políticas, fazendo mobilizações, aproveitando-se das contradições no interior da frente ampla, especulando com os liberal-conservadores e sabotando o Governo Lula-Alckmin. Para tanto, contará com uma presença institucional considerável – governadores, prefeitos, deputados e vereadores.

O grave erro cometido por partidos e agrupamentos que recusaram a frente ampla só não gerou uma tragédia irreparável porque a maioria da população brasileira, disposta a derrotar a ameaça regressiva, optou pela unidade e ignorou o canto da sereia divisionista. O mesmo pode ser dito agora. Dando consequência à tática correta e seus desdobramentos, dentro e fora das instituições estatais, inclusive no movimento de massas, os comunistas, os patriotas, os democratas, os progressistas, enfim, as forças comprometidas com o futuro do povo brasileiro, devem sustentar o novo governo.

Posicionamentos oposicionistas a priori, abertos ou velados, de caráter vanguardista e pautados pelo “esquerdismo” – no sentido lenineano da palavra –, precisam ser recusados com a veemência que o combate ao fascismo sempre exigiu e hoje repõe na disputa política. As eventuais discordâncias entre aliados devem ser equacionadas com métodos adequados e reforçando a unidade das forças que apoiam o novo Governo. Para tanto, demandam um tratamento caso a caso, a partir dos problemas e condutas concretos.

Para explorar as possibilidades abertas na conjuntura, o combate democrático precisa combinar-se com as demais dimensões fundamentais das lutas entre as classes. Jamais poderá afastar-se das outras esferas políticas, com as quais precisa manter articulações estreitas e permanentes. Deve alçar-se a um nível mais elevado, a defesa do próprio regime político, e admitir os demais reclamos populares igualmente básicos, abrindo caminho para a solução de impasses históricos e crônicos da formação econômico-social brasileira, ainda por serem equacionados adequadamente.

Sem a compreensão cabal dessa totalidade, os pioneiros sociais abandonariam as massas populares à demagogia da extrema-direita, que vem especulando com as carências reais das multidões e as instrumentalizando para manter o jugo monopolista-financeiro. Há questões sensíveis e fundamentais que merecem abordagens fortes, mas lúcidas e mediadas. A questão nacional, frequentemente subestimada, exige atenção especial: jamais pode ser abandonada ao monopólio dos apropriadores indébitos, como aconteceu durante as comemorações do Bicentenário e no Dia da Independência.

Quando a extrema-direita se consolidou sobre os escombros do conservadorismo tradicional e se beneficiou da situação defensiva imposta ao Bloco Histórico, a disputa contra-hegemônica – isto é, em torno dos conceitos, valores e práticas referentes ao passado, presente ou futuro – assume uma importância destacada, especialmente quando incide na luta política imediata. Sem qualquer sectarismo e com as devidas mediações, urge articular a propaganda como as elaborações basilares do marxismo e as experiências da luta contra o fascismo no século XX.

Trata-se de neutralizar e desconstruir a forte influência do ideário liberal sobre muitos partidos, dirigentes e militantes, expressão da sua compatibilidade com o modo de produção dominante e sua profunda presença em vastos setores da sociedade. Eis uma tarefa incontornável para a reorganização do campo popular e de suas lutas, como condição para que influam no cenário político nacional, desempenhem o papel de centro dinâmico nas alianças amplas e se apresentem como alternativa à crise do capital.

Inexiste qualquer incoerência entre manter os entendimentos com o abrangente campo democráticos e forjar o protagonismo proletário-popular. O embate eleitoral possibilitou a iniciativa tática e a coalização governamental, alargando a sua base de sustentação, erguendo pontes, fazendo acordos para além da esquerda e abrindo perspectivas. Somente nesse ambiente rico e vivo – jamais no gueto e no isolamento – é que os comunistas podem ligar-se às massas, prosperar politicamente e crescer organicamente.

Considerando-se a conjuntura internacional e nacional, bem como a correlação de forças na sociedade civil e na sociedade política, além dos elementos que condicionaram a chapa Lula-Alckmin, as suas alianças no segundo turno e o arco da coalizão expressa em ministérios ou postos parlamentares, consolidaram-se um perfil, os compromissos básicos e uma hegemonia interna compatíveis com a frente ampla. Tal configuração precisa ser respeitada, sob a pena de fragmentar e degradar o acúmulo alcançado até agora.

O campo democrático, entre os quais os partidos e forças populares, devem apoiar e sustentar o Governo Lula-Alckmin nos marcos dos consensos e alianças estabelecidas no movimento “Vamos Juntos pelo Brasil”, na frente ampla informal, na campanha eleitoral – primeiro e segundo turnos –, na transição, na montagem do Governo e na edificação do respaldo congressual. Nesse processo, a sustentação das políticas progressistas tem que assumir a forma de luta pelas necessidades populares.

O ambiente mais adequado está nos movimentos extraparlamentares de massas e nas pressões sobre o Congresso Nacional, fora dos corredores governamentais e longe das pendengas intestinas, sempre paralisantes. A maneira mais eficaz de apoiar, defender e influenciar os atos palacianos consiste em defender, de um lado, a construção orgânica da frente ampla, de outro, a unidade de ação na sociedade civil e nas entidades populares. Nessas direções se concentrarão os esforços da militância comunista, sem dispender o grosso de seus tempos e energias no círculo vicioso da burocracia estatal.

Para gerar uma sintonia fina das políticas e ações governamentais com as necessidades e expectativas advindas do pleito eleitoral – jamais esquecendo os anseios das multidões sem partido e sem representação formal –, bem como para consolidar a base de massas e avançar em direção ao eleitorado bolsonarista, o novo governo deve apresentar um cronograma de iniciativas nos primeiros cem dias, semestre e ano. Eis a referência para se articular e mobilizar a sociedade civil em torno de propostas progressistas, especialmente nas condições de um país dividido e de uma oposição brutal.

Tarefas imediatas dos comunistas

O quadro internacional e a experiência nacional evidenciaram que, longe de mera engenharia eleitoreira, a frente ampla é um instrumento tático imprescindível para combater a extrema-direita. O objetivo geral de vencer o continuísmo – antes que o ovo da serpente no Palácio se completasse como regime político fascista – favoreceu a convergência e aproximou interesses com o ensinamento da campanha. Agora, urgem novos passos na sua formalização e consolidação. Trata-se de manter o acúmulo, sustentar os governos progressistas, propiciar lutas de massas e garantir conquistas ao povo brasileiro.

Para consubstanciar o potencial dessa trilha, o campo democrático-popular precisa apropriar-se de suas coordenadas e protagonizar uma caminhada política. O modo de fazê-lo é tornar-se o polo dinâmico da aliança, isto é, o construtor principal, a referência como formulador e o motor das ações, nos vários níveis e áreas. Sem imposições, aparelhamentos, sectarismos e patriotismos de partido ou grupo, as relações entre os componentes têm que se pautar pelo propósito de construir a unidade, assegurando o trabalho comum e preservando a autonomia relativa de cada parte.

Ao reconhecer a existência e a relativa autonomia de diferentes esferas nas lutas de classes, os marxistas sempre ligam os embates democráticos aos demais interesses e anseios que cotidianamente surgem na complexa formação econômico-social brasileira. São assuntos ainda insuficientemente compreendidos, valorizados e abordados pelas forças progressistas, que precisam compor uma plataforma de exigências permanentes, indispensáveis à mobilização das multidões.

Um exemplo relevante é a questão nacional, genericamente, em especial a defesa da soberania do País, da integridade territorial, das riquezas naturais, do patrimônio público e da cultura nacional-popular. Concomitantemente, as chamadas questões sociais devem ser abordadas a partir da garantia e ampliação nos direitos que proporcionem, seja a melhoria nas condições materiais de vida para o proletariado e demais classes populares, seja o combate a todas as formas de exploração e opressão.

Também é preciso construir a síntese entre as políticas concretas e as reivindicações a serem conquistadas, sempre respeitando o grau de consciência e o discernimento político das grandes massas, sem as quais a militância tenderia a cair nos guetos. A prioridade é a união em torno dos anseios e quesitos capazes de sensibilizar as multidões populares, aos milhões. Tais pontos merecem uma clara primazia sobre os assuntos específicos, as lutas localizadas e, mormente, os reclamos de matriz temática.

Também é imperativo manter o foco da luta política no centro tático, evitando a diluição dos esforços em descaminhos e esfacelamentos que, deslocados das necessidades imediatas e majoritárias, acentuam artificialmente as contradições no seio do povo, enfraquecem as entidades representativas e dificultam a unidade de ação. Em face das tarefas ciclópicas que as forças revolucionárias têm pela frente, seria um despropósito ciscar nas migalhas e agigantar os problemas acessórios.

Os espaços de participação popular, interlocução política e diálogo de ativistas, já anunciados pelo novo governo – conferências, fóruns, comissões, comitês de trabalho e grupos de estudos – são importantes. Contudo, esses fóruns jamais podem substituir ou sobrepor-se aos interesses expressos nas legítimas lutas, reivindicações e mobilizações das classes trabalhadoras e do povo em geral, que felizmente se expandem para muito além das iniciativas estatais e governamentais.

Nessa perspectiva, a frente ampla precisa formalizar-se, organizar as suas instâncias e instaurar um funcionamento regular de caráter nacional. O mesmo deve acontecer em cada estado, cidade e frente de intervenção. Assim, poderá ser um espaço efetivo e permanente de consensos, em torno de iniciativas e ações político-práticas nos seus diversos níveis, na sociedade civil, principalmente o movimento de massas, e nos espaços institucionais, mormente os parlamentos e processos eleitorais, inclusive os próximos pleitos municipais.

Os movimentos populares, com destaque ao sindical, cumprirão papel decisivo para o êxito das políticas amplas de unidade e para a obtenção de conquistas imediatas para as maiorias. A partir do acúmulo alcançado pelo Fórum das Centrais Sindicais e dos compromissos assumidos em programas ou durante a campanha, é necessário indicar uma plataforma enxuta de reivindicações proletárias, que materialize os anseios imediatos dos trabalhadores e fixe um calendário de mobilizações unitárias.

As reivindicações nucleares são o aumento real do salário-mínimo com base em critério estável, a recomposição das perdas passadas, a remuneração igual para o mesmo trabalho sem qualquer distinção ou preconceito, a extensão dos direitos laborais – sindicais e previdenciários – aos empregados informais ou com relações precárias, a saúde ocupacional e a segurança no trabalho. Ao mesmo tempo, urge revogar ou regulamentar os diplomas que prejudicam a proteção ao trabalho e à Previdência, como as Leis nos 13.429 e 13.467, de 2017, e a Emenda Constitucional no 103, de 2019.

Quanto aos direitos sindicais, cabe garantir a livre organização, a unicidade e a autonomia das assembleias de base sobre o financiamento. No referente aos movimentos populares em geral, destaca-se a campanha permanente de valorização e fortalecimento de suas lutas, com prioridade às entidades representativas – sindicatos, associações de bairro e uniões estudantis –, além de filiação e adesão dirigidas às massas populares e não apenas às bases já filiadas ou aos setores já identificados com as forças progressistas.

Os mesmos procedimentos valem para os movimentos de moradia, camponeses, jovens e mulheres, bem como relacionados ao antirracismo, ambiente, comportamento e assim por diante. As plataformas e calendários devem subordinar-se ao centro tático do novo período – aprofundar o isolamento da extrema-direita, sustentar os governos progressistas e garantir as conquistas populares –, além de considerar a correlação de forças, o grau de consciência popular e o discernimento político das massas. As bandeiras adequadas são as que sensibilizam, organizam e movimentam multidões.

Eis a forma de integrar os movimentos populares no esforço de apoiar e reforçar as posições avançadas nos governos e parlamentos, rechaçando os papéis de mera correia para transmitir políticas oficiais e de ativismo chapa branca. Só assim serão garantidas a autonomia e a independência das entidades, além de proporcionar a unidade de ação para disputar, ampla e politicamente, a simpatia, o apoio e a confiança das massas, inclusive as parcelas iludidas pela reação bolsonariana. Eis o modo mais eficaz de enfrentar as provocações, deter o crescimento da oposição direitista e obter novos ganhos.

Com atitudes exemplares, é preciso adotar ações firmes para barrar as previsíveis reincidências golpistas. Assim, devem ser rechaçadas quaisquer leniências com respeito aos delitos cometidos por agentes estatais ou colaboracionistas, seja durante o regime ditatorial-militar, seja, recentemente, por membros das falanges extremistas dentro ou fora do governo que acaba. Longe de um discurso revanchista ou ressentido, a punição aos responsáveis por semelhantes crimes é um dos elementos táticos na luta contra o protofascismo.

Manter a defesa do regime democrático!

Avançar no combate à extrema-direita!

Sustentar os governos progressistas!

Garantir as reivindicações populares!

 

Belo Horizonte, 27 de novembro de 2022,

Comitê Central do Partido da Refundação Comunista – PRC/Brasil

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