Gustavo Rolim*—
Em um curto intervalo de tempo, o público brasileiro ganhou uma enorme oportunidade para entrar ainda mais em contato com a vida (e obra, obviamente) do núcleo familiar responsável pela elaboração do materialismo histórico-dialético. Em 2017 chegou, do cineasta haitiano Raoul Peck, O Jovem Marx. Existir era crime suficiente para a película ter sido censurada (ou algo que o valha) no Brasil. Em seguida, a biografia já clássica de Gustav Maier de Friedrich Engels e a mais recente produção de José Paulo Netto, sua biografia de Karl Marx, chegaram pela Boitempo no ano de 2020. No mesmo ano, foi lançado em setembro a cinebiografia da caçula do Mouro, a “Tussy”, Miss Marx. Em 2021, chegou ao mercado uma primorosa edição das obras completas de Eleanor Marx, contando com suas obras sindicalistas, de articuladora da II Internacional, de análise da obra marxiana e teatral, realçando seu caráter de militante prática. Finalmente, em 2022, somos brindados pela Expressão Popular com sua biografia, da autoria de Rachel Holmes. Aqui, abordaremos este livro e o filme.
A vida de Eleanor Marx começou em meio às incertezas e pobrezas da família Marx, quando Jenny e Karl procuravam reestabelecer suas vidas, como exilados, em um bairro pobre e insalubre de Londres. Sua juventude coincide com o incessante trabalho do Mouro em O Capital. Sua adolescência é marcada pela Comuna de Paris (na qual a família envolve-se como pode em exílio) e pela descoberta da luta por autonomia dos irlandeses. Posteriormente, trabalha incansavelmente como tradutora, jornalista, correspondente, representante partidária, intelectual e organizadora do espólio do pai. Karl, comentando sobre suas filhas, revela que Laura seria mais parecida a si, mas declara que “Tussy sou eu”. Fisicamente, de fato temos a “cópia escarrada”. Aparentemente, seguiam-se as semelhanças nos hábitos e intelecto.
O filme de 2020, coprodução ítalo-belga, dirigido por Susanna Nicchiarelli (cujo último filme foi também uma cinebiografia, da cantora Nico), traz a atriz Romola Garai no papel principal. A ambientação e diversas falas saem diretamente de cartas e documentações da época, gerando um clima fidedigno à película. Infelizmente um pouco desse clima se perde na própria ambientação vitoriana do entorno, onde todo o movimento sindical (e mesmo a família Marx, em flashbacks) se veste, porta e fala de maneira similar à elite britânica da época (ou, ao que comumente vemos representados em outras diversas produções de Hollywood e afins). Ignorando boa parte dos percalços sofridos pela família Marx, suas dificuldades financeiras gritantes, falta de luxo nas vestes, residência humilde, etc. Entretanto, a captura de Tussy enquanto uma intelectual e militante prática, arquétipo de “mulher forte” que tem suas condições podadas por um relacionamento mais que abusivo se encontram facilmente. As cenas mais impactantes, a que Marx se comunica diretamente com a câmera, relatando a situação da classe trabalhadora, pontuada pela teoria do valor de Marx-pai é suficientemente elaborada para compreendermos o tipo de intelectual que Tussy era (e a boa atuação de Romola Garai). Assim como a tocante descoberta de uma carta de amor de seus pais e os flashbacks de infância. Como toda cinebiografia, que não é realizada em trilogias ou épicos de mais de três horas, opções são necessárias, cortes, resumos e amálgamas também. O que faz do filme (para quem já leu algum dos livros citados acima) parecer levemente “pobre”, ou, melhor dizendo, “incompleto”. Adjetivo este que não pode ser utilizado para o livro escrito por Rachel Holmes.
Eleanor Marx – uma vida faz parte destas biografias em que a autora consegue mesclar um trabalho científico meticuloso e narrativa romântica, fluida e prazerosa. Holmes, através da utilização de (aparentemente) toda a bibliografia e documentação existente sobre o seu objeto principal e entorno, consegue nos presentear com detalhes desconhecidos do grande público, interpretações novas sobre alguns conjuntos da fase final de Karl Marx, além de competentemente nos entregar em mãos a vida de Tussy. O que, também, significa uma avaliação crítica sobre sua morte. A participação nebulosa de Edward Aveling em seu suicídio é potentemente narrada pela autora, a qual constrói a narrativa desde muito antes já relatando as nuances e vagareza com a qual uma relação abusiva vai se tornando e se constituindo – o que o filme, por exemplo, realiza de forma muito mais prática e sucinta, especialmente através dos silêncios e postura de Aveling.
A reconstrução da vida de Tussy é interessante por colocá-la, assim como colocar as mulheres de seu entorno, dentro das situações que por vezes imaginamos habitadas apenas por homens (no caso o par Marx-Engels). De forma muito semelhante a como Raoul Peck sensivelmente conseguiu inserir Jenny Marx e Lizzie Burns na feitoria do Manifesto Comunista. Entretanto, Rachel Holmes não precisa lançar mão de liberdades poéticas: a documentação é explícita. Eleanor Marx encontra-se em todos os cantos do movimento operário inglês, estadunidense, e europeu em geral nas épocas da social-democracia que formará a Segunda Internacional. Este aspecto de uma “mulher intelectual” (em verdade, uma “mulher prática”… o que nos leva sempre a lembrar da práxis) em meio a um momento de fortes emoções na formação do movimento operário europeu precisaria de uma análise mais densa. O que para, então, o livro de Rachel Holmes será essencial. Temos nele a avaliação, corretíssima de, para que uma mulher intelectual pudesse despontar na Inglaterra do Século XIX, outras necessitaram existir por ela – Jenny Marx, suas duas irmãs, Laura e Jenny, as irmãs Burns e a governanta Helene Demuth… as mulheres constituíram-se e construíram-se umas às outras. Caçulas de suas respectivas famílias, mulheres e demais pessoas atravessadas por preconceitos e estigmas sociais construirão uma grande empatia por Tussy ao ler sua biografia.
Claro que, como boa historiadora, Holmes impõe sua visão de Eleanor Marx (e não poderia ser diferente). Sua avaliação da obra de Tussy está recheada de afirmações como “[Eleanor sabia que] assim como não poderia haver feminismo num só país, não poderia haver socialismo em um só país” (ou vice-versa). Uma tentativa de réplica (a nenhuma afirmação em contrário) do “moto” stalinista de “socialismo em um só país”. O contexto dessa crítica seria a constituição, no final do XIX, do nacionalismo chauvinista que redundará na própria partição da II Internacional. Entretanto, se Eleanor Marx – uma vida é uma excelente biografia (e é), recheada de análises documentais, reconstrução dos eventos no sentido mais historiográfico possível e de leitura agradável e envolvente, infelizmente fica aquém de uma avaliação intelectual da caçula de Marx – justamente o que faria ainda mais sentido em um “resgate” de uma pessoa tão envolvida até a medula na luta de classes. Holmes sempre pontua (e comprova) a “popularidade” que Tussy possuía no movimento sindical e social-democrata, mas a questão fica. O que o intelecto de Eleanor Marx representou para a luta das mulheres trabalhadoras do final do XIX? Lembrando que estamos no contexto de escolha do 8 de Março e apenas 7 anos separam sua morte do “Ensaio Geral”, e outros 19 anos da Revolução Russa… iniciada por mulheres. Frases como a citada acima, ao lado de breves explicações sobre a visão de Tussy do papel da exploração da mulher para a acumulação primitiva são o mais próximo de análises teóricas que teremos (e muitas vezes tratam-se de necessárias, porém limitadas exposições).
Esta última questão, analisada por Tussy de forma muito semelhante a seu pai (“Tussy sou eu” ecoa tanto no livro!), desde a crítica da economia política, até as relações familiares e, obviamente, uma forte atenção às formas culturais-artísticas, representou que acúmulo e inovação para o materialismo histórico-dialético? Foi apropriado e levado adiante por algum intelectual ou corrente política? Sua interpretação renasceu novamente na pena de alguém que talvez a não tenha lido? Qual o lugar de Eleanor Marx na construção da teoria e prática da emancipação da mulher? Enquanto “ponte” entre o XIX e o XX? Inclusive dentre as outras revolucionárias que tão comumente citamos, como Clara Zetkin, Kollontai, Krupskaya…?
No Brasil, após o fortíssimo impacto e sucesso editorial que teve a autora Silvia Federici, estas questões ficam ainda mais interessantes e sedentas de resposta. Uma avaliação intelectual e política do pensamento de Eleanor Marx, tal como feito em tantas figuras masculinas, desvelando seus mecanismos de pensamento, sua práxis, etc., está por ser realizada.
De qualquer forma, não estamos mais longe das respostas, estamos muitíssimo mais perto. E tal qual a “máxima e lema favorito” escolhida por Tussy em um jogo de infância (que também encerra sua cinebiografia), podemos apenas dizer: “vá em frente!”
*Professor da rede municipal de Gravataí/RS e Doutorando em História – UFRGS.
Artigo publicado originalmente no Boletim do GMARX-USP.