As igrejas concordam com a integral liberdade religiosa vis-à-vis a sociedade política, pleito efetivado pelas revoluções burguesas no mundo inteiro, mormente sob a forma negativa de uma desvinculação das suas burocracias em face do Estado – embora não raro incompleta –, isto é, a ruina de antigos privilégios. Há, porém, duas ressalvas relevantes. O direito conquistado é distribuído sem uma equidade real, pois os aparatos e as hegemonias sobreviventes o condicionam na esfera prática. Certas seitas são mais assertivas quando minoritárias e precisam operar nos espaços institucionais controlados pelos desafetos, além daquelas cujos projetos pretendem assumir o lugar de velhas primazias.

Tais considerações nunca devem ser compreendidas como enunciados puros, pois comumente se amalgamam com as lutas entre as classes, chegando até a esposarem matrizes ideológicas, processo evidentes no Brasil contemporâneo. Na última semana, ouviu-se a gritaria contra uma decisão da Receita Federal, que suspendeu a isenção fiscal – cobrança de impostos – a profissionais orgânicos de organizações religiosas, inclusive os pagamentos por entidades a ministros propagadores de preceitos fideístas, mesmo que sob a forma de ensinos vocacionais. Assim, a oposição ao Governo Lula vem procurando camuflar-se como cruzada em defesa de um direito intrínseco à “democracia”.

Semelhante campanha, por manter regalias particulares acima dos cidadãos comuns, é falaciosa. Inicialmente, porque desvia o mote, vez que só deseja manter os efeitos ilegais do Ato Declaratório Interpretativo no 1, assinado em julho de 2022 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, quando chegava o fim de sua gestão e já estava em plena campanha eleitoral, com a intenção de cabalar votos e jogar toda responsabilidade no colo do novo mandatário. Depois, porque atinge não crenças e instituições com propósitos caracteristicamente religiosos, mas indivíduos assalariados e prestadores de serviços contratados, como se o seu trabalho fosse com fins universais e mais nobres que outros.

Ao fim e ao cabo, porque ignoram ou despercebem que a liberdade no culto e nas lides confessionais está vinculada, intimamente, à independência política – derramando-se às suas estruturas sustentadoras –, na carência da qual se tentaria repetir os padrões iníquos da “servidão coletiva” em sociedades ancestrais, do cativeiro antigo, do feudalismo no mundo medievo e da formação escravista no Brasil colonial, em anômala e utópica regressão histórica. Soa como estapafúrdia e demagógica, portanto, a nota expedida pela Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, quarta-feira, 17, que se refere ao ato administrativo em análise como se fosse um “ataque explícito” ao segmento religioso.

No mínimo, é preciso reconhecer que há sérios motivos para supor a existência de um problema. No fundo, a norma revogada escancararia o caminho e a brecha para que os múltiplos ganhos com participação em lucros, com alcance de metas fixadas e com reembolso de gastos em saúde ou educação ficassem distorcidos. Acontece que poderiam misturar-se com rendimentos eclesiásticos, escapando assim de qualquer oneração tributária. Se os profissionais dos cultos querem manter os recursos exclusivos em suas missões, têm a total garantia constitucional de fazê-lo, mas sem apanágio e ação a expensas do erário público, das políticas sociais, do regime democrático e dos interesses nacionais.

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