CARTA ABERTA DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS E CRÍTICOS LITERÁRIOS

A Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST), que organiza o exame de ingresso na Universidade de São Paulo (USP), divulgou recentemente a lista de livros válida de 2026 a 2028, privilegiando a autoria exclusivamente feminina. Já em 2029, três obras de assinatura masculina substituirão outras três anteriores, mantendo-se as demais. De um total de nove autoras, três são negras (uma brasileira, uma angolana e uma moçambicana) e seis, brancas (uma delas portuguesa).

Sem dúvida, é fundamental uma ampla discussão sobre o cânone e a atual disputa por ele. Mas o critério de seleção de um único perfil de autoria tampouco guarda coerência com a inclusão, dada a exclusão de escritores negros, a representação LGBTQIAPN+ e a dos povos indígenas. Em outro traço, a produção letrada do Brasil colônia desapareceu do rol de obras, num provável descarte do que se acredita “antigo”.

Além disso, a adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto.

A transferência de um princípio contemporâneo para a seleção de obras de diferentes estilos e épocas corre ainda o risco de exigir das autoras um objetivo que não propunham em seu momento histórico ou, se sim, certamente o fizeram de modo distinto dos valores atuais. Mas a obra de arte tende a dizer mais do que pretende, assim como os modos de ler variam de acordo com os tempos e com os diversos grupos de leitores. Nesse sentido, a FUVEST determina uma única forma de produção e recepção, pressupondo que a literatura seja documento ou ilustração de teorias atuais.

A gravidade da retirada de Machado de Assis da lista de livros da FUVEST fala por si. No contexto da medicina higienista que disseminava o “instinto” de maternidade e domesticava as ações femininas com função de garantir o bem-estar da família burguesa, Machado de Assis submete à irrisão esse “instinto”, inventando a mulher como subjetividade marcada por desejo e sexualidade não monogâmica. Com Capitu, Machado de Assis formaliza a invisibilidade da mulher que se quis senhora de seu destino. A galeria de personagens femininas machadianas faz pensar.

Há outras obras em que a qualidade literária é determinante para a apreensão da condição social de gênero, a exemplo de Parque Industrial, de Pagu; S. Bernardo, de Graciliano Ramos; A Imaginária, de Adalgiza Nery; Leite Derramado, de Chico Buarque; e Sinfonia em Branco, de Adriana Lisboa.

Evidentemente não se espera que se contemplassem todos esses aspectos. É possível, no entanto, uma melhor combinação entre esses fatores que privilegiasse a singularidade da ficção na totalidade das obras escolhidas e escapasse da imposição de um único pressuposto.

A perda do lugar da literatura na lista ocorre também na escolha de Opúsculos Humanitários, de Nísia Floresta, título importante, mas que não se pretende ficção. Ele discorre sobre a condição feminina em diferentes tempos e sobre a necessidade da educação formal das mulheres.

Diante desta escolha em particular, intenciona a FUVEST doravante selecionar títulos que não sejam apenas literários? A decisão de substituir as já tradicionais listas para o vestibular por obras de outros gêneros discursivos trará impacto ao campo educacional. A poesia, a prosa de ficção, a crítica, a teoria literária e os estudos literários comparativos serão transformados em saberes secundários, com risco de seu gradual desaparecimento do sistema de ensino.

Em curto prazo, perdem-se habilidades que o estudo de literatura proporciona: a indissociabilidade entre a escrita e a interpretação; a promoção da cidadania – a fruição estética, a capacidade crítica de ler o mundo e o senso de alteridade. Conforme um estudo da Associação Brasileira de Literatura Comparada (“Carta à ABRALIC”, 2023), o crescente desprestígio dos saberes literários em documentos oficiais já acarreta, entre outros problemas, a “desintelectualização” de discentes e docentes.

Reconhecemos a autonomia da FUVEST, mas não prescindimos do pressuposto do dissenso quanto a questões de ordem intelectual. À Universidade pública cabe debater, ouvir e prezar o conhecimento por ela produzido.

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Adriane da Silva Duarte – Língua e Literatura Grega – USP

Alcides Villaça – Literatura Brasileira – USP

Alexandre Pilati – Literatura Brasileira – UnB

Ana Beatriz Demarche Barel – Literaturas de Língua Portuguesa – UEG

Ana Laura dos Reis Côrrea – Literatura Portuguesa – UnB

Ana Luiza Martins – CONDEPHAAT

Ana Paula Pacheco – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Anco Márcio V. Tenório – Letras – UFPE

André Luis Rodrigues – Literatura Brasileira – USP

André Medina Carone – Filosofia – Unifesp

Ângela Grillo – Literaturas em Língua Portuguesa – UFPA

Antonio Dimas – Literatura Brasileira – USP

Ariovaldo José Vidal – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Arlenice de Almeida Silva – Filosofia – UNIFESP

Augusto Massi – Literatura Brasileira – USP

Betina Bischof – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Carlos Cortez Minchillo – Espanhol e Português – Dartmouth College/ USA

Carlos Vogt – Linguística – Unicamp

Celso Frederico – Sociologia/ ECA – USP

Cilaine Alves Cunha – Literatura Brasileira – USP

Cilza Bignotto – Letras – UFSCar

Claudia Maria de Vasconcellos – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Dóris Natália Cavallari – Literatura Italiana – USP

Eduardo Brandão – Filosofia – USP

Edvaldo Aparecido Bergamo – Literatura Portuguesa – UnB

Eliane Robert Moraes – Literatura Brasileira – USP

Enid Yatsouda – IEL – Unicamp

Erwin Torralbo Gimenez – Literatura Brasileira – USP

Ettore Finazzi-Agrò – Literatura Brasileira e Portuguesa – Universidade de Roma

Fabio Cesar Alves – Literatura Brasileira – USP

Fabio de Souza Andrade – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Fernando Paixão – Literatura – IEB/USP

Francisco Foot Hardmann – IEL – Unicamp

Gilberto Pinheiro Passos – Literatura Francesa – USP

Horácio Costa – Literatura Portuguesa – USP

Ida Alves – Literatura Portuguesa – UFF

Ivan Marques – Literatura Brasileira – USP

Ivone Daré Rabello – Teoria Literária e Literatura Brasileira – USP

Jacqueline Penjon – Letras – Sorbonne/França

Jean Pierre Chauvin – Cultura e Literatura Brasileira – USP

Jefferson Agostini Mello – Literatura Brasileira – USP

João Adolfo Hansen – Literatura Brasileira – USP

João Roberto Gomes de Faria – Literatura Brasileira – USP

Joelma Santana Siqueira – Literatura Brasileira – UFV

John Gledson – Estudos Brasileiros – Universidade de Liverpool/ UK

Jorge de Almeida – Teoria literária e Literatura Comparada – USP

Jorge Schwartz – Espanhol – USP

José Sueli Magalhães – Estudos Linguísticos – UFU

Laura Janina Hosiasson – Espanhol – USP

Leon Kossovitch – Filosofia – USP

Leopoldo Bernucci – Literatura Hispano-Americana – UC-Davis/EUA

Leyla Perrone Moisés – Literatura Francesa – USP

Luís Bueno – Literatura Brasileira – UFPR

Luiz Costa Lima – Teoria Literária – PUC/RJ

Luiz Renato Martins – Artes Visuais – USP

Luiz Roncari – Literatura Brasileira – USP

Mamede Mustafá Jarouche – Literatura Árabe – USP

Marcelo Ferraz de Paula – Letras – UFG

Marcelo Pen – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Márcia de Arruda Franco – Literatura Portuguesa – USP

Marcos Flamínio – Literatura Brasileira – USP

Marcus Mazzari – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Margareth Santos – Literatura Espanhola – USP

Maria Aparecida Junqueira – Letras – PUC/SP

Maria Augusta Costa – Espanhol – Letras

Maria da Glória Bordini – Letras – UFRGS

Maria Eugênia Boaventura – IEL – Unicamp

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro – Filologia e Língua Portuguesa – USP

Maria Lúcia de Barros Camargo – Teoria Literária – UFSC

Marilena Chauí – Filosofia – USP

Marilene Weinhardt – Letras – UFPR

Marisa Lajolo – IEL – Unicamp

Marta Kawano – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Maurício Santana Dias – Literatura Italiana – USP

Mayra Laudanna – Artes Visuais – USP

Mayra Moreyra Carvalho – Literaturas Portuguesa e Brasileira – UEMG

Milena Martins – Letras – UFPR

Milton M. Azevedo – Espanhol e Português – UC-Berkeley/USA

Mirella Márcia Longo Vieira Lima – Teoria Literária – UFBA

Mirhiane Mendes de Abreu – Literatura Brasileira – UNIFESP

Murilo Marcondes de Moura – Literatura Brasileira – USP

Olgária Matos – Filosofia – USP

Paola Poma – Literatura Portuguesa – USP

Paula da Cunha Corrêa – Língua e Literatura Grega – USP

Paulo Alberto da Silva Sales – Teoria Literária – UEG

Paulo Elias Allane Franchetti – IEL – Unicamp

Priscila Loyde Gomes Figueiredo – Literatura Brasileira – USP

Priscila Rossinetti Rufinoni – Filosofia – UnB

Rafael Campos Quevedo – Letras – UFMA

Raul Antelo – Teoria Literária – UFSC

Ricardo Fabrini – Filosofia – USP

Ricardo Musse – Sociologia – USP

Ricardo Kobayaski – professor e coordenador do site A Terra é Redonda

Roberta Barni – Literatura Italiana – USP

Roberto Schwarz – IEL – Unicamp

Rodolfo A. Franconi – Espanhol e Português – Dartmouth College – USA

Rogério Max Canedo – Letras – UFG

Salete de Almeida Cara – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Literatura Inglesa – USP

Sárka Grauová – Estudos Românicos – Universidade Carolina/ CZ

Simone Rossinetti Rufinoni – Literatura Brasileira – USP

Solange Fiuza Cardoso Yokozawa – Letras – UFG

Tânia de Luca – História – Unesp/Assis

Tércio Loureiro Redondo – Literatura Alemã – USP

Teresa Cristófani Barreto – Espanhol – USP

Vagner Camilo – Literatura Brasileira – USP

Valentim Facioli – Literatura Brasileira – USP

Valéria Gil Condé – Filologia Românica – USP

Viviana Bosi – Teoria Literária e Literatura Comparada – USP

Yudith Rosenbaum – Literatura Brasileira – USP

 

Publicado originalmente no site A Terra é Redonda.


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