A eleição do anarcoburguês Milei – um indivíduo situado entre a demagogia e a vergonha de sua condição política – e sua plataforma ultraliberal encerram mais uma experiência dos povos no combate à extrema-direita em suas diversas manifestações, desta feita com a gustação amarga do malogro e da calamidade. As chamadas redes sociais à esquerda, subitamente atônitas, começaram a reproduzir uma frase metafórica de Gramsci, contida nos Quaderni del Carcere, T. 3. O dirigente comunista, na masmorra de Mussolini, apresentou a circunstância genérica em que o fascismo conseguiu emergir: “O velho mundo morre, o novo tarda em aparecer e nesse lusco-fusco surgem os monstros”.
No entanto, como a verdade na política necessita ser concretizada, eis que alguns se apressam em creditar o atraso do “novo mundo” argentino, prioritariamente, a um governo democrático e progressista moderado que – por abdicar de mudanças profundas e capazes de superarem a ordem conservadora –, teria deixado para os partidos e movimentos reacionários a bandeira do combate ao establishment. Há, deveras, um fundo no boato. No entanto, se alçado ao primeiro plano – em detrimento não apenas do conjunto, mas também dos vetores basilares –, transforma uma das múltiplas dimensões inerentes ao processo em um dogma, e a insere no panteão da explicação miraculosa e universal.
Os efeitos daninhos são muitos. Primeiro, põe como demiurgo dos acontecimentos a volição dos governantes, uma espécie de hegelianismo tardio. A seguir, centra o fogo nos aliados – que não raro são indecisos e vacilantes –, colocando em lugar secundário a crítica e o combate aos inimigos principais, sobretudo às classes ou frações que representam. Por fim, abdica de formular propostas programáticas mediadas e alianças suficientemente largas que, na carência de situação revolucionária, respondam às necessidades conjunturais, vale dizer, dialoguem com grandes massas, reúnam taticamente as forças interessadas e isolem os candidatos mais perigosos para os fins nacional-populares.
Curioso é que acusam os justicialistas e Sergio Massa de não serem o que sempre foram por seu fundamento social: um partido e um candidato historicamente vinculado ao capital portenho, que, por injunções complexas – inclusive políticas e culturais – adotaram um discurso trabalhista e nacionalista. Querer que tenham uma prática de reformas fundamentais “antissistêmicas” na era do imperialismo é, além de um diagnóstico equivocado, iludir-se com a possibilidade improvável de que ajam contra sua própria “natureza” ontossocial no enfrentamento à crise. Todavia, poderiam ter adotado alguma forma de frente ampla, em vez de se limitarem a juntar os cacos peronistas e assumir o “nós contra eles”.
Tais reflexões – considerando-se as devidas particularidades que distinguem os dois hermanos vizinhos, principalmente a formação econômico-social e a hegemonia social-liberal no Palácio do Planalto – valem também para o Brasil. Aliás, não falta quem as ignore. Mesmo se for esquecido aquilo tudo que sucedeu desde 2013, o alheamento infantil perante os limites atuais do Governo Central e as suas dificuldades nas relações com as demais instituições público-estatais é mais que suficiente para intensificar o debate sobre a urgência de uma política responsável, habilidosa e pertinente ao acúmulo de forças proletário-popular, nas mobilizações de massas e nas próximas disputas eleitorais.