Andersen Viana—

Nas muitas oportunidades que surgiram para os compositores com o fim da pandemia e o retorno dos espetáculos nos teatros de todo o mundo, esta em particular, me chamou a atenção: enviar material para ser selecionado como compositor para escrever “nova música acadêmica orientadamente africana e descolonizada”. Logo percebi que iria enfrentar um grande desafio. Ousei em participar da seleção, pois pesquisas de música oral na América Central na década de 1990 e meus estudos posteriores de folclore mineiro junto ao Prof. Dr. Romeu Sabará, deram-me uma certa base para o que viria pela frente. Acabei por ser selecionado entre 50 compositores de várias partes do mundo para participar, junto a outros 8 compositores (as) de Gana, Nigéria, Estados Unidos, México, Polônia e Brasil para a criação, performance, filmagem e gravação de nova música orientadamente africana…

Um “Contrato” com diversas cláusulas foi assinado junto a fundação musical nigeriana da capital Lagos – a Akojopo – que ficaria encarregada de toda a produção do espetáculo apresentado dia 22 de Julho de 2023 em teatro específico e que, para minha boa surpresa, ficou lotado neste dia. O espetáculo foi nominado em Iorubá como “ORIN TUNTUN”, ou em português, “Novas Canções” dentro do âmbito do projeto African Art Music Commissioning Project (projeto de encomenda de música africana), desta prestigiosa fundação cultural africana.

Os meses que se seguiram à seleção oficial foram plenos de seminários com professores africanos especializados e incríveis tais como Dr. Ayò Olúránti (Pesquisador Goethe Institut-Alemanha), Dr. Charles Lwanga (Universidade de Michigan-EUA), Dr. Branco Sekalegga (Universidade de Makerere, Kampala-Uganda). Acabei por propor um Kyrie católico em Iorubá para vozes (Sopranos, Contraltos, Tenor e Baixos), Piano e dois percussionistas tocando instrumentos de percussão tipicamente africanos (um deles o Ìlù Àgbá, o tambor dos deuses!), Gangan, Shekere e Agogô. Contei com a parceria do doutorando da Florida University-EUA, Alaba Ilesamni para traduzir o texto do kyrie tradicional (Kyrie Eleison, Christie Eleison) para o Iorubá, que também estava no projeto como facilitador e diretor artístico desde o início…

Tive de aprofundar meus estudos de música africana, além de acessar centenas de páginas de Etnomusicologia enviadas pelos professores, selecionando estruturas rítmicas e sonoras para a confecção da obra em questão (Kyrie Africano). Observei que a música africana não possui, nem de longe, as prerrogativas harmônicas da música ocidental tradicional tais como centros tonais e modulação, baseando-se estritamente no modalismo, característica da quase totalidade da música anterior aos anos de 1600 (Período do Barroco), situando-se bastante bem no âmbito da música folclórica mundial (inclusive estes professores citaram o primeiro Etnomusicólogo do mundo: Béla Bartók. Me surpreendi também, pelo fato de algumas músicas tradicionais africanas usarem a escala de cinco sons (Pentatônica), quase a mesma usada também na China, no Japão e em outros países orientais!

A obra inicia-se com um glissando no interior do piano com palheta de guitarra para o Agogô iniciar pianíssimo com o Toque do Orixá Xangô, que chama as vozes a participar. Na sequência, as vozes usam o “Tongue Click” que é um som usado na Língua Khoisan (!Xó õ) especialmente encontrado em Botswana e Namíbia. Algo incomum para nós não africanos…

O texto secular da igreja católica apostólica romana – Senhor tende piedade de nós. Cristo tende piedade de nós – foi traduzido em Iorubá por: Olùwa Sàánu. Kristi Sàánu Fún Wa. Me disseram que todo o evento foi espetacular, mas a obra não foi premiada. Também como primeiro trabalho, não era mesmo para ser. Venceram a música e os músicos africanos.

O Ensaio geral, antes do concerto, pode ser visto como o primeiro vídeo no Canal Youtube: https://www.youtube.com/@TheAmadeusprod


Os artigos assinados não expressam, necessariamente, a opinião de Vereda Popular, estando sob a responsabilidade integral dos autores.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *