Um mundo multipolar e em crise
O mundo segue imerso na Fase B – ou depressiva – mais duradoura entre as quatro acontecidas nas Ondas Longas internacionais típicas do capitalismo. Tal período, ainda mais agravado pela Pandemia, acirrou as contradições da sociabilidade burguesa e atingiu, diferentemente, cada país, gerando tragédias e respostas próprias nas diversas dimensões da vida humana.
A produção de valor caiu, nos setores manufatureiros, 4,1% em 2020. Nos países com maior reprodução de capital, houve uma queda em 6,5% – acima da média mundial. No USA, a queda ficou em torno de 6,7%, enquanto nas principais economias europeias caiu 7,1%. No Japão e em outras economias do leste asiático houve um recuo de 4,7%, depois de uma queda de 1,6% em 2019.
A chamada “globalização” se esgota como alternativa capaz de propiciar um novo ciclo de prosperidade no capitalismo, perdendo potência ideológica, cultural e política. Os países voltam a prover o capital de origem interna com medidas de proteção regionais e nacionais. Mesmo sem pátria, fica cada vez mais evidente que as burguesias monopolista-financeiras precisam do seu Estado nacional forte, que tenha autonomia relativa para promover, resguardar ou proteger seus anseios e exigências.
O último período vem sendo marcado pela consolidação da multipolaridade na geopolítica mundial, com o imperialismo estadunidense perdendo espaços para outros centros de interesse econômico, político-ideológico, militar e cultural. A ascensão da China e da Rússia, bem como as contradições interimperialistas que determinam a disputa por áreas de influência internacionais – combinadas à derrota das forças armadas envolvidas na ocupação do Afeganistão, dirigidas pelos EUA – tornou-se o símbolo dessa viragem.
Enfraquecendo o principal centro articulador do fascismo em âmbito mundial, a eleição de John Biden representou a derrota da extrema-direita trumpista. O novo inquilino na Casa Branca assumiu a tarefa de deter a retração nas esferas de influência estadunidense e conter as forças que o desafiam, no afã de reassumir o velho protagonismo exclusivo como potência imperialista no concerto das nações. Para tanto, tenta reatar a influência esgarçada nas Américas. A retórica agressiva e as provocações, inclusive o cerco a Cuba e à República Bolivariana da Venezuela são exemplos dessa política, juntos com ações cada vez mais petulantes na diplomacia, além de monitoramento, pressão e chantagem sobre os demais países, como Argentina, Brasil, Colômbia e Nicarágua.
Com a defensiva estratégica do movimento comunista e das forças revolucionárias – acentuadas pela crise do campo socialista nos anos 1980 –, que geram repercussões táticas, multiplicam-se as ameaças à soberania dos países dependentes, a exploração e perseguição aos direitos e às necessidades do proletariado, a precarização do trabalho e o empobrecimento generalizado, lançamento na miséria e no desamparo a maioria da população, além de acirrar as tensões, contradições e confrontações internacionais.
A resistência dos povos, das classes trabalhadoras e de frações burguesas com interesses atingidos pela malfadada “globalização” vem articulando-se pelos continentes. Continua, porém, ainda incipiente, desconexa e incapaz de se transformar em mobilização de grandes multidões populares, a ponto de permitirem que se descortine um caminho autônomo próprio. Na América Latina, abriram-se novas possibilidades com os governos e desdobramentos políticos na Argentina, na Bolívia, no Chile e no Peru.
Em um quadro adverso, complexo e delicado, em que o fascismo e a extrema direita crescem e procuram apresentar-se como opção ao establishment, o Partido precisa apurar o sentido tático, garantir a unidade anti-Imperialista, rechaçar provocações, denunciar as aventuras belicistas, promover a solidariedade entre as nações dependentes, defender a Paz mundial e lutar pela autodeterminação dos povos.
A tragédia nacional
A sociedade brasileira vive um dos períodos mais turbulentos e graves de sua história, desde os estertores da condição colonial e a criação bicentenária do Estado nacional. As jornadas de resistência ao regime ditatorial-militar, iniciadas já em abril de 1964, abriram caminho para as mobilizações que, em pouco mais de duas décadas, culminaram na campanha pelas Diretas-Já e no processo constituinte.
Desde então, apesar de seus limites, com idas e vindas, o regime democrático-constitucional vem sendo atacado. A partir das eleições de 2014, a mais acirrada no Brasil desde o fim da longa noite ditatorial, da piora no cenário econômico mundial e do movimento que destituiu Dilma Roussef, vieram conformando-se os elementos da crise multilateral que hoje assola o Brasil.
A ascensão do protofascismo à Presidência da República retirou o protagonismo das múltiplas vertentes político-ideológicas que compõem as forças democráticas e encerrou um ciclo da vida política brasileira, abrindo um novo período na luta de classes caracterizado pela predominância do ideário ultraliberal e por ameaças permanentes às conquistas políticas e sociais obtidas com a promulgação da Constituição de 1988, que enterrara o regime político implantado pelo golpe de 1964.
As políticas do Governo Federal aceleram a transferência, ao terreno pátrio, das consequências geradas pela crise do capital e as aprofundam pela intensificação negacionista da Pandemia, multiplicando assim as contradições de uma economia dependente, integrada subalternamente à divisão internacional do trabalho sob a hegemonia imperialista, bem como conservando a tendência recessiva latente, que no máximo oferece os sinais de uma retomada pífia.
Durante a campanha eleitoral e seu governo, o primeiro mandatário deixou claro seu apreço ao ideário golpista de 64, seu desprezo pelas liberdades democráticas, coletivas e individuais, suas pretensões ditatoriais, sua pretensão de implantar um regime fascistizante, seu desdém pelas carências das classes populares e seu compromisso inarredável com o capital monopolista-financeiro. Perseguindo seus objetivos, fez um governo à sua imagem e semelhança, eliminando colaboradores, apoiadores e auxiliares que pudessem lhe fazer sombra. Desde o dia de sua posse, o aspirante a ditador tenta enquadrar os demais órgãos e instituições estatais, em especial as Forças Armadas, nas suas intenções autogolpistas. Paralelamente, organiza uma força paramilitar, para promover uma ruptura constitucional e atacar o conjunto das forças democráticas brasileiras.
A conduta governamental, impulsionada por um presidente convertido em cabeça de falanges armadas, é o mais sério problema nacional. Jair Bolsonaro e suas hordas se utilizam de todos os espaços possíveis para tentar acuar ou até subjugar a sociedade política, especialmente as instituições que articulam o regime democrático, assim como as organizações civis de vários matizes, convocando frequentemente a sua tropa de choque miliciana para pressioná-las e liquidar o regime democrático vigente. Exemplos são os ataques calculados e recorrentes ao Congresso Nacional, ao STF e aos partidos políticos, extensivamente às diferentes entidades, organizações e movimentos da sociedade civil.
Adicionalmente, mantém centros fomentadores de confusão e informações falsas, como a irradiação de fake news que insultam, provocam, caluniam, difamam e desqualificam seus desafetos a partir do Palácio e de por fora de seus corredores. Do cercadinho no Alvorada à ONU, todo lugar é usado para semear mentiras, agitar, propagandear e criar condições para o mais que anunciado autogolpe.
Seus alvos são verbalizados pelo chamado “gabinete do ódio”, a saber: os comunistas; a esquerda em geral e seus partidos políticos; a intelectualidade progressista e independente; os democratas, patriotas e liberais; as mídias incômodas; os empresários insuficientemente alinhados; os segmentos religiosos discrepantes; as pessoas consideradas imorais ou que reclamem; os seus correligionários de outrora; e assim por diante. Igualmente, a mira se volta contra governadores, prefeitos e membros do STF, assim como países amigos, atacados em nome do alinhamento exclusivo e absoluto à geopolítica estadunidense, mesmo no recesso de Trump.
Semelhante quadro se aprofunda com a situação crônica do Brasil, atingindo a grande maioria da população por meio do empobrecimento, desemprego agudo, arrocho e confisco salarial, bem como mediante o trabalho precário e sem direitos, os aglomerados urbanos insalubres, o colapso na infraestrutura ou prestação de serviços públicos – como nas áreas de transporte, saneamento básico e energia –, as moradias inadequadas, a violência policial e a ocupação desordenada e predatória do território nacional.
Um dos mais visíveis impactos é o aumento no número de trabalhadores precários, parciais e temporários, que decorrem da flexibilização e da terceirização, propiciando e sustentando o corte nos direitos trabalhistas e sindicais. O exército de atingidos já chega a 50% da força laboral, maior do que os cidadãos ativos em vários países avançados, e tem incidência direta na consciência, na organização e na combatividade sindical, afetando a mobilização reivindicatória mais geral e a luta política.
Nesse ambiente, brotam os movimentos temáticos, particularistas e identitários, que depois de um período inicial de crescimento vertiginoso, potencializado pelas manifestações de 2013 e por instituições privadas de hegemonia, vivem um momento de impasse. Boa parte de suas bandeiras vai sendo absorvida pelo capital e se reproduzindo por meio de afirmações e declarações principistas, sem nexo direto com as multidões exploradas, discriminadas e marginalizadas.
Enquanto os estragos da Pandemia recuam, graças à vacinação conquistada por exigência popular, a face deteriorada do cenário interno é percebida nas projeções do PIB, na queda dos salários reais, na precarização do trabalho, no desemprego, na inflação descontrolada, na carestia, na crise energética, no colapso dos serviços públicos e na infraestrutura. Os impasses sociais habitam os lares e as ruas de todas as cidades.
As opções governamentais são claras e distantes das demandas mais sentidas pelas maiorias nacionais. Se há estagnação, jogam seu peso nos ombros dos setores mais pobres, das classes trabalhadoras, das camadas médias e do empresariado mais fragilizado, exterior ao circuito monopolista-financeiro. Como se não bastasse, eliminam as políticas sociais e suprimem as conquistas trabalhistas, além de recusar alguns dos parcos e ainda insuficientes benefícios, auxílios emergenciais e demais iniciativas de amparo social.
O Planalto se recusa a encarar o Sars Cov 2 como um grave problema de saúde pública. Transformou o combate ao contágio e à Covid 19 em instrumento público de disputa político-ideológica e em balcão escondido de negociatas. Suas medidas relegam as instituições competentes ao abandono – como centros de pesquisa, de tecnologia e de ensino universitário –, além de prejudicar, desarticular e sabotar os esforços sanitários dos estados-membros, dos municípios e dos profissionais da saúde, bem como de ignorar os problemas socioeconômicos causados pelo imprescindível afastamento social.
O resultado já contabilizado são as mortes às centenas de milhares, as sequelas, os órfãos e as famílias desestruturadas, vítimas das testagens ausentes, dos diagnósticos imprecisos, dos hospitais lotados, das unidades de saúde incompatíveis ao tratamento, do atraso na vacinação e da sabotagem ao distanciamento social.
União das oposições para deter a reação
Mesmo diante da razia pandêmica e suas inúmeras consequências, a reação bolsonariana mantém o seu foco no propósito autogolpista e na mobilização contra o regime político desenhado pela Constituição de 1988 e na busca frenética de uma recidiva ditatorial. Para perceber o que acontece, basta olhar o que sucedeu na conformação dos precedentes regimes clássicos da ultradireita: Itália de Mussolini e Alemanha de Hitler, bem como as formas singulares do Portugal salazarista e da Espanha franquista.
As características germinais do protofascismo brasileiro se articulam com a sua essência entreguista na relação dependente ao imperialismo e se expressa na incompletude quanto ao regime político, que ainda tenta, insistentemente, moldar segundo aos designos do chefete. Percebe-se que o comportamento presidencial, em vez de fortuito, é traço imanente aos fanáticos da contrarrevolução conservadora, cônscios de que a Carta Magna e a legislação infraconstitucional estorvam o retrocesso a um regime ditatorial-militar, reformado e “aperfeiçoado” como autocracia pessoal-messiânica.
Em sua marcha ilegítima e ilegal, Bolsonaro polariza ao extremo a vida política nacional, obstaculiza o combate ao novo Coronavírus, insulta as instituições estatais que articulam os direitos constitucionais e calunia ou ameaça os dirigentes ou entidades da sociedade. Compulsivamente, insufla as tropas militares a reimplantarem o regime ditatorial e a reeditarem o AI-5, além de reforçar os grupos paramilitares e assanhar o fundamentalismo religioso mais reacionário.
Tais episódios continuarão se multiplicando com agressividade. Há um padrão na postura presidencial, que deixa patente sua pequenez: de “autoridade suprema” das Forças Armadas, preferiu rebaixar-se a um agitador barato nas portas dos quarteis. Quando se volta para a sociedade política, tenta emparedar os demais entes federativos, o STF e o Congresso Nacional quando lhe desagradam, objetivando transformá-los em correias de transmissão para os seus propósitos putschistas, repetidamente reiterados e confessos.
O atual mandatário da Nação já provou que não está disposto a respeitar as normas democráticas, que trama diariamente uma ruptura constitucional e que, para tanto, instrumentaliza abertamente o Governo Federal, além de outras instituições, órgãos e empresas estatais, para viabilizar seu propósito ditatorial. Portanto, não pode ser tratado como anomalia temporária ou como adversário a ser tolerado. Bolsonaro e suas milícias não abandonaram, nem dissimulam, suas metas: têm objetivos autocráticos e os perseguem de modo centralizado, disciplinado e militante, como se viu no sete de setembro. Portanto, devem ser tratados como inimigos do povo, que precisam ser rechaçados.
A partir da aliança com o chamado “Centrão” – grupo heterogêneo e instável, composto majoritariamente por políticos burgueses carreiristas, pragmáticos, fisiológicos, oportunistas e eleitoreiros filiados a partidos conservadores, que guardam contradições e expectativas distintas com o situacionismo, sendo que muitos participaram dos governos sociais-liberais ou mantém relações com setores oposicionistas até hoje – Bolsonaro construiu uma base parlamentar e também uma autoproteção contra a resistência democrática, fazendo do impedimento presidencial uma opção cada vez mais remota.
Nessas condições, abdicar da luta em defesa do regime democrático, menosprezá-la ou mesmo colocá-la em segundo plano – seja porque a chamada “democracia” já teria acabado, seja porque o tema dos direitos e liberdades individuais ou coletivos seria secundário, seja porque há incapacidade crônica de perceber a questão central na conjuntura, seja por simples confusão política –, mostrando-se incapaz de unir forças distintas e amplas, seria uma capitulação que condenaria o povo brasileiro, especialmente o proletariado e seus aliados, em um prazo que pode ser curto, mas ainda está em aberto, a uma derrota histórica de grandes proporções.
Sendo assim, as eleições de 2022 assumem um papel decisivo. O processo, já em curso e discutido abertamente, exigirá cada vez mais mobilização, diálogos, consensos e acordos entre forças democráticas com distintas trajetórias. As questões de interesse das maiorias nacionais e da população em geral têm que ser abordadas com base na garantia das liberdades democráticas, de um processo eleitoral democrático e da posse dos eleitos.
A resistência, que responde a todo tipo de provocação e ataque, já se manifesta na sociedade civil e na sociedade política, inclusive internamente a órgãos do Estado burguês. O principal consenso a ser buscado entre os vários segmentos é a certeza que os limites foram, e estão sendo, ultrapassados pela marcha liberticida que adentrou um caminho sem volta e jamais se deterá por si: terá que ser barrada. Por seu turno, o Governo Central e seus apoiadores apostam no impasse e na divisão das instituições. Já disse que usará todos os expedientes para manter a cadeira presidencial – inclusive inviabilizar e desacreditar o processo eleitoral e não aceitar o resultado. O autogolpismo é um fantasma que perseguirá os brasileiros enquanto Jair Bolsonaro não for derrotado e desalojado.
Apesar de, até agora, carecer de uma estrutura partidária própria, amargar um certo isolamento político-institucional e ver esvair-se uma parte de seu apoio, a reação bolsonariana permanece com força. Sua figura nuclear tem apelo eleitoral, controla a máquina do Governo Federal, tem representações por todo o País, pretende manter-se como centro articulador situacionista e reafirma o continuísmo como alternativa política, depositando as mazelas que afligem o povo na conta das forças progressistas, que o teriam impedido de seguir sua trajetória.
Apesar das defecções sofridas, do oposicionismo conservador vitorioso nas urnas em 2018 – responsável, por exemplo, pela desenvoltura da CPI –, do pronunciamento crítico de setores empresariais, inclusive do capital financeiro, do desgaste causado pela tragédia pandêmica, apesar das importantes manifestações populares e das pesquisas de opinião, o bolsonarismo e seu chefe não estão mortos. Possuem força real e não serão derrotados pela inércia, pela fragmentação e pela simples vontade, individual ou coletiva.
Impõe-se, portanto, como problema político-prático a ser equacionado, a união ampla das forças oposicionistas de espectros diferentes, para barrar, isolar e derrotar o bolsonarismo. Em vários aspectos e em diferentes arenas, todas as vezes que as forças democráticas e progressistas se uniram lograram êxito, colaboraram efetivamente para a mobilização popular, criaram dificuldades e derrotaram os governantes. São exemplos as disputas parlamentares em torno do auxílio emergencial, do Fundeb, da Lei Aldir Blanc e da Medida Provisória 1.045.
O próprio processo político real já descortina um caminho mais avançado e consequente. Protestam os partidos de oposição, as representações sindicais, as entidades com valores humanistas, os movimentos populares, as organizações democráticas, os artistas, os intelectuais e até personalidades ou forças conservadoras – inclusive alguns grupos monopolista-financeiros, como Organizações Globo, setores ligados à Febrabam e até segmentos da Fiesp. Lembre-se que alguns descontentes de hoje giravam em torno do Planalto até pouco tempo e muitos ajudaram a eleição do reacionário-mor.
As várias iniciativas de mobilização e as manifestações promovidas por entidades ou movimentos de tradição popular cumpriram, desde o primeiro dia do atual Governo Federal, o importante papel de denúncia e reação contra as medidas situacionistas. Contudo, além das dificuldades causadas pelo necessário distanciamento social, tais atividades, por mais vigorosas que tenham sido, vem expondo seus limites. Faz-se necessário um salto de qualidade. Nessa perspectiva, dois momentos de unidade merecem destaque por suas amplitudes e resultados: o ato do Primeiro de Maio unificado, promovido pelas centrais sindicais, e as manifestações unitárias do dia dois de outubro.
Coalizão oposicionista de salvação democrática
Todavia, continua urgente, na ordem do dia, a superação das seguintes deficiências, sérios entraves à consequência da resistência: a interlocução restrita aos aliados tradicionais à esquerda; a fragmentação nos propósitos e bandeiras adotadas; a falta cada vez mais gritante de um comando nacional unificador e reconhecidamente plural; a ausência repetida de convocações massivas, dirigidas ao conjunto da população; a participação tímida e seletiva dos partidos ou dirigentes oposicionistas; e a crescente submissão das forças políticas ao eleitoralismo.
A dispersão e a falta de objetivos táticos claros e de entendimentos voltados explicitamente à unidade, o sectarismo, o espírito de gueto, a recusa a fazer concessões e o pragmatismo eleitoral são a seara onde se multiplicam propostas e palavras de ordem desconectadas da realidade, sem mediações, artificiais, que colocam um sinal de igualdade entre a reação bolsonariana e a oposição burguesa, prejudicando a luta contra o protofascismo e o Governo Central.
Tais posturas provocam um senso de desorientação, que afasta as grandes massas e transmite uma insegurança para o povo. Por isso mesmo, dificultam a mobilização ampla e jogam água no moinho do esgarçamento entre as forças democráticas. A propósito, merecem críticas as vaias contra participantes. Também está equivocada a insistência na proposta que pede a convocação de uma assembleia nacional constituinte: na correlação de forças atual, seria o sepultamento dos avanços contidos na atual constituição, além de comprometer – retirar ou diluir – a centralidade tática.
Para enfrentar o autogolpismo, é preciso que as diversas forças interessadas se abram a novos e diferentes setores que compõem o espectro democrático, assim como unifiquem e coordenem as ações e iniciativas oposicionistas. O objetivo central a ser perseguido e construído deve ser a formação de uma ampla coalizão antibolsonarista. Semelhante tática vem sendo defendida pelo Partido da Refundação Comunista desde quando foi deflagrado o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff e foi asseverada com a vitória eleitoral da extrema-direita em 2018.
Tal diretriz deve percorrer as ações das forças participantes e comprometidas com seu êxito. Inclui o processo eleitoral, em que se deve buscar uma candidatura que espelhe a unidade conquistada, seja a síntese do atual estágio da luta democrática e tenha densidade suficiente para ser vitoriosa. Longe de qualquer laivo de autopromoção, autosuficiência ou patriotismo de partido, os interesses democráticos, nacionais e populares devem ser postos acima das demandas menores ou particulares, coletivas ou individuais, e ceder lugar aos entedimentos e à unidade ampla em nome de objetivo tático central.
Nesse quadro, as forças à esquerda no espectro político têm que ser a condição de polo mais dinâmico e animador da frente ampla, democrática e progressista, tanto no interior das articulações como no movimento de construção, além da intervenção político-prática. Os diversos fóruns e espaços de articulação política, especialmente os mais alargados – a exemplo dos partidos, governadores e centrais sindicais –, devem assumir um papel protagonista e servir de ponto de partida para a unidade que precisa extrapolar o universo das forças até agora envolvidas.
Os entendimentos já em andamento devem prosseguir, ampliar-se e adotar o caráter de uma mesa permanente de concertação oposicionista, composta por partidos e dirigentes políticos, a ser reproduzida nos estados-membros e cidades, com o objetivo de conduzir a formação e dirigir a coalização antobolsonarista. A coalização deve se organizar politicamente em torno do propósito de colocar um fim no Governo Bolsonaro e defender o regime político democrático. As diferenças ideológicas e políticas, inclusive os interesses regionais, estaduais e locais, devem submeter-se ao consenso nuclear.
Passo importante para viabilizar tal concertação é suspender os ataques mútuos, impulsionados por preconceitos e ressentimentos, e o olhar para o futuro, para a construção de um novo espaço comum de convergência democrática. Assim será possível um movimento nacional que conduza coletivamente o processo eleitoral e crie as condições políticas para selar alianças, acordos e compromissos nos estados para realizar o objetivo maior: barrar e isolar o situacionismo bolsonarista, dentro e fora das instituições estatais, derrotá-lo política e eleitoralmente, legitimar o processo eleitoral, respeitar os resultados e criar um ambiente democrático favorável, seja aos primeiros dias dos futuros governos, seja a uma atuação parlamentar comprometida com as massas populares.
A unidade erguida pela política de frente ampla deve ser sustentada por uma vigorosa mobilização de massas, que se concretize nas diversas frentes de intervenção e unifique ações de curto, médio e longo prazo, em torno do objetivo comum de colocar fora do Planalto o atual presidente. As formas e seus métodos de luta e autodefesa devem abarcar as particularidades de cada frente de intervenção, combinando agitação e propaganda com manifestações, passeatas, paralisações, greves, ocupações e ações institucionais.
Na construção da unidade, nas ações unitárias e nas campanhas eleitorais é preciso rechaçar qualquer saudosismo ou retrovisão politicista e distanciar-se da simples divulgação, publicidade ou defesa de realizações passadas. O eixo político central é o combate aberto e sem tréguas aos inimigos do povo, o vislumbre de um novo futuro e a apresentação de propostas vivas. Trata-se de anunciar soluções para os impasses atuais e os problemas mais sentidos, que penalizam a maioria da população.
Atualmente, o ex-presidente Lula da Silva reúne as melhores condições de representar a coalização oposicionista, seja para unificar as forças à esquerda, seja por reunir predicados que facilitam diálogos e acordos com segmentos democráticos conservadores, seja por apresentar a maior preferência popular. Suas desenvolturas e postulações, longe de expressarem as posições de alguns partidos, têm que se converterem no meio privilegiado para construir a frente ampla das oposições, de caráter nacional e de salvação democrática, além de expressar a síntese das forças que se disponham a marchar juntas.
Caso se revele impossível a candidatura única, é imprescindível que o processo eleitoral se dê sobre a égide e uma polarização compatível com a política de frente ampla. Isso significa consubstanciar a tática mediante bandeiras, compromissos e plataforma comuns, que sejam assumidos por todos, desde já. Por exemplo: a denúncia ao autogolpismo regressivo, a defesa das liberdades democráticas, o respeito ao processo eleitoral – incluindo ao resultado das urnas –, um pacto de não agressão entre candidaturas oposicionistas, o compromisso incondicional de apoio imediato aos candidatos que disputarem segundos turnos contra bolsonaristas e os pontos programáticos de convergências capazes de servir de base para as relações com os novos governos.
A base inicial de campanha, a plataforma e as diretrizes político-administrativas devem ser construídas com referência no trabalho comum desenvolvido pelas fundações partidárias até aqui. A partir desse acúmulo, é necessário entender-se com outras fundações, partidos, segmentos e dirigentes partidários, assim como promover uma convocação ampla e massiva de todas as forças e pessoas que se disponham a se somar na luta para derrotar Jair Bolsonaro, bem como eleger um governo democrático e progressista, além de governadores, senadores e deputados comprometidos com o regime político democrático, a soberania nacional e as reivindicações do povo brasileiro.
Belo Horizonte, 11 de outubro de 2021,
Comitê Central do Partido da Refundação Comunista – PRC/Brasil