Por Por Beatriz Daruj Gi*—
Em matéria publicada no portal UOL, em 3/2/2023, intitulada “Rede TV!: Lula usa linguagem ultrapassada ao citar ‘índio’ e ‘opção’ sexual”, as autoras criticam alguns usos linguísticos do presidente Lula em uma entrevista concedida à Rede TV!. Iniciam o debate apontando o que Lula deveria usar quando recorrem à locução prepositiva “em vez de”, como se observa no trecho inicial: “o presidente Lula usou os termos ‘índio’ em referência a indígenas e ‘opção’ em vez de orientação sexual…” (grifos meus). As enunciadoras trazem a público a ideia corrente, em alguns discursos contemporâneos, de que não devemos usar algumas palavras que seriam marcadas e de que devemos usar outras.
Cientistas da linguagem, principalmente sociolinguistas e analistas do discurso, têm mostrado, há décadas, que: 1) língua é uso; 2) língua varia no tempo, no lugar, no grupo social e na situação de comunicação associada ao gênero discursivo; 3) práticas prescritivistas, quando se trata do uso da língua, devem sempre ser revistas pelas razões apontadas em 1 e 2. É na escolha por “em vez de”, retratado acima, que mora o perigo prescritivista. “Em vez de” significa no lugar de e sugere, na opção feita no texto jornalístico, que Lula escolheu mal, separando assim os usos bons dos usos ruins, contrariando, portanto, o princípio da variação linguística e fortalecendo o prescritivismo.
Seguem outras escolhas linguísticas que denunciam o prescritivismo. Vejamos: “Não é a primeira vez que Lula erra ao deixar de adotar a linguagem inclusiva – focada nos grupos minoritários”. Ao optar por “erra” e “deixa de adotar”, estão dizendo, nas entrelinhas, que Lula tem que usar a linguagem inclusiva.
A linguagem inclusiva consiste em um conjunto de usos linguísticos que parte da sociedade tem defendido e adotado, em diferentes níveis da língua, com o objetivo de materializar linguisticamente a integração de grupos da sociedade. É um meritório movimento de inclusão social que procura abolir discriminações de vários tipos.
É verdade que parte da sociedade está preocupada com a inclusão de todas as pessoas e está tentando alterar a estrutura da língua para que ela se torne, no entendimento desse grupo, mais ajustada a um mundo inclusivo. E, nós, profissionais da linguagem, temos que estar completamente atentos ao tema. É verdade também que a língua varia e que quem determina essa variação é o usuário. E também temos que ser sérios observadores desse movimento. Mas dizer que Lula deveria adotar a linguagem inclusiva é prescritivismo. Não é a linguagem inclusiva que atesta o respeito que Lula tem ou não aos grupos minoritários. Dizer que Lula ou qualquer pessoa deveria usar linguagem inclusiva é ser prescritivista.
Reflitamos sobre a crítica feita ao fato de Lula usar “índio”
Alega-se, na matéria em questão, que “índio” era palavra usada pelos portugueses “para se referirem de forma genérica à população nativa do que é hoje o território americano – mas, só no Brasil, há mais de 300 povos indígenas”. Confere. A despeito de o colonizador português, que usava a palavra “índio”, ter sido responsável pela dizimação de grande parte dos povos indígenas, não se pode restringir o uso dessa unidade lexical a esses que parecem ser os primeiros registros, afinal já se foram uns 500 anos. Igualmente, é preciso entender o que significa dizer que “índio”, segundo as autoras, associa-se a uma “ideia depreciativa”. Lembremos, mais uma vez, do princípio básico de que língua é uso e verifiquemos os usos da palavra “índio”, para além dos portugueses colonizadores:
“Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá”
(Caetano Veloso – grifo meu).
No trecho acima, extraído da canção “Um índio”, de Caetano Veloso, composta em 1976, um índio (um indígena?) descerá de uma estrela e pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, depois de as nações indígenas terem sido exterminadas. Embora trate do aniquilamento dos povos indígenas, revelando uma “profecia utópica”, conforme avaliação feita pelo professor Guilherme Wisnik, em sua coluna na Rádio USP, em setembro de 2019, a canção constrói uma ideia positiva corporificada na chegada de “um índio” que trará o “espírito dos pássaros das fontes de água límpida, mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. Ao longo da canção, o “índio” é elevado a uma condição magnífica, sendo comparado à impavidez de Muhamed Ali, à paixão de Peri, à infalibilidade de Bruce Lee, além de ser retratado em um contexto de força, luz, espiritualidade, resplandecência. E, note-se, é chamado de “índio”.
Em outra canção, “Amor de índio”, composta por Beto Guedes e Ronaldo Bastos, em 1978, o uso de “índio”, como modificador do substantivo “amor”, compondo o sintagma “amor de índio”, restrito ao título da canção, resume o que se desenvolve na letra da música em relação ao respeito ao ciclo da vida, à força e ao equilíbrio da natureza, como se pode constatar no trecho:
“Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado
Meu amor […]
Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou”
(Beto Guedes e Ronaldo Bastos).
De autoria de um conjunto de produtoras e patrocinado pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, Índio cidadão é um documentário que retrata a luta de grupos indígenas pela manutenção de direitos conquistados na Constituição de 1988. A força da palavra “índio”, modificada por “cidadão”, no título do documentário, nomeia um trabalho de luta das nações indígenas e de enfrentamentos políticos pela garantia dos direitos originários à terra.
Outro uso da palavra “índio” pode ser encontrado em uma campanha pelo respeito aos índios (indígenas?) intitulada “Menos preconceito, mais índio”, desenvolvida, entre 2017 e 2018, pelo Instituto Socioambiental (ISA), uma das principais organizações ambientalistas e indigenistas do Brasil. Uma das peças da campanha é um vídeo filmado na comunidade Baniwa, no Alto Rio Negro, no Amazonas. No final do vídeo, um velho líder reivindica seguir sendo índio: “Somos os baniwas, vivemos no Alto Rio Negro, Amazônia. Andamos pelados. Nosso único esporte é caçar. Não temos pátria nem religião. Comemos com as mãos e cortamos o cabelo sempre igual. Isso, pelo menos, em 1500. De lá para cá, tudo mudou. E, se mesmo assim, você continua a ser ‘homem branco’, porque nós não podemos continuar a ser índio?”.
Como se pode constatar, esses exemplos da utilização de “índio” transcendem aquele uso aparentemente inaugurado no discurso do colonizador. Nos estudos etimológicos e semânticos de determinadas unidades lexicais, é possível verificar os inúmeros movimentos de uma palavra no processo de fixação de seu sentido, como a restrição e a ampliação de sentido e a polissemia. As palavras em si mesmas não são portadoras de significado absoluto; não se pode dizer que a uma palavra corresponde um único significado. Assim como também não são apenas suportes para inúmeros significados, caso em que as palavras mudariam seu significado a cada uso. O que ocorre é que a língua se desenvolve em equilíbrio. As palavras têm uma história de contextos pelos quais passaram ao longo de sua existência. A cada uso, em um determinado enunciado, atualiza-se um desses contextos presentes na memória da palavra. E, naturalmente, um longo uso novo vai preparando os usuários a incorporarem a novidade na história de uma determinada palavra.
O questionamento sobre o uso de “índio”, na atualidade, feito inclusive pelos povos originários, como uma palavra associada a um sentido único (aquele usado pelos portugueses em 1500), e que por isso deveria ser substituída por “indígena”, que consideraria uma multiplicidade de povos com diferenças ricas em vários níveis, pode fazer com que “índio”, naturalmente, ao longo do tempo, passe a ocupar menos contextos de uso. Mas isso depende dos usuários, da força real do desejo dos usuários de que isso aconteça. E um novo uso da unidade lexical ou do sintagma pode se fixar em alguns contextos apenas, mais ou menos restritos. O entendimento de que “povos originários” indica com mais precisão e respeito o que se quer denominar não deve ser motivo para que outros usos, como o de “índio”, sejam interditados.
Não se faz futurologia quando se estuda a língua; identificam-se, descrevem-se e analisam-se usos. E, nesse sentido, é preciso que se respeite toda a história de usos de “índio”, sem desprezá-la e restringi-la a um único contexto para que não exterminemos um índio que da estrela descerá, resplandecente.
E o que dizer dos termos “opção sexual” e “orientação sexual”?
Em relação ao também criticado uso de “opção sexual”, vejamos. O uso da expressão tem sido considerado inadequado e, no seu lugar, tem-se defendido utilizar “orientação sexual”, expressão que encobriria a ideia de que a sexualidade e o desejo sexual das pessoas são determinados internamente e que os indivíduos não optam pelo gênero pelo qual sentem atração afetiva e sexual. O que se entende, nesse caso, é que o uso de “opção sexual” indicaria, inadequadamente, que pessoas lésbicas ou gays, por exemplo, escolhem sua sexualidade.
O que se verifica é que, mesmo entre especialistas no assunto, há discordância sobre o caráter biologizante ou libertário da sexualidade, o que determinaria o uso de “orientação sexual” ou “opção sexual”, respectivamente. Em um estudo feito por Isaías Batista de Oliveira Jr. e Eliane Rose Maio, divulgado na revista Ensino em Revista, em 2016, sobre discursos a respeito de pessoas LGBTQIA+, os autores observam, em duas publicações do governo federal, Brasil sem homofobia, de 2004, e Guia para adolescentes e pares: para uma educação entre pares, de 2011, a crítica ao uso de “opção sexual”, com a justificativa de que a “orientação sexual” não é escolhida, nem aprendida.
Questiona-se, por outro lado, a ideia construída no uso de “orientação sexual”, alegando-se, por exemplo, que o fato de a pessoa não ser responsável pela determinação da sua sexualidade poderia gerar, em relação a essa pessoa, um sentimento de piedade.
Essa visão essencialista da homossexualidade (contida no uso de “orientação sexual”) revelaria a necessidade de autorização de uma determinada prática sexual e de indulgência com as pessoas LGBTQIA+, deixando de contribuir com o reconhecimento da legitimidade de um direito, o que estaria mais bem contemplado no uso da rejeitada “opção sexual”.
A escolha por “orientação sexual” parece descortinar, nesse entendimento, a ânsia pela explicação biológica de uma prática sexual; seria uma forma de entendê-la como algo inato do indivíduo, reafirmando uma antiga prática de explicação de fenômenos humanos com base no determinismo biológico.
Como se pode ver, nessa breve reflexão sobre o assunto, a escolha por “orientação sexual” ou por “opção sexual” está associada à contenda entre a visão essencialista e a libertária, respectivamente, e, no caso específico, ao entendimento sobre o que Isaías Batista de Oliveira Jr. e Eliane Rose Maio chamam de “genealogia da homossexualidade”.
Palavras e seus usos: o dinamismo da língua
Para fundamentar essa reflexão em princípios teóricos da lexicologia, área da ciência linguística que estuda o léxico da língua, é preciso começar lembrando que é no âmbito do vocabulário, subsistema mais epidérmico da língua, em que aparecem, com mais nitidez, os usos prestigiados e desprestigiados.
Os usos lexicais que se afastam do que parece ser um vocabulário atualizado, segundo as fiscais-autoras da matéria jornalística, são percebidos por elas como marcas de uma insuficiente e ultrapassada competência lexical do presidente Lula.
É necessário chamar atenção também para aquilo que tratamos de significado básico ou primitivo de uma palavra. Nos contextos de ensino-aprendizagem de língua portuguesa, tem-se chamado bastante atenção para o tema. Para além de seu significado básico (aquele que em geral é usado na maior parte de contextos em que uma palavra aparece), as palavras vão recebendo ressignificações construídas nos inúmeros enunciados produzidos pelos usuários da língua. Seja nos usos literários, em que se explora intensamente a virtualidade da língua, seja no uso da língua comum, no nosso simples e saboroso cotidiano linguístico, a palavra vai se ajustando às necessidades de seus enunciadores nas cenas da enunciação.
A postura prescritivista, presente em usos como “Lula erra”, “usa linguagem ultrapassada”, “usou os termos ‘índio’ em referência a indígenas e ‘opção” em vez de orientação sexual”, revela o entendimento de língua como algo estático, desconsiderando-se o movimento das palavras e, principalmente, o fato de que o sentido delas se constitui no discurso. A redução da palavra a uma única significação é um entendimento restrito das noções que o léxico de uma língua encobre.
É estreito esse olhar para as palavras como se elas fossem portadoras de significado absoluto, fazendo-se pouco caso do seu enlace com o usuário, com a situação de enunciação, com o discurso e com o gênero discursivo. Essa estreiteza é que sedimenta o fiscal da língua, levando-o a permanecer alerta, em estado de correção.
Ultrapassada não é a linguagem que Lula usa. Ultrapassado é o prescritivismo.
*Beatriz Daruj Gil, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Artigo publicado originalmente no portal do Jornal da USP.
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