Por Fábio Rodrigues—

Neste 13 de maio de 2023, se deu a passagem dos 135 anos da abolição formal da escravidão no Brasil, por meio da chamada Lei Áurea (Lei n.º 3.353 de 13 de maio de 1888). Considerando-se diversas razões, a data que já teve mais destaque no calendário das efemérides nacionais ‒ tem sido marcada por ressignificações ao longo do tempo. Pode-se dizer que entre os principais fatores para essas mudanças está a questão do protagonismo quanto a abolição.

Isso ocorre porque, durante décadas, imperou no país uma concepção historicista sobre o momento em que se pôs termo aos mais de três séculos de legalização da escravidão de pessoas negras no Brasil. Refiro-me ao “historicismo” no sentido da Escola Histórica alemã do final dos oitocentos, marcada pelo “culto” ao passado e a presunção de sua reconstituição “fiel”.

Tais características, em solo nacional, reverberaram na escrita de histórias concebidas na perspectiva dos “grandes” fatos e personagens, comprometendo a concepção da abolição como um processo. Privilegiou-se, assim, a centralidade da narrativa no ato oficial de assinatura da Lei Áurea e a edificação da imagem da governante que sancionou a Lei aprovada pela Assembleia Geral do Brasil, a princesa regente Isabel, laureada desde então como grande “benfeitora” dos escravizados.

Essa história, escrita sob a perspectiva oficial do Estado, revela-se ainda conservadora e branca, pois desvalorizou o papel da resistência negra desde os primórdios da colonização, traduzida nas centenas de quilombos mantidos em todo o território brasileiro ‒ base para as mais de 3 mil comunidades remanescentes atualmente reconhecidas [1] ‒, e nas incontáveis rebeliões e revoltas de escravizados, que eclodiram, em diferentes épocas, de norte a sul do país. Eclipsou-se, também, a importância do movimento abolicionista ao longo do século XIX, que valendo-se de diferentes meios, alcançando cada vez mais aceitação à causa, mediante o protagonismo negro, conseguiu vencer a resistência escravocrata.

Acerca do movimento abolicionista no Brasil, em meados dos anos 1860, começaram a se organizar associações voltadas à libertação de escravizados, que apesar de possuírem caráter elitizado no início, foram se popularizando nas décadas seguintes. No começo, havia grande mobilização pelas artes, com encenações de peças teatrais, saraus e concertos para angariar fundos e comprar a alforria dos cativos. Também há que se ressaltar a importância da imprensa abolicionista, ao mobilizar a opinião pública contra o regime escravista, desnaturalizando-o.

Em relação ao processo de abolição, deve-se pontuar que a Lei Áurea é uma lei comum, que poderia ter sido feita por iniciativa do governo brasileiro muito antes, o que permite desconstruir a imagem da princesa Isabel como “A Redentora” e, tragicamente, coloca o Brasil como um dos últimos países a extinguir formalmente a escravidão. Nesse sentido, além das questões elencadas, deve-se considerar as dinâmicas que se estabeleciam no mundo do trabalho em nível global naquele período, onde se intensificava a necessidade de ampliação da mão de obra assalariada para a consolidação dos mercados capitalistas europeus, impondo às elites brasileiras, ainda que tardiamente, a aceitação da ruptura com o modelo escravagista.

Outro fator importante para a ressignificação do 13 de maio diz respeito ao entendimento das limitações da Lei Áurea e da incompletude do processo de abolição da escravidão no país.

Festejado intensamente nos primeiros momentos após a abolição, o 13 de maio seguiu sendo comemorado pelos “de baixo”, sobretudo pelas associações negras, durante muitas décadas, constando como feriado nacional ‒ “consagrado à comemoração da fraternidade dos brasileiros” até este ser revogado, não sem resistências da comunidade negra, pela Lei n.º 19.488, de 15 de dezembro de 1930, responsável por reduzir os “dias de festa nacional”.

Com o passar dos anos, no entanto, a data foi perdendo seu simbolismo inicial. Em artigo publicado em 2015 pela Agência Brasil [2], ao discorrer sobre a razão pela qual a Lei Áurea não é motivo de comemoração, a então ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Bairros, afirmou ser em virtude do “tratamento dispensado aos que se tornaram ex-escravos no país”, diante a ausência de políticas que oferecessem “condições para que a população negra pudesse ter um tipo de inserção mais digna na sociedade”. Conforme ponderou a ministra na ocasião, ainda que tenha ocorrido o debate voltado à necessidade básica de promoção do acesso à terra para aquela população, de modo que os recém-libertos pudessem iniciar uma nova vida, isto lhes foi negado. Até mesmo o acesso ao mercado de trabalho foi realizado de forma precária, uma vez que a mão de obra negra, em muitas circunstâncias, foi preterida em relação à população branca ou imigrante, complementou Bairros.

Marco significativo dessa mudança de percepção quanto ao 13 de maio foi a década de 1980, em que no bojo dos debates travados em torno do processo de redemocratização após mais de vinte anos de ditadura militar, o movimento negro, ocupando lugar de vanguarda, buscou fazer prevalecer uma concepção distinta daquela apresentada pelo Estado, essencialmente no que concerne ao “mito da igualdade racial” no país. Desta feita, exatamente ao se cumprir o centenário da abolição, em 1988, o 13 de maio passa a receber críticas cada vez mais contundentes, de modo que, em contraponto às celebrações oficiais, assinalava-se a persistência do racismo e da discriminação contra a população negra, chamando a atenção para o fato de que a abolição legal da escravidão não garantiu condições reais de participação na sociedade para a população negra no Brasil.

Importante exemplo nesse sentido, foi a “Marcha contra a farsa da Abolição”, organizada pelo movimento negro e realizada no Rio de Janeiro em 11 de maio de 1988, tendo grande repercussão nacional e reunindo forte aparato de repressão. [3]

Também expressando esse sentimento, tornaram-se célebres os versos do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira naquele ano de 1988, quando apresentou o enredo Cem anos de liberdade: Realidade ou ilusão? [4]

Será que já raiou a liberdade?
Ou se foi tudo ilusão
Será que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão?
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu?

Moço, não se esqueça que o negro também construiu
As riquezas de nosso Brasil

Pergunte ao Criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela […]

Desde então, com incidência cada vez maior, o “Dia da Consciência Negra”, concebido e organizado a partir os anos 1970 pelo Grupo Palmares no 20 de novembro data da morte de Zumbi dos Palmares , serve como referência para o movimento negro.

Ainda assim, atualmente, a recusa ao 13 de maio tem sido relativizada, principalmente em função das muitas pesquisas que mostram, conforme já apontado, que a abolição também é resultado das lutas e do protagonismo da população negra. Vale destacar que, na Umbanda, o 13 de maio é carregado de simbolismo, celebrando-se a festa dos Pretos Velhos: momento de louvar a ancestralidade negra e a resistência dos que lutaram contra o cativeiro.

Em síntese, apesar de suas variações, em vez de um momento de comemoração, o 13 de maio se coloca, portanto, como data voltada à reflexão sobre as profundas sequelas deixadas pela escravidão em nosso país, que ainda hoje mantêm a esmagadora maioria da população negra à margem do mercado de trabalho e com acesso precário a outros direitos fundamentais, como saúde, moradia, educação de qualidade e saneamento básico. Uma data de luta contra o racismo estrutural que persiste no Brasil.

 

Referências:

[1] AGÊNCIA BRASIL. Menos de 7% das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-brasil-foram-tituladas>. Acesso em: 11/05/2023.

[2] AGÊNCIA BRASIL. Lei Áurea não é motivo de comemoração, afirmam movimento negro e Seppir. Publicado em: 13/05/2014. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-05/para-movimento-negro-lei-aurea-nao-e-motivo-de-comemoracao>. Acesso em: 11/05/2023.

[3] PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). 268 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

[4] G.R.E.S. ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA. Cem anos de liberdade: Realidade ou ilusão? Carnaval 1988. Enredo de Júlio Matos. Compositores do samba: Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.


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