Os sucessivos mandatários criaram e mantiveram o hábito e a tradição de se pronunciar no dia do Natal. Bolsonaro seguiu a regra. Em 2019, quando em dezembro a noite passava de 24 para 25 e os brasileiros se reuniam com familiares para o início das festas, o prócer falangista invadiu os lares pela TV com mentiras e demagogias: disse que escolheu “22 ministros pelo critério técnico”, que “o viés ideológico deixou de existir em nossas relações comerciais”, que houve “números positivos na economia” e que o ano terminou “sem qualquer denúncia de corrupção”. Referindo-se aos antecessores, violou a característica laica do Estado ao se gabar: “hoje temos um presidente que […] acredita em Deus”.

O padrão comportamental continuou em 2020, mas com uma singularidade. No decorrer da Pandemia, como em março, denunciara os meios de comunicação que, segundo a sua opinião negacionista, estaria tratando a Covid-19 com “histeria”, bem como as medidas encaminhadas pelos governos estaduais e municipais, taxando-as de políticas equivalentes a “terra arrasada”. Em contrapartida, glorificara o seu “histórico de atleta” como garantia contra o simples “resfriadinho”. Em dezembro, já no morticínio, baixou a tonalidade: citou as famílias das então 190 mil vítimas e pediu que Deus lhes desse um novo ano com “esperanças renovadas e fortalecidas”. Mas nada falou sobre a vacinação.

Em 2021, em pleno fracasso, “inovou” no discurso por cadeia nacional de rádio e televisão: preferiu fazer um duo relâmpago com a Sra. Michelle, a quem reservou mais tempo e sob a qual se camuflou. Com três curtas frases, declarou-se agraciado pela “proteção de Deus”, lamentou as “muitas dificuldades” havidas, pediu “Que Deus proteja as nossas famílias” e, apressadamente, saiu de cena. Nem se referiu ao flagelo da Covid-19, à geopolítica em fracasso, à economia em recessão, às desastrosas medidas governamentais, ao confisco salarial e à vacinação de crianças. Pelo fundamentalismo vazio e conteúdo ausente o jogral parecia entoar uma reza, mas inaugurou a campanha eleitoral.

Agora, em 2022, quebrou a norma. Silêncio ensurdecedor. Pela vez inaugural, o primeiro mandatário ausentou-se do Natal. Depois, voou para os EUA. Em aparência, tudo parece resumir-se à pirraça de quem perdeu a dimensão de universalidade porventura restante, por mágoa dos eleitores que preferiram sufragar o inimigo. Falar para todos seria demais para o autocrata fracassado e ressentido. No entanto, a postura encerra um relevante significado político. Com a vitória eleitoral da chapa Lula-Alckmin – expressão da frente ampla democrática e progressista, mesmo que um tanto inorgânica –, o cenário institucional das lutas entre as classes pôs a personagem maior da reação política no “curé”.

Se usasse a rede nacional teria que se definir de algum modo, mas como? No caso de um pronunciamento compatível com a “boa transição” – a mediação possível nas circunstâncias, o recuo tático –, passaria o recado subliminar de que se dissolveu no establishment contra o qual declarara uma guerra sem quartel. Assim, decepcionaria e desmobilizaria suas hordas, prenunciando a ruína estratégica. Na opção contrária, instrumentalizaria os meios comunicacionais oficiais para convocar os seus milicianos a continuarem implorando pela intervenção militar, estorvando a posse e preparando seu putsch. Semelhante aventura resultaria em derrota mais profunda e no enquadramento criminal.

O dilema ficou explícito no vídeo alternativo: “Você pode até ter tido razão, mas eu não posso fazer algo que não seja bem feito, e assim os efeitos colaterais não sejam danosos demais.” Paralisado, retirou-se rumo à sua Meca. Os comunistas, por seu turno, esquivam-se da postura contemplativa sobre os impasses alheios. A expectativa nos eventos por cima é insuficiente. Considerando-se os conflitos no seio da burguesia e do aparato estatal, cabe fortalecer o movimento extraparlamentar e autônomo das massas pelos seus anseios. Mesmo que o propósito seja influir sobre os governos e os parlamentos, a centralidade reside nas classes populares, até como polo dinâmico da frente ampla.

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