Considerando-se o período aberto na luta de classes com a derrota extremo-direitista, o câmbio na correlação de forças mediante a vitória democrático-progressista e as iniciativas da equipe transitória, esboça-se a plataforma conjuntural: isolamento à oposição sistemática, protagonismo governamental, superação da crise conforme o interesse popular e agilidade nos compromissos da campanha. No atual cenário, dois assuntos vêm destacando-se na mídia. Um, positivamente, são as providências para manter os auxílios emergenciais e a reorganização de outras medidas assistencial-compensatórias. Outro, negativamente, são as notícias de que a entrega das estatais será brecada e que o núcleo ministerial do planejamento-economia seria desfavorável às pretensões ultraliberais.
Decerto, é um bom começo. Há, também, o aumento real do salário mínimo, tão importante quanto – até mais, em certo aspecto –, que foi anunciado genericamente, sem grande repercussão. Compreende-se. Para os magnatas monopolista-financeiros, entre os quais aparecem os grandes grupos controladores da comunicação massiva, o recuo na taxa de mais-valia – ou da exploração, como também apresentada por Marx em O Capital – é algo sempre azedo. Para o patronato mais bronco, idem, ainda que as compras estimulem o mercado interno e a indústria. No entanto, por mais que a vida exemplifique alguns equívocos à esquerda, surpreende ainda o menoscabo pelos anseios proletários. Talvez porque se os julguem no rol da extinção, embora nem os listem para preservação.
As Centrais, na reunião em que reivindicaram o aumento real para 2023, propuseram o critério anterior a 2019, quando Bolsonaro assumiu a responsabilidade antilaboral de liquidá-lo: corrigir pelo índice da inflação e depois adicionar o aumento anual do PIB ocorrido há dois anos. Assim, o aumento acima do ajuste nominal seria 4,6%. Pode parecer uma quantia pequena, mas se agregado ao 13º e terço de férias, significaria cerca de R$ 805,00 em um ano. Mesmo que a nova redação da LDO preveja menos, deve-se reconhecer: trata-se de fato favorável antes mesmo da posse presidencial, pois, além de aceitar parcialmente o pleito sindical, fixa como princípio a progressão real, torna-se um precedente contraposto ao retrocesso e antecipa o estabelecimento futuro da regra legal.
Nunca é demais lembrar os benefícios da política que disciplina o reajuste com elevação real, contrastando com as condutas neoclássicas e servis aos interesses conservadores. Como informa o Dieese, o salário mínimo teve uma elevação de fato em 2003-2016. A política transcorrida no período apresentou, pois, um sentido social relevante. O IBGE detectou que os aumentos reais do piso remuneratório beneficiaram 30% entre os assalariados, além dos aposentados e pensionistas que somavam, em 2021, 30,7 milhões ou 14,6% na população. A suas repercussões atingiram, de imediato, 58 milhões de pessoas nas várias gerações, além de gerar desdobramentos indiretos nas faixas intermediárias e, mormente, nas mais próximas, invariavelmente propelidas pela indexação informal.
No auge dos 14 anos em valorização contínua, o acúmulo por cima da correção monetária somara 77,17% em 2017. O Dieese concluiu que 47,9 milhões de pessoas com salário mínimo progrediram R$ 35 bilhões na remuneração e geraram R$ 18,9 bilhões de aumento na recolha tributária sobre o consumo. Assim, os aumentos reais nos mandatos Lula e Dilma são a verdadeira reforma social da época. Decerto, mais ampla e repercussiva do que as medidas focalizadas. Semelhante assertiva nem de longe pretende menosprezar quaisquer das iniciativas reparatórias que granjeiam tantos aplausos nos jornais, TVs e instituições multilaterais, especialistas em divulgar planos românticos para incentivar “renda”, mas pouco afeitos a ratear o valor-trabalho criado no processo produtivo.
Mesmo que as políticas de amparo aos mais pobres tenham muita importância e que sua reverberação mereça o maior interesse, o problema principal dos pioneiros sociais nunca foi a compressão e a concentração das rendas referentes a terras, imóveis ou capitais, originadas em gargalos da sociedade civil ou na “má” partilha pelo Estado, nem a “solução” do “empreendedorismo” pequeno burguês. A questão crucial, desde a hegemonia mundial da sociabilidade burguesa, reside no modo pelo qual os seres humanos se relacionam para produzir e distribuir riquezas no metabolismo do capital. Marx, em sua obra máxima, ensina que “A verdadeira ciência da economia política começa no momento em que o estudo teórico se desloca do processo de circulação para o processo da produção”.