Por Anita Leocadia Prestes*—

A 3ª Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina e do Caribe (Moscou, outubro de 1934) e as supostas decisões de desencadear os levantes armados de 1935 no Brasil
Tornou-se um truísmo dizer que os levantes armados de novembro de 1935 resultaram de ordens expedidas de Moscou, ou seja, de decisões tomadas pela Internacional Comunista (IC). Após a dissolução da União Soviética, com a abertura dos arquivos de Moscou, surgiram novas possibilidades de esclarecimento do que efetivamente foi discutido e aprovado lá com relação aos acontecimentos de 1935 no Brasil. Dispomos hoje de cópias digitalizadas de documentos da IC relacionados às atividades dos comunistas no país, dentre os quais as Atas taquigráficas da 3ª Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e do Caribe, realizada em Moscou, entre os dias 16 e 28 de outubro de 1934.1
Os delegados latino-americanos nessa conferência viajaram a Moscou, com o objetivo de participar do VII Congresso da IC, que acabou sendo transferido para o ano seguinte. Diante disso, decidiu-se aproveitar sua presença em Moscou para a realização da 3ª Conferência dos Partidos Comunistas dessa região.
A delegação brasileira fora escolhida na I Conferência Nacional do PCB, realizada pouco antes no Brasil, composta por Antônio Maciel Bonfim (codinome Miranda ou Queiroz), secretário-geral do PCB, e mais quatro dirigentes do partido. Luiz Carlos Prestes (codinome Fernandez), que vivia e trabalhava em Moscou, recém-aceito no PCB, embora não fizesse parte da direção, participou dos chamados “encontros de Moscou”, assim como Octávio Brandão, ex-dirigente do PCB exilado nessa cidade desde o início dos anos 1930.2
Nas Atas taquigráficas da Conferência, chamam atenção os informes de Queiroz (Miranda) pelo seu caráter fantasioso e triunfalista: afirmações de que havia uma “profunda crise revolucionária no Brasil”, exagerando o diapasão das lutas camponesas “pelo país todo”, assim como das lutas do proletariado. Dizia que existia uma crise “terrível” no país e que os cangaceiros “conclamam à luta, unificam todos os miseráveis, que lutam por pão, pela vida”. Os cangaceiros possuíam uma base de massas que já estaria disposta a seguir Luiz Carlos Prestes — por isso, os comunistas deveriam utilizar o prestígio dessa liderança —, acrescentando que “os camponeses querem lutar de armas nas mãos” e que a autoridade do PC no campo era indiscutível.
Os demais membros da delegação brasileira também valorizavam o papel do cangaço, sendo que Prestes dizia nessa Conferência que “só o PC seria capaz de dirigir os cangaceiros”.3
O secretário-geral do PCB exagerava as proporções dos movimentos grevistas urbanos e a influência dos comunistas, dizendo que “a autoridade do PC é colossal”, “nós dirigimos todas as greves” e “no Rio de Janeiro, a maioria das greves é dirigida pelo partido”. Afirmava ainda que o PCB estava organizado praticamente em todas as empresas e que todos os membros do partido e da direção atuavam de forma permanente nas organizações de base — embora reconhecesse que o baixo nível ideológico fosse a principal debilidade dos comunistas brasileiros. Sentenciava que se marchava “agora” para a “unificação de todo o país em torno do PC”.
No que se refere às Forças Armadas, Queiroz (Miranda) dizia que o Exército estava “em decomposição de cima abaixo”, que era uma corporação com grandes tradições de luta, na qual o partido possuía bases na maioria dos corpos, sendo que as tropas simpatizavam com os sovietes. Inúmeras outras invencionices foram apresentadas na ocasião pelo secretário-geral do PCB.4
A situação de Prestes era especial: encontrava-se no exílio desde fevereiro de 1927, quando à frente da Coluna Prestes emigrara para a Bolívia. Durante a Marcha, percorrera o interior do país, ficando distante da vida política nacional que, dada a precariedade dos meios de comunicação da época, transcorria fundamentalmente nas grandes cidades. Recém-aceito no PCB, Prestes não estava em condições de questionar a maior parte das informações fantasiosas apresentadas pelos dirigentes do partido na 3ª Conferência.
Desde 1929 tanto os dirigentes do PCB quanto os da IC haviam definido a situação no Brasil como revolucionária, acreditando que estavam criadas as condições para a realização, nesse país, da primeira etapa da revolução socialista, denominada de “democrático-burguesa”, ou, em outras palavras, da “revolução agrária e anti-imperialista”. Partindo da definição de uma situação revolucionária no Brasil e da suposição de que seria possível promover uma insurreição das massas trabalhadoras, o PCB e a IC apelavam abertamente à luta armada e à criação de um “governo operário e camponês baseado nos Sovietes, isto é, nos Conselhos de Operários e Camponeses, Soldados e Marinheiros”. Tinha-se em vista a primeira etapa da revolução. Não se tratava de implantar de imediato o socialismo ou o comunismo no Brasil, como a “direita” sempre propalou.5
Durante a conferência e nos encontros dos delegados brasileiros com Dimitri Manuilski e outros dirigentes da IC, a questão da virada tática do sectarismo da política adotada a partir do seu VI Congresso, realizado em 1928, para a tentativa de formar “frentes populares”, foi um dos pontos importantes discutidos.
Nessa ocasião revelaram-se as sérias contradições existentes ente os dirigentes da IC; em particular, as divergências a respeito da política de alianças a ser adotada pelos partidos comunistas diante do avanço do fascismo em escala mundial. A partir da vitória alcançada, no final de 1933, com a libertação de Jorge Dimitrov da prisão na Alemanha nazista, após o rumoroso Processo de Leipzig, a tática do VI Congresso passaria a ser questionada não só pelo próprio Dimitrov, cujo prestígio se tornara enorme junto aos comunistas e à opinião pública democrática mundial, como também por setores importantes da IC. Os trabalhos da 3ª Conferência se realizaram nesse ambiente. Tratava-se, então, de os comunistas investirem na formação de amplas “frentes populares” destinadas a somar forças sociais heterogêneas contra a ameaça fascista, como se alcançou no Brasil, com a criação da ANL (Aliança Nacional Libertadora) em 1935, na França, em 1936, e no Chile, em 1938.
No início dos anos 1950, o peruano Eudócio Ravines, um ex-comunista arrependido — quadro destacado da Internacional Comunista no passado —, que se tornou um renegado do movimento e colaborador da direita nos EUA, lançou um livro de memórias em que afirmava, sem comprovação alguma, que “enquanto Dimitrov planejava sua tática de ‘Frente Popular em todo o mundo’, como meio de fazer frente ao fascismo, Manuilsky propugnava a aplicação de táticas insurrecionais, ali onde era factível pegar em armas”. A seguir, divulgava a falsa versão de que na 3ª Conferência dos partidos comunistas latino-americanos teria se decidido que, no Chile, se faria uma experiência de frente ampla, enquanto no Brasil se desencadearia a luta armada. Ravines escreveu, em La gran estafa, que os “russos” ordenaram os levantes de novembro no Brasil.6
Essa falsa versão, lançada por Eudocio Ravines, tornou-se conveniente para a propaganda anticomunista e no Brasil foi adotada, consciente ou inconscientemente, por inúmeros intelectuais, muitos dos quais acreditando sinceramente na sua veracidade.
Nos documentos da 3ª Conferência, que foram preservados nos arquivos da IC, não constam supostas diretivas do Komintern para o desencadeamento de uma insurreição armada no Brasil. Tratava-se de dar continuidade à orientação política anteriormente aprovada pela direção do PCB e que já vinha sendo posta em prática no país: levar adiante a luta de massas, fazer a luta contra o fascismo, intensificar o trabalho nas Forças Armadas, melhorar o movimento sindical.
Atendendo à solicitação feita por Queiroz, a IC enviaria um grupo reduzido, de cerca de dez pessoas, para assessorar a direção do PCB na formação de quadros e ajudar na montagem de alguns elementos logísticos — uma equipe excessivamente reduzida, se houvesse a intenção da IC de desencadear e dirigir uma insurreição no país.
Na 3ª Conferência não houve nenhuma decisão sobre a volta de Prestes ao Brasil. Seu regresso foi por vontade própria, com a concordância dos dirigentes do PCB presentes em Moscou na ocasião, na qualidade de “livre atirador, como membro do partido”, segundo suas palavras, sem que lhe fosse dada alguma tarefa especial.7
O avanço do fascismo e do integralismo, a fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) (março de 1935) e os levantes antifascistas de novembro de 1935
Com o avanço dos movimentos fascistas em escala mundial e do integralismo no Brasil (a criação em 1932 da Ação Integralista Brasileira (AIB), liderada por Plínio Salgado), assim como da ofensiva reacionária do Governo Vargas, que iniciara entendimentos para o envio ao Congresso Nacional do projeto de Lei de Segurança Nacional, apelidado de “Lei Monstro”, acelerou-se o processo de aglutinação de amplas forças populares e democráticas que levou à fundação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em março de 1935, ocasião em que L. C. Prestes foi aclamado seu presidente de honra.8
Embora não se saiba exatamente de quem foi a iniciativa de fundação da ANL, é inegável a influência das teses defendidas pelo PCB. Mas, na fase inicial de sua existência, a ANL não definia qual seria o governo que deveria executar as propostas consubstanciadas no lema “Pão, Terra e Liberdade”. Entre os dirigentes da entidade existia a tendência legalista de considerar possível levar adiante as mudanças almejadas “dentro da ordem e da lei”, posição criticada desde o início pelos comunistas.
Mantendo-se fiel à orientação política aprovada em sua I Conferência Nacional, de julho de 1934, o PCB continuava a crer na existência, no Brasil, de uma suposta “situação revolucionária” e convocava os trabalhadores a “pegar em armas desde já”, a multiplicar as guerrilhas no campo” e a lutar pela instalação de um “governo operário e camponês, na base de conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros (sovietes)”. Embora a ANL tivesse adotado o programa anti-imperialista, antilatifundiário e democrático proposto pelo PCB e amplamente aceito pela opinião pública, devido à influência decisiva de Prestes naquele momento, os caminhos para atingir esses objetivos eram vistos de maneiras distintas e contraditórias. Fator que provocaria reservas em relação à ANL de parte da direção do PCB.
Na realidade, havia uma contradição entre a linha política do PCB, voltada para a instalação imediata dos sovietes, e a nova orientação, acertada nos “encontros de Moscou”, de outubro de 1934, e trazida pelos dirigentes do partido em seu regresso ao Brasil, a qual pregava a criação de “frentes populares”.
Em abril de 1935, após chegar ao Brasil, Prestes, redigiu sua carta de adesão à ANL, dirigida ao presidente da entidade, Hercolino Cascardo. Por motivos de segurança, sua presença não foi revelada, e a carta foi datada de Barcelona e tornada pública em 13 de maio, em grande ato público convocado pela ANL. Nesse documento, Prestes, por sugestão da IC, com a qual concordara inteiramente, adotava a palavra de ordem de “Governo Popular Nacional Revolucionário” (GPNR), substituindo a de “Governo Soviético” até então empregada pelo PCB. Dessa forma, levantava-se, pela primeira vez, a questão do poder, que deveria realizar o programa aliancista e a frente proposta seria muito mais ampla e mais adequada à nova orientação de criar “frentes populares”. A partir de então, a consigna de GPNR foi adotada oficialmente pela ANL e ganhou as ruas. Somente em maio de 1935, a direção do PCB aprovou a nova orientação proposta pela IC e consagrada em seu VII Congresso, realizado em agosto de 1935.
A influência crescente de Prestes sobre a ANL fica evidenciada no documento lançado pela entidade, intitulado “O Governo Popular Nacional Revolucionário e seu programa”, em que se afirmava que o GPNR não era o “governo soviético” nem “a ditadura democrática de operários, camponeses, soldados e marinheiros”, numa linguagem típica dos comunistas. Dizia-se ainda nesse documento que a ANL proclamava “a necessidade de um governo surgido realmente do povo em armas”, esclarecendo a seguir que “o GPNR não significará a liquidação da propriedade privada sobre os meios de produção nem tomará sob seu controle as fábricas e empresas nacionais”.
Surgia assim nos documentos da ANL a proposta da luta armada como meio de chegar ao GPNR, coincidente com a concepção insurrecional adotada pelo PCB e pela IC. Nem todos os dirigentes da ANL estariam de acordo com essa proposta. Hercolino Cascardo, presidente da ANL, comandante da Marinha e “tenente histórico”, manter-se-ia fiel às concepções legalistas, externadas por ele desde a criação da entidade, desmentindo a tese de que a radicalização das posições da ANL e do PCB seria decorrência das influências tenentistas, supostamente levadas por Prestes e os antigos “tenentes” para o movimento.
Durante os meses de maio e junho de 1935, o movimento antifascista no Brasil, sob a direção da ANL, deu passos consideráveis. O ambiente político tornava-se mais tenso, e era evidente que o governo se sentia ameaçado pelo avanço do movimento antifascista e os êxitos alcançados pela ANL e demais entidades democráticas e populares. Enquanto aumentavam a influência e o prestígio da ANL junto aos mais diversos segmentos da opinião pública brasileira, desde o início de abril, a IC insistia com seu Bureau Sul-Americano e a direção do PCB para que fosse adotada a consigna de “todo o poder à ANL”, argumentando que o GPNR deveria ser um poder constituído pela própria ANL, o que, naquele momento, antes da reunião do Comitê Central do PCB de maio de 1935, significava a adoção pelos comunistas de uma concepção mais ampla da frente destinada a conquistar o poder.
A consigna de “todo o poder à ANL” foi lançada a 5 de julho, em manifesto assinado por L. C. Prestes. Se o Manifesto revelava a influência da IC na política adotada pelo PCB e pela ANL, ao mesmo tempo, expressava a radicalização que vinha se dando no país. Entretanto, os dirigentes da ANL, das demais entidades progressistas e democráticas e do PCB não se davam conta do nível incipiente de organização do movimento aliancista e popular e, desta forma, não percebiam que tal movimento seria incapaz de enfrentar com eficácia o golpe a ser desfechado pelas forças de direita, cuja preparação se tornara evidente.
A avaliação da situação política feita no Manifesto de 5 de julho não correspondia à real correlação de forças existente, naquele momento, no cenário nacional, mas parcela considerável e mais radicalizada dos aliancistas não só concordava com tal avaliação, como considerava que o apelo de Prestes deveria ser seguido.
A 11 de julho, Vargas assinou o decreto fechando a ANL, acusada de ser um instrumento a serviço do “comunismo internacional”. Embora o Manifesto de 5 de julho desse pretexto para a adoção dessa medida, sua verdadeira causa residia no fato de a ANL e as demais entidades democráticas ampliarem sua penetração junto à opinião pública e atraírem número crescente de adeptos e simpatizantes. O movimento aliancista adquiria caráter marcadamente unitário.
Dispondo de uma estrutura clandestina que lhe conferia condições de assegurar a atividade política de seus militantes nos diretórios aliancistas, o PCB assumiu o controle da entidade que, a partir de seu fechamento também se tornara clandestina. Reafirmando a existência de uma “situação revolucionária”, o PCB e, sob sua influência, a ANL voltaram-se para o desencadeamento de lutas armadas parciais, que deveriam permitir às massas populares chegarem a uma insurreição nacional. Tal insurreição derrubaria o governo Vargas, estabelecendo o GPNR com Prestes à frente, ou seja, o poder da ANL, que realizaria seus objetivos programáticos.
É nesse contexto que teve lugar a atuação de L. C. Prestes, cujo regresso ao Brasil ocorrera em abril de 1935, após um exílio de quase dez anos. Enfrentando o risco de ser preso, ele foi obrigado a viver na clandestinidade, afastado tanto de uma efetiva militância no PCB, de cuja direção não fazia parte, quanto do contato direto com aliancistas e demais correligionários e amigos. Embora mantivesse correspondência com diversos correligionários, em particular com antigos participantes da Coluna Prestes, na prática, estava isolado e acompanhava a situação, do movimento popular e do próprio PCB, por meio de Miranda — seu secretário-geral, que prosseguia lhe transmitindo informações exageradas e fantasiosas — e do Bureau Sul-Americano da IC, cujo conhecimento da real situação do país era precário. Presidente de honra da ANL e líder máximo da projetada insurreição nacional, Prestes foi compelido a assumir a direção de um movimento cujo controle não lhe pertencia.
Após o fechamento da ANL, houve a intensificação da repressão policial contra comunistas e aliancistas, assim como das provocações dos integralistas, contando com o beneplácito das autoridades. Davam-se também o acirramento do clima de insatisfação generalizada no Exército (devido à redução dos efetivos militares) e a crescente agitação nos meios operários. Nessas condições, os comunistas insistiam na necessidade de preparar e organizar as massas para a insurreição — uma vez que se acreditava na existência de uma “situação revolucionária” no país, num evidente erro de avaliação política.
As insurreições de novembro em Natal e Recife tiveram caráter precipitado, inesperado para a direção do PCB e do Bureau Sul-Americano da IC. No Rio de Janeiro, Prestes considerou que era necessário prestar solidariedade aos companheiros do Nordeste, defendendo a necessidade de desencadear o levante antifascista e democrático de 27 de novembro de 1935. A decisão foi tomada em reunião do Bureau Sul-Americano da IC, sediado na capital da República, do qual Prestes fazia parte, com a presença de Miranda, o secretário-geral do PCB. Não houve “ordens de Moscou”: à consulta feita às vésperas do levante pelos comunistas brasileiros, a IC respondeu que decidissem de acordo com as condições locais, segundo avaliação feita por eles próprios da situação nacional.
Se as diretivas da IC repercutiram de alguma forma nos acontecimentos de 1935 no Brasil, tal influência visou principalmente a ampliar o caráter da frente popular que estava se formando no país, contribuindo para que o PCB substituísse a consigna de “poder dos sovietes” por outra, de maior amplitude, como o GPNR, e lutasse por um poder de todas as forças aglutinadas na ANL. Se a orientação da IC foi inadequada às condições brasileiras, a responsabilidade por tal situação coube fundamentalmente aos dirigentes do próprio PCB.9
Entre as numerosas falsificações e calúnias lançadas pelas forças de direita contra os comunistas e os aliancistas e, em particular, contra Prestes, podemos incluir a atribuição da denominação de caráter pejorativo de “Intentona” aos levantes antifascistas de novembro de 1935 e a acusação difamatória de que os comunistas teriam assassinado militares que estariam dormindo durante o levante no 3º RI no Rio de Janeiro — algo impossível, pois as tropas estavam mobilizadas, de prontidão.
Da mesma forma, continuar atribuindo a Vitor Allen Barron — comunista norte-americano enviado ao Brasil pela IC para estabelecer a ligação radiofônica dessa entidade com o seu Bureau Sul-Americano, e assassinado pela polícia de Filinto Müller — a responsabilidade pela prisão de Prestes e Olga, uma farsa anunciada pelo então chefe da polícia, para encobrir Rodolpho Ghioldi, o verdadeiro responsável.10
Também pode ser lembrada a falsificação histórica de atribuir a extradição de Olga Benario para a Alemanha nazista, em setembro de 1936, exclusivamente à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), na tentativa de eximir Getúlio Vargas da responsabilidade por esse crime, que na prática condenou a prisioneira à morte.
Outra falsificação muito repetida: os levantes do novembro de 1935 como suposta causa do golpe do Estado Novo (novembro de 1937), desconsiderando o projeto de concentração do poder (a “Doutrina Góes”) adotado pela cúpula militar a partir de 1930 e vitorioso em 1937, com o golpe militar, que contou com o apoio e a participação de Vargas.11
À guisa de conclusão
Os acontecimentos relacionados com a história da Aliança Nacional Libertadora e dos levantes antifascistas de novembro de 1935 constituem um dos temas preferidos dos ataques anticomunistas das classes dominantes no Brasil e dos intelectuais comprometidos, consciente ou inconscientemente, com seus interesses exclusivistas. Luiz Carlos Prestes — reconhecidamente a liderança máxima dos setores populares naquele período — tornou-se o personagem central das investidas anticomunistas, empregadas seja em falsificações grosseiras da sua atuação e calúnias deliberadas, seja em invencionices sem comprovação ou em atitudes marcadas por incompreensões de parte de alguns de seus correligionários. O silenciamento a que Prestes seguidamente também foi submetido, tanto nos meios de comunicação quanto na própria historiografia, constitui uma das táticas usadas no combate ideológico travado contra os comunistas e as esquerdas no Brasil.
Ao registrar a inegável presença da ideologia anticomunista nos escritos referentes aos acontecimentos de 1935 no Brasil, não estou desconsiderando os graves erros então cometidos pelos comunistas e muitos dos seus correligionários, inclusive por Luiz Carlos Prestes. Os equívocos revelados nas políticas implementadas pelos setores de esquerda certamente contribuíram para que as forças de direita deles tirassem proveito em favor de seus objetivos espúrios.
Em autocrítica apresentada no Informe do CC do PCB ao seu IV Congresso, realizado em 1954, Luiz Carlos Prestes afirmava:
“[…] A influência do radicalismo pequeno-burguês na direção do Partido, sob a forma específica do chamado golpismo “tenentista”, levou-nos a cometer o grave erro de precipitar a insurreição quando eram ainda débeis nossas forças na classe operária e, por falta de apoio na massa camponesa, quase inexistente a aliança operário-camponesa. Para o triunfo da insurreição popular é indispensável ganhar o apoio de soldados e marinheiros, mas reduzir a insurreição a uma luta quase que só de quartéis é grave erro que teria de levar, como de fato levou, à derrota do movimento de novembro de 1935.”12
Anos mais tarde, em junho de 1972, convidado para participar de seminário dedicado à memória do revolucionário búlgaro Jorge Dimitrov, em seu 90° aniversário natalício, Luiz Carlos Prestes novamente referiu-se aos erros cometidos pelos comunistas brasileiros em 1935, assinalando que, “em vez de reforçar a frente popular, anti-imperialista e antifascista, de prosseguir acumulando forças, mediante a luta de massas, em defesa das liberdades democráticas e contra o fascismo, nos lançamos prematuramente à luta pelo poder”.13
Os acontecimentos de 1935 no Brasil constituem um episódio da História recente do país revelador do papel relevante assumido pelo embate ideológico como uma das formas mais importantes da luta de classes na atualidade. O 90º aniversário desses acontecimentos adquire grande importância como oportunidade privilegiada para travar o combate ideológico à História Oficial e resgatar uma História “comprometida com as evidências”, nas palavras do grande historiador marxista Eric Hobasbawm.
Notas
- Atas taquigráficas da 3ª Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e do Caribe, Moscou, 1934 (em russo; Arquivo Estatal Russo de História Social e Política, RGASPH, fundo 495, op. 101, d. 38, 22, 23, 26; op. 79, d. 216; existe cópia no Cedem/Unesp). ↩︎
- Ver PRESTES, A. L. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo, Boitempo, 2015, p. 148-157. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Idem. ↩︎
- RAVINES, Eudocio. La gran estafa (La penetración del Kremlin em Iberoamérica). EUA, s. e. ,10ª ed., 1974, p. 243-46. ↩︎
- Ver PRESTES, A. L. Op. cit., p. 148-157. ↩︎
- Ibidem, p. 166-184. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Ver PRESTES, Anita Leocadia. VICTOR ALLEN BARRON: HEROICO COMUNISTA NORTE-AMERICANO ASSASSINADO PELA POLÍCIA DE FILINTO MÜLLER EM 1936; PRESTES, A. L. Op. cit., p. 187-189. ↩︎
- PRESTES, Anita Leocadia. Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? 2ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Consequência, 2014, p. 55-79. ↩︎
- PRESTES, Luiz Carlos. “Informe de Balanço do Comitê Central do P.C.B. ao IV Congresso do Partido Comunista do Brasil”, Problemas, n. 64, 7 a 11 de novembro de 1954, p. 47- 146; p. 90-91. ↩︎
- PRESTES, Luiz Carlos. Intervenção em Seminário dedicado ao 90° aniversário natalício de Jorge Dimitrov, Sófia (Bulgária), 18 jun. 1972 (documento datilografado, 10 p.; arquivo particular da autora). ↩︎
Artigo publicado originalmente no site da Boitempo.
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*Anita Leocadia Benario Prestes é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), dos livros Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017), Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento e A coluna prestes (Boitempo, 2024). Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979”, publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.