Por Marcelo Bones—
O colapso dos editais e a urgência de um novo modelo de fomento
Parte I –
Nos próximos dias, os resultados preliminares dos editais da PNAB em Minas Gerais, segundo a SECULT MG, serão divulgados. O que veremos será um cenário de desespero e correria. Cada um dos mais de 18 mil inscritos estará mergulhado no caos, tentando entender sua pontuação, identificar inconsistências, preparar recursos, buscar justificativas e tentar reverter um resultado que, para muitos, (a grande maioria), será decepcionante. O momento será confuso, desgastante e profundamente frustrante.
Creio que é exatamente por isso que precisamos começar agora uma reflexão mais ampla sobre o que estamos vivendo no fomento à cultura.
O problema não está apenas neste processo específico, mas na estrutura que nos rege há anos. A fórmula dos editais como principal (ou única) ferramenta de financiamento à cultura chegou ao limite. Estamos presos em um sistema imprevisível, burocrático e injusto, que nos transforma em concorrentes diretos, nos forçando a disputar uns contra os outros recursos insuficientes para a real demanda do setor. Para quem não tem as benesses dos poderosos, essa é a única alternativa disponível – e, ainda assim, nos empurra para uma lógica de escassez, onde a cada contemplado há centenas de excluídos.
Desde a formulação dos editais, feita de forma amadora e sem planejamento, até a distribuição dos valores das premiações e fomentos, passando pelo critério de cotas (que, sabemos, em parte veio do MinC, mas sem um aprofundamento preciso), tudo reflete desrespeito com os trabalhadores e trabalhadoras da cultura.
As falhas da plataforma, a lentidão do sistema, as sucessivas retificações nos editais – feitas depois do início das inscrições –, as mudanças abruptas na forma de envio das propostas são apenas a ponta do iceberg. Mas o que está acontecendo agora em Minas Gerais, de maneira exacerbada, não é um caso isolado: o debate é nacional.
O modelo excludente dos editais
Os editais nos colocam em uma disputa insustentável. Um produtor cultural, que apenas deseja o financiamento justo de seu projeto, precisa disputar com centenas de outros agentes culturais, sabendo que menos de 4% das propostas serão contempladas. Isso não pode ser visto como um sistema saudável ou minimamente estruturante.
Além disso, os valores destinados a cada categoria são ridículos. Como pode um festival – que exige meses de planejamento, equipe qualificada, logística, produção, curadoria e divulgação – receber R$ 60 mil? Como viabilizar uma circulação de espetáculos com um valor que mal cobre os custos básicos? Como montar um novo espetáculo com orçamentos que mal permitem o pagamento digno de uma equipe?
Isso não é fomento, isso é esmola.
Essa lógica inviabiliza a profissionalização do setor, empurra os fazedores de cultura para a precarização, confunde trabalho artístico com trabalho social e nos obriga a atuar como voluntários de um sistema que não nos reconhece como trabalhadores.
E a avaliação dos editais?
Uma grande caixa-preta
Agora, com a divulgação dos resultados preliminares, a responsabilidade está nas mãos dos pareceristas. Mas há uma enorme falta de consistência nesse processo.
Quem são os pareceristas? Quantos foram contratados para lidar com mais de 18 mil inscrições? De onde vêm? O que comem?
Mas, diferente do Globo Repórter, essas respostas não chegam na sexta-feira à noite. E pior: não chegam nunca. Como se o trabalho de análise dos projetos fosse um mistério absoluto, como se não tivesse impacto direto na vida de milhares de trabalhadores da cultura. Mas tem. E muito. E olha que eu sou um parecerista, tá?
Um novo modelo de Fomento
Não há como dissociar esse debate da urgência de pensarmos um novo modelo de fomento. Precisamos de políticas públicas que garantam continuidade, planejamento e financiamento real para a cultura, que pensem ações estruturantes, e não apenas chamadas públicas sazonais que, ao invés de estruturar, precarizam ainda mais o setor.
E depois dos recursos? Vamos continuar aceitando essa lógica? Neste exato momento, todos estarão preocupados com seus próprios recursos, tentando garantir a última chance de permanecer no jogo. Mas e depois? Quando esse furacão passar, vamos continuar aceitando um sistema que nos coloca para brigar entre nós? Vamos seguir celebrando editais que sequer cobrem os custos reais dos projetos?
Se não começarmos essa discussão agora, seguiremos girando em um ciclo de precarização e frustração. Precisamos abrir esse debate de forma séria e coletiva.
Que modelo de fomento queremos? Como garantir políticas públicas que realmente sustentem o setor? Como organizar essa discussão e apresentar propostas concretas?
A escolha é nossa: ou seguimos presos a essa lógica excludente, ou começamos a construir um outro caminho. Ou então… quem sabe: fazemos um sorteio! Seria, no mínimo, mais transparente do que o que temos hoje. Brincadeira… mas dá vontade de propor.
Parte II – Os Limites da Avaliação por Pareceristas – Marcelo Bones 20/03/2025
Este texto é uma continuidade da reflexão iniciada anteriormente sobre a falência do modelo de editais como principal ferramenta de fomento à cultura. Se, no primeiro texto, destaquei o esgotamento desse mecanismo – incapaz de estruturar o setor e garantir sustentabilidade aos trabalhadores da cultura –, agora, aprofundo uma análise, ainda que de forma introdutória, sobre um dos aspectos mais problemáticos desse modelo: o sistema de avaliação por pareceristas.
Não é minha intenção, de forma alguma, desmerecer esse trabalho, que, quando bem-feito, é fundamental e pode, sim, contribuir significativamente para o processo de avaliação dos editais. Falo a partir de uma experiência concreta. Ao longo de 45 anos de atuação na cultura, tenho transitado por diversas funções – artista, gestor público, coordenador de programas culturais, proponente e, nos últimos anos, parecerista. Pretendo continuar atuando profissionalmente como parecerista e conheço de perto a complexidade do trabalho de análise de projetos. Reconheço sua importância, muitas vezes sendo realizado sob grande pressão, com prazos exíguos e remuneração insuficiente. Sei também dos desafios desse processo, especialmente no que diz respeito à assistência, capacitação e orientações oferecidas aos pareceristas por parte dos contratantes. Já vivenciei experiências muito bem conduzidas em avaliações das quais participei, mas também testemunhei falhas significativas em outras. No entanto, a forma como os pareceristas vêm sendo utilizados nos editais da PNAB MG e em outros processos no Brasil expõe uma fragilidade estrutural que compromete a transparência e a justiça na distribuição dos recursos.
Uma das principais fragilidades desse modelo é a falta de clareza e transparência sobre o recrutamento, capacitação e metodologia de trabalho dos pareceristas. Esses profissionais são selecionados por meio de processos muitas vezes questionáveis, com critérios pouco transparentes e sem uniformidade entre os diversos credenciamentos realizados. Em muitos casos, não há garantias de que suas análises seguirão um padrão técnico minimamente coerente. Esse grau de incerteza gera desconfiança e abre brechas para avaliações arbitrárias, incoerentes e contraditórias.
Outro ponto crítico é o isolamento do parecerista no processo de avaliação. Modelos mais robustos, como aqueles baseados em comissões julgadoras formadas pela sociedade civil e pelo poder público, garantem que as propostas sejam debatidas coletivamente, permitindo múltiplas perspectivas e maior equilíbrio na tomada de decisões. Claro que há o desafio do volume de propostas. No caso de Minas Gerais, foram mais de dezoito mil inscrições, o que torna o processo ainda mais complexo.
No entanto, não podemos normalizar uma avaliação em massa, quase industrial, que impede uma análise criteriosa e aprofundada das propostas. No modelo atual, um ou dois pareceristas atribuem notas sem qualquer possibilidade de diálogo ou revisão coletiva. Isso reduz drasticamente as chances de uma avaliação mais justa e plural, submetendo os projetos à visão unilateral de um avaliador, que pode ter critérios subjetivos ou simplesmente não compreender o contexto específico de cada proposta.
Outro agravante é que, em alguns casos, há uma completa ausência do Estado no processo avaliativo, delegando integralmente aos pareceristas a responsabilidade pela seleção, em alguns casos, sem qualquer mecanismo de acompanhamento, mediação ou controle de qualidade.
A falta de transparência se acentua na etapa dos recursos. Há pouca clareza sobre quem revisa os pedidos (se são os mesmos pareceristas da primeira avaliação ou novos avaliadores) e sobre qual metodologia é aplicada nessa reanálise. Essa imprecisão fragiliza o sistema e o torna suscetível a injustiças, reforçando a percepção de que a distribuição dos recursos pode resultar num processo pouco democrático e pouco estruturado.
Os recentes editais da PNAB MG explicitam essas falhas: reclamações volumosas de pontuações incoerentes, avaliações contraditórias, gerando muita insegurança para os proponentes, que não conseguem explicar critérios de pontuação variados dentro do mesmo edital sem justificativa clara. Esse tipo de erro mina a credibilidade do processo e aprofunda a precarização do setor, transformando os editais em um jogo de sorte, em vez de um instrumento de fortalecimento da cultura.
O que está em jogo aqui não é apenas a necessidade de ajustes pontuais, mas a urgência de repensar o modelo de fomento à cultura no Brasil. Os editais, da forma como existem hoje, não conseguem dar conta da complexidade do setor e da diversidade das expressões culturais. Precisamos avançar para políticas de financiamento estruturantes, contínuas e democráticas, que garantam não apenas a sobrevivência dos artistas e produtores culturais, mas também a sustentabilidade e o crescimento da cultura brasileira.
Se não encararmos essa discussão de frente, seguiremos reféns de um sistema que nos coloca uns contra os outros, concorrentes em uma disputa desigual por recursos escassos, enquanto a cultura segue sendo tratada como um setor secundário.
Temo que estamos criando um sistema caótico e bagunçado!
Março de 2025