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Entrevista exclusiva com Fabricio Marques, autor de Aço em Flor, livro que analisa a obra do poeta

 

Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê?

Se estivesse vivo, Paulo Leminski completaria hoje 80 anos. Mas quis o destino- este com quem não devemos discutir- que sua vida fosse breve. Breve, intensa, multifacetada. Foi poeta, jornalista, publicitário, compositor, professor, tradutor, samurai. “Ele tinha uma pressa de viver como quem morre” afirmou Alice Ruiz, com quem o poeta foi casado. Morreu aos 44 anos deixando uma obra inovadora e influente e uma poesia que pende entre o rigor e a leveza. Traduziu autores consagrados e o primeiro livro de John Lennon, lançado no auge da popularidade dos Beatles, uma coleção de contos por aqui chamado de “Um Atrapalho no Trabalho” e esgotado há décadas, pelo que sei. Escreveu as biografias de Jesus, Trotsky, Bashô e Cruz & Souza. Mistura nobre de pop com cult como bem definiu o escritor e amigo Domingos Pellegrini.

Pra celebrar os 80 anos de Paulo Leminski, nada melhor que ler Leminski. E ler sobre Leminski. Escrito por Fabrício Marques, jornalista, poeta e doutor em Literatura Comparada, Aço em Flor ( UFMG- UNICAMP), lança luz sobre cada uma das fases da poesia leminskiana, além de “um necessário mapeamento da vida intelectual do poeta e do contexto em que ele atuou, situando a sua poesia no cenário do final do século XX e atribuindo a ela uma “função libertadora” em relação aos dogmas poéticos vigentes”. (Maria Esther Maciel, do Prefácio). O livro parte da dissertação de mestrado do autor, apresentada em 1996. O ensaio, publicado pela primeira vez em 2001, foi revisitado e ampliado em 2024.

Conversei com Fabricio Marques sobre a poesia de Paulo Leminski nesta entrevista exclusiva que você lê agora:

DZ: Quem foi Paulo Leminski?

FM: Ensaísta, publicitário, romancista, compositor, cronista, tradutor, contista: Leminski vivenciou muitas atividades, mas era sobretudo poeta. Leminski era um “habitante da linguagem”, como definiu certa vez, de modo certeiro, o crítico de arte Wilson Coutinho (1947-2003). Nesse sentido, era poeta no sentido de que fala Décio Pignatari, de alguém que “faz linguagem”. Para o poeta, diz Pignatari, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Em tudo o que fez, Leminski praticou esse duplo mergulho habitando a linguagem, que é uma maneira de estar e não estar, ao mesmo tempo, no centro e à margem.

DZ: Quais são as faces da poética leminskiana? Ou, citando Maria Esther Maciel, autora do prefácio do seu livro, com quantos Paulos se fez um Leminski?

FM: As faces mais visíveis dessa poética são aquelas que explicitam um diálogo com certas visões de mundo – como o Zen –, com outras manifestações artísticas – como a música–, com algumas formas poéticas – como o haicai e a poesia concreta –, e com um meio de comunicação de massa – a publicidade. No livro, tento mostrar como o poeta elabora diálogos, ou convergências, com essas tradições, retrabalhando-as, contaminando-se delas, colocando-as em contato, enfim, tentando criar poemas, em busca da liberdade de sua própria linguagem.

DZ: Como a poesia de Leminski, inovadora por excelência, foi recebida, em seu tempo, pela critica literária e pela academia?

FM: A poesia de Leminski esteve e está longe de ser unânime, e não vejo problema nisso. Hoje é muito menor do que na época em que o poeta estava vivo, sobretudo nos anos de 1980 – mas ainda existe alguma resistência, especialmente na área acadêmica. Creio que sua própria figura pública, excessiva e exuberante, contribuía em certa medida para essa resistência. Em outras áreas, como no jornalismo, por exemplo, é interessante comparar a recepção ao lançamento de seus livros, mais positiva na imprensa paulista que na carioca.

DZ: Um episodio fundamental na trajetória de Leminski, que vc cita em seu livro, é quando ele participa da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, em 1963. Na ocasião, o poeta Affonso Ávila destaca a presença de Leminski como uma estrela cadente no fulgor de seu talento  e o chama de Rimbaud curitibano. Leminski tinha 17,18 anos. Qual a importância da poesia concreta em sua formação e em que medida ele  convergiu e divergiu dela?

FM: Leminski deixou documentada, em entrevistas, ensaios, poemas e cartas, o quão marcante foi a poesia concreta em parte importante de sua poesia. E também não escondeu o gradual distanciamento, ou relativização, dessa referência na sua comunidade de interesses. Ele disse, em certo momento, ser mais concreto que os poetas concretos, porque os irmãos Campos e Décio Pignatari se tornaram concretos, enquanto Leminski já nasceu concreto. Mas é digno de nota acompanhar sua relação com esta poesia, em várias fases, da admiração total ao distanciamento, sem nunca deixar de reconhecer a importância dos concretos em sua formação.

DZ: “Para ser poeta é preciso ser mais que poeta” afirmava Leminski. Comente, por favor, Fabricio.

FM: Esse era um “jeito mestiço” de ser do poeta, de seguir um caminho poliédrico, multifacetado. Se “a vida é curta/ para mais de um sonho”, como diz um de seus poemas, é preciso ir fundo na vida e ir fundo no sonho. Ser reles e ser raro. Ser (muito) mais, para ampliar os horizontes de sua linguagem e do cotidiano. Na prática, é não se fechar em referências apenas do universo poético, mas procurar o diálogo com outras formas de saber e de viver.

DZ: O que faz de Leminski, ainda hoje, um poeta tão pop? Há quem diga, inclusive, que ele foi o ultimo grande sucesso da poesia brasileira. Concorda?

FM: Por ocasião dos 30 anos da morte de Leminski, em 2019, o poeta Tarso de Melo escreveu um belo artigo na revista Cult, chamado “Por que amamos Paulo Leminski”. Uma das sacadas do Tarso é afirmar que “A poesia de Leminski está longe de ser superficial, mas o poeta sempre soube, como poucos, explorar a superfície do poema – sua primeira e mais imediata camada – como um convite, um chamariz, uma isca para que o leitor caia em seu abismo.”

É justamente pelo trabalho em torno desta “superfície do poema” que Leminski roçava o pop, publicando poemas que falavam diretamente aos jovens (mas não só, claro), e partindo desse caldeirão em que misturava referências caras à contracultura (rock, quadrinhos etc).Que “Toda poesia” (Cia das Letras) tenha sido o livro mais vendido em 2013 (ano de seu lançamento, superando também os livros lançados de prosa naquele ano) é um fenômeno que ainda precisa ser melhor entendido e analisado, mas é uma consequência clara desse apelo pop. Sobre ele ser o último grande sucesso da poesia brasileira, creio que sim, mas precisamos refletir o que significa esse sucesso. O próprio Leminski escreveu: “Diverso o sucesso,/ basta-lhe um verso/ para essa desgraça/ que se chama dar certo”.

DZ: Aço em flor é o nome do seu livro ( e de uma poesia de Leminski) e fala desse movimento que a poesia dele fez, “acaso e rigor se entrecortando, extremos chamando extremos” e que revela “ a intensidade que se concentrou na poesia que ama a surpresa e a precisão.” Como o poeta atingiu essa proeza: que seus textos amalgamassem  várias influências e a sua formação erudita em prol de uma identidade própria e acessível?

FM: Acho que você foi muito feliz em usar o verbo “amalgamar”. Nessa mistura, o poeta conseguiu tensionar inovação e comunicação, ou seja aproximar polos contraditórios, uma estratégia para estabelecer pontes entre referências de uma linguagem mais sofisticada e outra, coloquial, quase na fronteira do clichê.

DZ: Em ultima instância, qual foi a influência do haikai na obra de Leminski? E o que você acredita que o levou a abraçar a poética da brevidade?

FB: Escrevendo sobre Bashô, mestre do gênero, Leminski observou que os poetas de haikai chamavam “mu-ga” – em japonês, “não eu” –, o exato ponto de harmonia entre um eu e as coisas. A forma breve do haikai, síntese de um momento tocado em sua mais plena essência, parece a mais adequada para expressar uma revelação, uma iluminação. Aqui e agora. Essa compreensão sobre o significado de uma forma poética coincide com aquela definição que Ezra Pound levava muito em conta, da poesia como a mais condensada forma de expressão verbal.

DZ: Pra terminar, indique por favor um livro de Paulo Leminski aos nossos leitores, uma boa porta de entrada para sua obra literária.

FM: “Toda poesia” (Cia das Letras, 2013) reúne todos os livros de poesia, é o que recomendo. Mas quem quiser começar por um dos livros, eu indico o póstumo “La vie en close”, da mesma editora. A maioria dos poemas foi escrita quando o poeta estava próximo do fim, então trazem uma urgência e ao mesmo tempo um lirismo, uma serenidade e uma intensidade que, somadas, conferem alta voltagem poética ao livro.

 

Fabricio Marques é poeta e jornalista, autor, entre outros livros, de “A fera incompletude” (2011),“Uma cidade se inventa”(2015) e “Wander Piroli, uma manada de búfalos dentro do peito” (2018), todos finalistas do Premio Jabuti.

*Daniella Zupo, escritora e documentarista. Matéria publicada originalmente no blog https:/daniellazupo.com.


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