Para os fascistas, que veem no regime democrático apenas um artifício de agitação quando lhes faltam forças para efetivar um putsch vitorioso, as eleições têm sempre um caráter fraudulento. No entanto, a sua doutrina nuclear, que frequentemente aparece ou ressurge na época dos monopólios financeiros e do imperialismo, dificilmente amarga uma solidão integral. Setores da sociedade política tidos comumente como civilizados repetem as suas condutas e atitudes: uns, por adesão mais ou menos interessada; outros por vacilação em face das pressões providenciadas pelos “donos” da hegemonia vigente.
Independentemente, porém, das motivações que transformaram o “chavismo” e o “bolivarianismo” em “maldições”, como se brotassem da erupção que teria vomitado nas “democracias puras”, desde as profundezas do inferno, as essências do mal, eis que o quadro político criado pela extrema direita em torno do pleito venezuelano possui dois paradoxos. Primeiro: ao procurar denunciar como “fraude” o sufrágio, apenas conseguiu colocá-lo em superlativa evidência, mundialmente. Segundo: ao pintar Maduro como “ditador”, somente logrou salientar o caráter legítimo e o apoio popular do presidente reeleito.
No entanto, a lógica dos fatos parece invisível para quem o propósito é conspirar. Os sucessivos inquilinos da Casa Branca vêm tentando – pelos diferentes meios, inclusive o terrorismo –, derrubar os presidentes instalados em Caracas, expressões institucionais do projeto político de reformas democrático-radicais, progressistas e anti-imperialistas inaugurado pelo Movimiento V Republica em 1999. A história registra uma série de atentados e intentonas golpistas. O mais recente anuncia que a votação para presidente seria uma farsa inválida, pois supostamente manipulada no Palácio Miraflores.
Assim que o resultado foi anunciado pelo Conselho Nacional Eleitoral, o plano se desdobrou. A hiperdireita interna, conforme o assalto ao Capitólio pelos trumpistas e da Janeirada bolsonariana, recusou-se a endossar os números das urnas, declarou-se “vitoriosa” e adentrou no modo Guaidó.2. Em vez de contestar os documentos e os dados fantasiosos da oposição – respectivamente, “cópias” de relatórios e 70% na votação – Washington manteve o rumo e transformou a palavra dos vencidos em ultimato à nação Caribenha e sul-americana: publique as atas, condição para reconhecer o novo mandato.
A intromissão nos assuntos internos do Estado vizinho foi seguida por alguns mandatários da região, que já vinham expondo seus preconceitos. Julgaram-se, pois, no direito autocrático de preceituar procedimentos e prazos ao país de seus desafetos, violando as elementares normas internacionais e diplomáticas. Outros adotaram posturas tidas como “cuidadosas”, mas com perfume de flutuação, abrindo precedentes intervencionistas. Sentindo-se fortalecido, John Kirby, com arrogância máxima, engrossou a voz, ameaçando a parte que avalia ser mais frágil no contencioso: a “paciência está esgotando-se”.
O falcão, que representa o Conselho de Segurança Nacional estadunidense, ignora – ou esconde – que na sua “democracia perfeita” o candidato adversário foi quase morto por tiros há duas semanas. Que, lá, o principal mandatário nem mesmo é definido pela via direta. Que nas monarquias participantes da Otan o critério é o “sangue azul” da realeza. Que os regimes ditatoriais pelo mundo afora sempre “mereceram” seu amparo, inclusive o implantado no Brasil há 60 anos, em troca do combate ao “comunismo” e das riquezas nacionais. Que sustenta o gabinete israelense, responsável por assassinatos e genocídio.
Como se não bastasse, persiste o bloqueio a Cuba, em nome de uma diplomacia baseada em cruzadas missionárias e guerras. Considerando-se o rol de absurdos e agressões, justifica-se o comunicado publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Venezuela, denunciando a trama que “atenta contra a soberania nacional”. O que diria o Itamarati se os ataques feitos ao sistema eleitoral brasileiro, em 2022, fossem feitos por governos estrangeiros? Semelhante incoerência, insuficiente para convencer os reacionários e os tolos, ao menos lembra que as pernas da mentira são demasiadamente curtas.