“Com mortos às dezenas e desabrigados às centenas…”, assim começava o Editorial do portal Vereda Popular em 24/2/2023, ao abordar o desastre ocorrido no litoral norte paulista, então “apresentado como se provocado por ‘mudanças climáticas’ geradoras dos ‘eventos extremos’.” Também criticava “certos políticos, ativistas e comentaristas”, que as editavam “como a causalidade única” ou “principal”. Concomitantemente, ao criarem “uma segunda natureza” mediante um negacionismo incidente sobre o passado geológico do Planeta, os conhecimentos científicos acumulados pela climatologia e o ser social formulado por Marx, sustentavam existir a determinação exclusiva da volição humana genérica.

Tal enfoque dissolve os acontecimentos da história, especialmente a formação econômico-social com sua lógica e suas contradições, mormente os modos produtivos e as lutas entre as classes, com atribuições concretas e particulares aos sujeitos envolvidos. Eis porque os beneficiários da operação doutrinária são apenas o capital, cujas mazelas “sumiriam” por encanto, e a burguesia, que detém as rédeas do Estado brasileiro, da urbanização anárquica e do crescimento citadino sem planejamento. A desfaçatez se repete, agora, em face da horrível tragédia em Porto Alegre, cujo “culpado” solitário seria tão somente a imprevisão do gênero integral. Mas, sublinhe-se, ostenta uma novidade.

A extrema direita, que faz oposição ilimitada, sistemática, pragmática e sem qualquer respeito aos atingidos, inventa mentiras e acusa desafetos políticos, chegando até a hostilizar e agredir governantes ou pessoas envolvidas em ações de solidariedade, muitas ocupadas com trabalhos profissionais em situação complexa, emergencial e periclitante. Perante o País e o povo estarrecidos, a politiquice pragmática do fascismo atinge as raias do irracionalismo e da chulice, como se vê ou se lê nas redes sociais da ultraconservação. Como se não bastasse o sofrimento geral dos gaúchos, as hienas da reação nem sequer se detêm no limiar da prática delituosa que seus cúmplices ultraliberais justificam.

Deixando ao largo a conduta oportunista, merece atenção a recorrência do evento que de modo nenhum é novidade, menos ainda o episódio maior. Basta lembrar o acontecido em 1941, na Bacia do Jacuí, Rio Grande do Sul. À época, o estuário do Guaíba subiu a 5,33 m, superior apenas 57 cm à maior enchente precedente. Os números próximos significam muito, pois 83 anos atrás, o epicentro esteve a cerca de 200 km. Ademais, no interregno assinalado, a capital estadual sofreu expansões demográficas, ocupações desordenadas e impermeabilização no solo, sem falar na extinção regional das coberturas vegetais ciliares, que obviamente agravaram o volume das cheias e suas consequências.

Note-se que as tempestades sulistas no início de outono são típicas. Os especialistas que investigam vazões, com suas consequências, sabem que na evaporação e condensação d’água, o montante precipitado constitui uma porção antiga do ciclo planetário, antes mesmo de surgirem aglomerados populacionais. Para tanto, dedicam-se à formulação e à utilização de informações referentes às características dos temporais. Há um estoque de cálculos, visando a estudar e prevenir os acidentes para orientar políticas e obras públicas. Nem os profissionais das fake news podem alegar ignorância. Mas existe quem troque o recurso à estatística pelo foco autossuficiente na pequena janela temporal.

Fatos semelhantes ao eclodido agora são considerados extremos não porque seriam únicos e imprevisíveis, mas porque se dão com menor probabilidade, mesmo que inseridos como possibilidade real nas tabelas de Precipitação, Duração e Frequência – PDF – de localidades. Por exemplo, constam nos dados sobre áreas mais ou menos amplas em que podem manifestar-se. Portanto, são esperados, embora suas datas exatas permaneçam incógnitas nos prazos médio e longo. Mas podem ocorrer. Aliás, com certeza transcorrerão, vez que integram o complexo de múltiplas tendências, operantes há milênios, ainda que, no Brasil, os registros sistemáticos tenham surgido no início do século XX.

A expressão referente ao risco de sinistro é PR, ou seja, o Período de Retorno, que define o tempo médio necessário para que um evento natural seja igualado ou superado pelo sucedâneo. Comumente, o conceito fixa uma chance de repetição, motivo pelo qual é muito empregado na Engenharia Hidrodinâmica e na Hidrologia Estatística, ramos qualificados para lidar com superlativas massas fluidas. No caso de intervenções articuladas com a drenagem urbana e as represas, para qualquer fim, o problema se relaciona com a intensidade nos volumes das enxurradas e suas durações, permitindo assim deduzir os efeitos nos vales receptores, incluindo as catástrofes, que provocam danos irreparáveis.

Há movimentos incessantes, objetivos e universais da matéria natural, entre os quais a degradação ambiental que pede angulação como problema ontológico-social, cujas determinações residem no metabolismo capitalista: salários baixos, desemprego, crise habitacional, especulação imobiliária, crescimento anárquico, degradação da cobertura vegetal, proscrição dos pobres para terrenos perigosos, expansão latifundiária descontrolada e políticas limitadas pelo imperativo burguês. Logo, a responsabilização deve centrar-se não em uma intervenção antrópica desclassificada e abstrata, mas nos conglomerados monopolista-financeiros, de cujos interesses os bolsonaristas se dizem campeões.

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