Por Martín Zamora1

O presente texto visa contribuir para o debate, no contexto do trabalho no capitalismo do século XXI, bem como para pensarmos as tarefas dos comunistas, levando-se sempre em consideração a realidade brasileira.

O que é a uberização do trabalho e por quais motivos obteve amplo sucesso na sua implantação no nosso país? A palavra uberização enquanto conceito tornou-se popular no Brasil com os trabalhos publicados pela socióloga Ludmila Abílio2. Nos trabalhos publicados no exterior, a expressão uberization ainda é pouco utilizada, sendo mais citada a expressão gig economy. Abílio afirma que a uberização é o resultado de tendências globais “que apontam para novas formas de controle, gerenciamento e subordinação” que se apoiam no processo de crise do fordismo e surgimento do padrão de acumulação flexível a partir da década de 1970, conforme analisado por Harvey em seu livro Condição Pós-moderna.

Enquanto fenômeno, a uberização não se resume ao modelo de organização do trabalho da Uber, embora o conceito seja um derivado dele, dada a sua relevância. Isso porque a Uber é responsável por implantar e expandir a uberização como modelo em diferentes países nos cinco continentes e, em grande escala, numa velocidade que é, ao mesmo tempo, admirável e assustadora. A Uber foi fundada na Califórnia, EUA em 2010. Até este momento (2023), está presente em 70 países, 10,5 mil cidades e afirma possuir 142 milhões de clientes e 6,5 milhões de motoristas e entregadores. No Brasil, a empresa chegou em 2014, devido a Copa do Mundo estar sediada aqui naquele ano. Atualmente opera em mais de 500 cidades e possui uma carteira de clientes de mais de 30 milhões. A organização afirma que mais de um milhão de motoristas utilizam o seu aplicativo para transportar passageiros3. Junto com a Uber, existem outras organizações que aplicam o mesmo modelo de organização do trabalho no território nacional, destacando-se a Ifood, a 99Pop, a Loggi, entre outras. Segundo o IPEA4, o Brasil conta com mais de 1,5 milhão de pessoas que trabalharam por meio de aplicativos de serviços no país em 2022. Desse total, 52,2% (ou 778 mil) exerciam o trabalho principal por meio de aplicativos de transporte de passageiros. Já 39,5% (ou 589 mil) eram trabalhadores de aplicativos de entrega de comida, produtos etc., enquanto os trabalhadores de aplicativos de prestação de serviços somavam 13,2% (197 mil). A título de comparação, em 2021, o Brasil possuía 900 mil estagiários5 no ensino médio e superior, sendo que a primeira legislação de estágios é da década de 1980.

Caracterizando a uberização

Explicada a relevância desse fenômeno, cabe aproximar-se de uma definição que, por se tratar de algo tão recente, só pode ser uma definição transitória. Primeiro é importante ressaltar que a uberização pega carona em processos de reorganização e reconfiguração do trabalho que surgem nos países capitalistas centrais, ainda na década de 1970 e se implantaram com força no Brasil a partir da década de 1990. Estamos falando do padrão de acumulação flexível que reúne práticas toyotistas na organização do trabalho, primeiro na indústria e depois no setor de serviços, e do neoliberalismo que reorganizou a política no Estado, mas também na forma de pensar a sociedade. Sem fenômenos como a flexibilidade just-in-time ou a terceirização, a uberização seria inconcebível! Contudo, a uberização não pode ser vista apenas como mais uma forma de flexibilização ou precarização do trabalho. Ela é mais que isso! O mesmo raciocínio deve ser utilizado quando analisamos a uberização pela lógica da inovação tecnológica. Tanto os smartphones como as plataformas são catalisadores da uberização que permitiram o rápido crescimento desta em nível global. Apesar disso, é um erro considerar a uberização como um fenômeno decorrente do avanço da tecnologia; o seu sucesso exige uma série de condições que são sociais. Será que a uberização seria possível numa sociedade em pleno emprego e com baixa informalidade? Teria sucesso em cidades nas quais a mobilidade urbana privilegia o transporte coletivo e público e não o transporte individual? É importante assinalar que a plataformização do trabalho é um fenômeno maior que a uberização, englobando práticas que não são condizentes com o que aqui chamamos de uberização. Assim, um prestador de serviços que atende clientes por meio de uma plataforma, mas essa não interfere na organização do seu trabalho, e que combina de forma livre o preço do seu trabalho com o contratante não pode ser entendido como um trabalhador uberizado.

Dessa forma, destacamos quatro características que explicam a uberização do trabalho. A primeira delas é que a força de trabalho só se realiza se acompanhada de parte dos meios de produção, isto é, meios de trabalho que, em outras condições, deveriam ser oferecidos pelo contratante ou ser objeto de remuneração em separado. Estamos falando do carro ou da motocicleta, do smartphone, dos custos necessários à reprodução destes, como combustível, internet, manutenção entre outros. Se a Uber precisasse adquirir ou locar cada veículo que disponibiliza aos seus passageiros, o custo da sua operação seria muito maior.

A segunda diz respeito à forma de assalariamento. É importante destacar que a categoria assalariamento não se restringe ao salário pago em valor fixo mensal. O salário diz respeito à remuneração da força de trabalho com o objetivo da sua reprodução. Assim, os trabalhadores livres – pois não se encontram sob o domínio da servidão ou da escravidão mas também estão livres da posse dos meios de produção – trocam a sua força de trabalho pelo salário em uma operação aparentemente igualitária. Marx nos revela que o salário pago ao trabalhador é produzido por ele mesmo na jornada de trabalho, junto com o mais-valor, também chamado de trabalho excedente, que é apropriado pelo capitalista. Como isso funciona na uberização? O assalariamento não se dá por jornada de trabalho, mas por produtividade, o que Marx chama de assalariamento por peça. Cada entrega ou deslocamento de passageiro é paga ao trabalhador de forma que a remuneração da sua jornada dependa da sua produtividade, ou seja, de quantas mercadorias produziu e vendeu na forma de entrega ou deslocamento durante determinado período. O trabalho dos motoristas e dos entregadores são produtivos no sentido marxista da expressão, ou seja, produzem mais-valor, que aparece para esses trabalhadores na forma de taxa, supostamente cobrada pelo uso do aplicativo6.

A terceira característica diz respeito ao controle algorítmico do trabalho. Na uberização não temos a figura do gerente de operações, responsável por controlar diretamente a organização do trabalho no chão de fábrica. Essa ausência pode levar alguns desavisados ou propagandistas de plantão a afirmar que o entregador ou o motorista de aplicativo são donos do seu próprio negócio, ou ainda, que não há qualquer forma de subordinação entre os trabalhadores e as organizações detentoras das plataformas. Basta prestar atenção no processo de trabalho dos motoristas e entregadores para perceber que ele é controlado pelo aplicativo de diferentes formas. Primeiro porque esses trabalhadores não detêm nenhum poder de escolha sobre o valor do seu trabalho ou para quem devem trabalhar. Em segundo lugar, porque as plataformas controlam o trabalho por meio de incentivos e punições. As plataformas costumam oferecer tarifas mais altas para quem trabalha em determinada região que apresenta maior demanda ou ganhos adicionais para quem atinge determinada meta. Também exigem que os trabalhadores tenham boas taxas de aceitação e de cancelamento e, caso essas metas não sejam atingidas, podem ocorrer punições como suspensão ou até desligamento total do trabalhador.

Por último, o trabalhador precisa estar disponível no lugar certo e na hora certa, representando um avanço no sonho burguês do trabalhador just-in-time ou completamente flexível. É importante observar que a produção da mercadoria deslocamento de pessoas ou itens só é produzida depois da confirmação da sua demanda, ou seja, a mercadoria é produzida ao mesmo tempo em que é consumida, reduzindo drasticamente o risco de produção não realizada. Os custos de deslocamento entre o local em que o trabalhador se encontra e o início do deslocamento correm, mais uma vez (!), por conta deste.

As características acima diferenciam a uberização de outras formas de trabalho plataformizado e de outras formas de precarização do trabalho. É importante ressaltar ainda que o mérito principal da uberização é associá-las, ou seja, reunir todas essas características em um único processo de trabalho. O salário por peça, por exemplo, existe desde a primeira Revolução Industrial e, no Brasil, há uma longa tradição de assalariamento por peça no corte de cana e nos teares de costura à facção. A venda da força de trabalho acompanhada dos meios de trabalho também tem um longo histórico. São diversos os casos de pequenas fábricas dirigidas por trabalhadores que produzem de forma subcontratada para grandes indústrias, assimilando parte importante dos custos de produção. Essas experiências apresentam limitações importantes que, graças ao controle algorítmico dos aplicativos sobre os trabalhadores, podem ser superadas.

A uberização no Brasil

Neste ano completar-se-á uma década em que as operações da Uber se iniciaram no Brasil. Embora seja possível observar outros processos que se relacionam com a uberização antes do início das atividades dessa corporação, é possível afirmar que a uberização como a conhecemos hoje iniciou-se nesse período. Na introdução deste texto, destacamos como a uberização cresceu rápido em solo brasileiro a ponto de se tornar uma das principais atividades econômicas da atualidade. Nesse sentido, é importante questionar quais são os elementos do contexto brasileiro que favoreceram o seu desenvolvimento. Essa questão é fundamental para compreender as tarefas dos comunistas, não só em relação à uberização como também frente a outras transformações no mundo do trabalho que ainda se encontram em processo de implantação.

O primeiro elemento diz respeito às relações de trabalho no Brasil e como estas se organizam no mercado. Não é novidade que o Brasil sempre contou com um mercado informal de grande porte que, mesmo encolhendo em períodos de crescimento econômico ou crescendo em períodos de crise, nunca foi marginal ou pouco significativo. Nesse mercado de trabalho informal, temos a presença de trabalhadores empregados que precisam complementar a sua renda, de trabalhadores desempregados que estão na informalidade até encontrar um novo posto de trabalho no mercado formal, mas também temos trabalhadores que estão na informalidade há anos e não têm perspectivas de retornar logo ao mercado formal. Não é o objeto deste texto, mas é preciso comentar que a relação entre formalidade e informalidade não é rígida e binária como pode parecer. Observa-se, cada vez mais, nas práticas empresariais e até na legislação, um processo que pode ser entendido como a informalização do mercado de trabalho formal. É o caso, por exemplo, das contratações por Micro Empresa Individual – MEI ou a chamada pejotização, em que se mascaram relações de trabalho como se fossem relações entre duas empresas. Essa realidade forma uma classe trabalhadora que está acostumada com trabalhos temporários ou bicos, com remunerações variáveis e ganhos por produtividade.

A informalidade estrutural também é alimentada pelo desemprego estrutural presente na economia brasileira. No caso da uberização, observamos que o período de seu maior crescimento se deu justamente no período 2016-2019, em que os motoristas por aplicativo passaram de pouco mais de 500 mil em 2016 para 1,1 milhão em 20197 e as taxas de desemprego8 mais que dobraram – passaram de 6,5% no terceiro trimestre de 2014 para 13,7%, a taxa mais alta registrada no primeiro trimestre de 2017. Assim, é possível concluir que o crescimento do desemprego contribuiu significativamente para o crescimento da uberização.

Outro elemento importante para explicar o rápido desenvolvimento da uberização no Brasil diz respeito à mobilidade urbana. Como assinalamos acima, a maior parte dos trabalhadores uberizados encontram-se no setor de transporte de passageiros e objetos. Isso exige buscar explicações no nosso sistema de mobilidade urbana para entender os fatores que permitiram tal crescimento. Em primeiro lugar, o transporte público brasileiro é caro e de baixa qualidade. As tarifas de ônibus vêm crescendo significativamente acima da inflação9 e, apesar do setor fazer parte do principal modal das cidades brasileiras, que é o transporte rodoviário, mesmo assim, ele vem diminuindo seus investimentos. Como resultado, temos frotas mais velhas, veículos lotados nos horários de pico, necessidade de longas esperas nos pontos e dificuldade de acesso, exigindo longos trajetos a pé ou a necessidade de combinar mais de um transporte para chegar ao destino. Até a pandemia do Covid-19, o Brasil não tinha qualquer política oficial de incentivo ao transporte público, diferente do que se observa com o transporte privado em que existe uma tradição de incentivos fiscais a toda a cadeia do setor automobilístico. Isso implica um favorecimento ao uso do veículo particular em detrimento do uso do transporte público. Ao observarmos os dados da evolução da frota de veículos no país, perceberemos que passamos de 6,26 pessoas por automóvel em 2007 para 3,6 em 2021, dado o acréscimo de 30 milhões de automóveis no período analisado10. Quando associamos esse dado com o crescimento do desemprego a partir de 2016, verificamos que temos um estoque de trabalhadores desempregados e em posse de um veículo, direcionando-os a ingressar na atividade de motorista de aplicativo.

Por fim, é preciso apontar os antecedentes organizacionais da uberização no Brasil. Se consideramos que a uberização pode ser caracterizada pela jornada de trabalho indefinida, pelo salário por peça, pela gestão na dispersão e pela exigência de possuir parte dos meios de produção para vender a força de trabalho, precisamos perceber que cada um desses elementos já estavam presentes em diferentes práticas organizacionais. Encontramos o salário por peça e a jornada de trabalho indefinida nos cortadores de cana na Paraíba e em São Paulo. Encontramos as quatro características nas cooperativas de confecção do Maciço do Baturité, no Ceará, no façonismo de costureiras em Americana, São Paulo, na terceirização industrial no meio rural, no interior do Rio Grande do Sul e na avicultura e suinocultura, no oeste de Santa Catarina. Observamos ainda importantes semelhanças entre a uberização e o trabalho das revendedoras por catálogo da Avon, Natura entre outras. É evidente que as experiências organizacionais aqui citadas não são suficientes para explicar a uberização. Contudo, elas são fundamentais para compreender o papel da tecnologia da informação, especificamente as plataformas como catalisadoras, ou seja, permitindo a sua aplicação em larga escala a nível internacional e elevando a efetividade do controle sobre o trabalho, mas não como elemento fundamental.

A partir disso e, apoiando-nos nos estudos de Francisco de Oliveira11, é possível argumentar que a uberização, quando observada no contexto brasileiro, pode ser entendida como uma nova articulação do arcaico e do moderno. Moderno porque reúne o que há de mais novo na tecnologia da informação e comunicação e do controle do trabalho disperso por meio de smartphones, plataformas, aplicativos, processamento de dados. Arcaico, porque, para isso, precisa se valer do desemprego estrutural, do trabalho informal e da sua precariedade, assim como da precariedade do modelo dominante de mobilidade urbana nas cidades brasileiras.

1Economista, professor de Administração na UFRGS. Militante do PRC e membro da Comissão Estadual do RS.

2ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41–51, 2019. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0718-69242019000300041&lng=es&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 16 dez. 2019.

3As informações estão disponíveis no site da Uber. https://www.uber.com/pt-br/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/

4GÓES, Geraldo; FIRMINO, Antony; MARTINS, Felipe. Painel da Gig Economy no setor de transportes do Brasil: quem, onde, quantos e quanto ganham: Nota de Conjuntura 14. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. Carta de Conjuntura. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2022/05/painel-da-gig-economy-no-setor-de-transportes-do-brasil-quem-onde-quantos-e-quanto-ganham/. Acesso em: 10 maio 2022.

5Dados da Associação Brasileira de Estágios (ABRES): https://abres.org.br/estatisticas/

6Sobre o mais-valor na uberização ver ZAMORA, Martin Andres Moreira; MEIRA, Fabio Bittencourt. Parceiros, mas não muito! Uberização do trabalho e exploração dos motoristas por aplicativo. In: SANTOS, Vinícius Oliveira (org.). A nova (e a antiga) realidade do mais-valor: diálogos sobre trabalho e capitalismo no século XXI. Foz de Iguaçu: CLAEC, 2022. p. 88–98. https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/view/65/65/723-1.

7Dados produzidos pelo IPEA em estudo anteriormente citado.

8Dados do IBGE.

9AUGUSTIN, André Coutinho. Para além dos 20 centavos: a mobilidade urbana sob o ponto de vista da crítica da economia política. Marx e o Marxismo – Revista do NIEP-Marx, v. 6, n. 11, p. 279–300, 2018. Disponível em: http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/255. Acesso em: 4 fev. 2020.

10Dados do IBGE.

11OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2003.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *