A declaração de Lula, em 18/2/2024, foi recebida com incomum cólera pelos representantes públicos do sionismo, especialmente pelo atual governo israelense, bem como reproduzida, com vários matizes, pelos ingênuos de sempre, que ouvem o galo cantar sem ter a mínima noção do que transcorre no terreiro. Certo é que as palavras e tonalidades próprias da linguagem diplomática importam e podem ser inadequadas no improviso de autoridades. Igualmente, soa frívola qualquer tentativa de igualar processos acontecidos em diferentes condições ontossociais e históricas, como alguns têm feito com certos problemas do capitalismo contemporâneo e as mazelas da escravidão mercantil passada.
Contudo, a polêmica de fundo e real, transformada intencionalmente, pelos atingidos, em crise artificial nas relações institucionais entre nações – uma, inclusive, com relevante participação na origem da outra – está longe de residir nas formalidades atinentes aos cargos e funções político-estatais ou aos principais temas teóricos postos no devir humano. Aliás, o recurso indevido a tais fenômenos semânticos e domínios intelectuais já foram esclarecidos, suficientemente, por vários interlocutores do Planalto. No momento, é oportuno lembrar dois pronunciamentos, pois abordam os assuntos centrais: a quem o presidente brasileiro dirige a crítica e o seu conteúdo nuclear. O resto é lixo tergiversante.
O primeiro veio de Rosângela – sobrenome Lula da Silva –, explicando que o marido “se referiu ao governo genocida, e não ao povo judeu”, acrescentando ainda um repto à falsificação grosseira e consciente: “Sejamos honestos nas análises.” O segundo surgiu no dia 20/2/2024, com a forte réplica do senador Aziz a Pacheco, já que o colega repetira, ridiculamente, o pedido pela retratação, feito pelos senhores da guerra: “Vossa Excelência poderia tipificar […] o que está acontecendo lá [em Gaza]?” Arrematando, em seguida: “o que seria matar 30 mil [palestinos]?” Ademais, teria compatibilidade com algum ritual de boa educação as mentiras e chulices do chanceler Kats, mediante um bilhete na rede X?
Ali está escrito que o primeiro mandatário de Brasília representaria “um cuspe na cara dos judeus”. Logo depois, adicionalmente, o perfil oficial de seu país repetiu a falácia, sustentando que significaria negar o holocausto. Trata-se da mesma linha insultuosa e de personalização, que o primeiro-ministro Netanyahu adotara quando falou em atitude “vergonhosa” e anunciou a convocação ao embaixador brasileiro para uma “dura conversa de repreensão”, como se, conforme os seus valores, passasse um pito a servos e crianças. Tomado pelo complexo de Golias, inverte a Bíblia e pensa que os desafetos são David, mas, desta feita, como pequenos guerreiros alheios, sem atiradeira e sem benção divina.
No arcabouço das cobranças está o fervor dos que veem o massacre perpetrado pelo Terceiro Reich como catástrofe metafísica exclusiva contra judeus – a shoá do antigo hebraico. Seria um evento fora do mundo e sem vinculações concretas, inominável porque sacralizado, ideal para esconder criminosos, poupando a responsabilidade social, do capital monopolista-financeiro germânico à época, e político-ideológica, da reação hiperchauvinista, bem como minimizando as outras mortes, às dezenas de milhões, de comunistas, socialdemocratas, liberais, ciganos, homossexuais, povos agredidos e demais vítimas, na maioria de opositores ao nazismo e populações formadas por “raças inferiores”.
As comparações vão além do mandatário em foco. Alusões análogas permanecem a salvo da fúria, como a daquele pai cuja filha sofrera uma discriminação na Inglaterra: “É como se tivéssemos voltado à Alemanha dos anos 1930”. Poder-se-ia dizer que o desabafo veio de pessoa comum. Mas judeus célebres, como Einstein e Hanna Arendt, fizeram abaixo-assinado em protesto pela viagem de Menachem Begin aos EUA, em 1948: “Entre os fenômenos políticos mais perturbadores […] está o aparecimento, no recém-criado Estado de Israel, do ‘Partido da Liberdade’ (Tnuat Haherut), […] muito parecido […] com os partidos nazis e fascistas.” Serão tidos, in memoriam, como personae non gratae?