O ex-presidente Bolsonaro, com a sua noção dilatada e abstrata sobre o que significa “esquerda” – termo que ajunta no mesmo saco, de maneira imprópria, comunistas, social-liberais, democratas e progressistas, inclusive alguns partidos e políticos tanto burgueses quanto proletários –, estava muito apreensivo em 26/6/2022. No início da campanha eleitoral, referindo-se à situação nos países vizinhos, disse a jornalistas: “O que está acontecendo na América do Sul, a gente tem que se preocupar com isso. […] Caso contrário, todos vocês vão para o Granma. Sabe o que é? O jornal cubano.” Dezoito meses depois, na posse de Milei, suspirou aliviado ao ser recebido como se fosse um estadista.
Considerando as declarações bombásticas do candidato reacionário, a extrema-direita brasileira, tentando pescar em águas turvas, sonha com a radicalização paroxísmica entre as nações irmãs. Tal entusiasmo foi adubado pela verborragia do então postulante Javier, que sobre os chineses asseverou: “não posso ter relações com comunistas”. Como se não bastasse, taxou Lula de um “comunista nervoso” e de um “socialista com vocação totalitária”. Todavia, o anarcocapitalista, embora mantenha o mesmo viés fundamentalista ultraliberal, procura deter-se no limiar da loucura: joga pedras, mas reluta em rasgar dinheiro. Aliás, desceu do palanque, a julgar pelo teor de uma carta oficial recente.
O conteúdo nuclear da correspondência ao governante que atacara em tão baixo nível e de modo chulo já revela certos cuidados normais da seara diplomática, mesmo quando recusa o convite para participar no Brics. O tom se repete mais enfaticamente no dia 22/12/2023, ao abordar os assuntos concernentes aos negócios entre as partes: “Sem prejuízo disso, quero destacar o empenho do meu Governo na intensificação dos laços bilaterais com o seu país, em particular no aumento dos fluxos comerciais e de investimento.” No derradeiro parágrafo, reitera os “protestos da minha mais elevada consideração”, palavras que podem ser lidas como pérola de boas maneiras ou de arrematado cinismo.
Ao fim, a lógica dominante na reprodução metabólica do capital se afirma sobre a demagogia eleitoreira e os preconceitos ideológicos. Agora, para o novo inquilino acampado na Quinta de Olivos, representante sem qualquer mediação da fração burguesa mais entreguista e reacionária da pátria sulista, chegou a hora de lucrar como sempre – na esfera da produção e circulação –, mantendo a relação comercial tida como a mais complementar, significativa e benéfica entre os dois povos. A nação portenha exporta para o Brasil bens agropecuários, petróleo com seus derivados e outras espécies de óleos. Em contrapartida, importa máquinas, vários manufaturados, alimentos e matérias-primas.
Chova ou faça um sol escaldante, o fluxo tem que prosseguir. Esbravejem ou não as direitas locais camufladas com as máscaras do falso antiestablishment, os Estados envolvidos precisam refletir os interesses que detêm a primazia nas sociedades civis locais e fundamentam ontologicamente as práticas das respectivas sociedades políticas. Obviamente, haverá rusgas e disputas pela hegemonia regional e pelos alinhamentos internacionais, talvez até o retorno das chulices no linguajar. No entanto, é seguro que o comércio continuará, pois é condição existencial para que se realize a mais valia no atual modo produtivo. A conferir na primeira reunião presencial em que os antípodas se comunicarão.