Ao transformar espaços em palcos e locais de investigação da história brasileira há pouco mais de duas décadas, a Maldita Cia. se destaca no circuito artístico a partir de Minas Gerais com a realização de espetáculos e pesquisas baseadas na relação entre o teatro “épico e dramático” com a “memória e à história da América Latina”.
O portal Vereda Popular entrevistou a atriz, produtora e dramaturga Elba Rocha da companhia mineira. Confira abaixo:
VP – Quando, por que e como surgiu a Maldita Cia. de Investigação Teatral?
Elba Rocha – A Maldita Cia. surgiu em 2002, ano em que concebeu o projeto Cena 3×4, em parceria com o Galpão Cine Horto, e ocupou a Gruta!, um antigo bar de gafieira até então abandonado, que foi transformado em sede do grupo. A Gruta! segue, desde então, como espaço cultural e hoje sedia outros grupos teatrais. Em 2003, Maldita Cia. estreou seu primeiro espetáculo: Casa das Misericórdias.
Pesquisamos o teatro de ocupação, o teatro como arte do encontro e do espaço, as narrativas que transitam entre os gêneros épico e dramático, o uso de objetos para o mascaramento dos atuantes. No âmbito temático, investigamos assuntos relacionados à tragédia contemporânea, bem como à memória e à história da América Latina. Criamos os espetáculos Maxilar Viril (2014 / FIT BH 2016, VAC 2015, OFF Cena 2016), Cara Preta (2009 / FIT BH, VAC BH, Festival Inverno de Ouro Preto) e Casa das Misericórdias (2003 / FIT BH, Festival de Inverno da UFMG, Festival Inverno Ouro Preto).
Desde 2014, com o espetáculo Maxilar Viril, o grupo pesquisa relatórios de Comissões da Verdade na América Latina. Naquela ocasião, trabalhamos com trechos do Informe da Comissión de Verdad y Reconciliación, do Peru. Na cena “Transe”, trabalhamos com o Relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais.
VP – Vocês ganharam o prêmio Cena Espetáculo, com o projeto Transe. O que essa obra representou para vocês?
Elba Rocha – Participamos do Cena Espetáculo, promovido pelo Galpão Cine Horto em 2019, com o projeto de pesquisa chamado Transe. A iniciativa ganhou sentido no encontro que tivemos com algumas pessoas e histórias, quando fomos convidados pelo Alexandre Salles a orientar a residência artística que chamamos Banho de Sol, no prédio que sediou o antigo Dops em Belo Horizonte. Naquele momento, apresentaram-se materialidades e direcionamentos, dialogando com algumas questões que já estávamos tentando tocar há algum tempo.
Transe, hoje, afirma-se como projeto de pesquisa em contínuo movimento. Tínhamos a estreia do espetáculo teatral marcada para maio de 2020, porém, como tantos outros, fomos interrompidos pela pandemia. Então, transformamos a pesquisa em alguns experimentos online, que podem ser acessados no site do grupo.
Respondendo objetivamente, Transe representou uma abertura de caminhos. Como resultado dessa pesquisa, certamente, teremos ainda muitos outros trabalhos, a serem realizados pela Maldita Cia. e também pela responsabilidade de cada artista-parceira que passou pela pesquisa.
O encontro especial com Emely Vieira, que veio a ser atriz de nossa peça, contando suas histórias, é de grande significado. Com seu modo muito peculiar de contar e recontar a sua saga como perseguida política, ela nos aponta uma luz no fim do túnel. Uma embocadura possível para narrar a dor, rir dos algozes e, mais que sobreviver, viver e tecer linhas para o presente-futuro.
VP – Que mensagem o roteiro vencedor trouxe para o público de Belo Horizonte?
Elba Rocha – Embasbacado, talvez seja como o público fica diante da crueza e perversidade exaradas pela história da ditadura brasileira, contrastante com o riso leve e sagaz de Emely.
Poderia dizer melhor sobre o que a experiência trás para a equipe. O processo de criação nos revelou quão estruturante foi a ditadura militar para que as bases de desigualdade social, racismo, machismo e misoginia pudessem prosperar até hoje no Brasil. Maria Rita Kehl, no artigo A verdade e o recalque – Os crimes do Estado se repetem como farsa, publicado na Folha de São Paulo, diz:
“Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva […]. Para isso é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva”.
De nossa parte, a experiência proposta passa por tudo isso, pela tentativa de dar à narrativa sobre as violências da ditadura militar o lugar justo e necessário, ou seja, o lugar de uma história coletiva que atinge todas as pessoas. “Mesmo que a navalha não tenha cortado a sua carne, se você está na América, essa história te pertence”.
VP – Falem sobre a participação da Cia. Maldita nos eventos realizados nas instalações do antigo Dops-MG.
Elba Rocha – Esse prédio é um portal para a história da violência e repressão no Brasil ontem e hoje, amanhã talvez não. Atravessar requer coragem? Voltar a ele é fundamental. Porque não esquecer essa história? Haverá paz nesse esquecimento? Entrar nesse templo da repressão. Um lugar conhecido de todas nós, mesmo que a gilete não tenha talhado a sua pele, você nunca tenha virado o olho, tapado os ouvidos ou emudecido ao ouvir “pau-de-arara”, “choque elétrico”, “tiro ‘pro’ alto”, “bala perdida”, “lambada de sete dias” e “pelourinho”. Ao ter medo de sirene. Se você está na América, esse lugar te pertence. Você pertence a esta história. Asco, ânsia de vômito, medo, confusão mental. “Tapa o umbigo”, aconselhou uma amiga, “pra entrar aqui tem que tapar o umbigo com um tufo de algodão”. Pesadelos acometem a gente que entra lá. Pesadelos acontecem quando a gente não entra lá. Refluxo azedo de tempo indigesto. Um redemoinho se enrosca sobre si mesmo. A face não tão oculta do terror. Repetição. Golpe sobre golpe. Acordões. Acordados demais.
Em outubro de 2018, nós, artistas de diversas linguagens nos reunimos para uma residência artística na Av. Afonso Pena, 2351, em Belo Horizonte. O edifício fora construído em 1958 para abrigar o Dops-MG, polícia política criada em 1924 e amplamente utilizada pela ditadura militar brasileira.
Nesse tempo e espaço se deram encontros fundamentais para a atual pesquisa do grupo e também para diversos artistas que participaram da residência artística que coordenamos.
Foi um grande rito de escuta naquele prédio que pulsa muito da nossa história coletiva. Espero que não tarde um momento político e cultural quando ele possa cumprir a sua função de testemunha de diversos períodos históricos. Hoje, sabemos, ainda não há essa possibilidade. É preciso reconhecer que no Brasil ainda é delicado tocar em assuntos como tortura e ditadura militar – os acontecimentos dos últimos anos o provam nitidamente. Ainda que as pesquisas indiquem que xis por cento dos brasileiros não querem ditadura, o que a cultura cotidiana nos mostra é que não há consenso na compreensão do óbvio, que seria condenar, veemente e sem dúvidas, as práticas da tortura e do fascismo.
VP – Quais são os componentes da Maldita Cia. e suas respectivas funções?
Elba Rocha – Atualmente, a Maldita é composta por um núcleo de três pessoas, Elba Rocha, Amaury Borges e Ricelli Piva, e de muitas outras pessoas que, em parceria conosco, constroem o grupo. Do projeto de pesquisa Transe participam ou participaram Rodrigo Antero, Emely Vieira, Alexandre Salles, Letícia Andrade, Admar Fernandes, Ciber_org, Marconi Marques, Black Josie, Amanda Prates, Juliano Coelho, Edson Fernandes, Marco Antônio Gonçalves.
VP – Explique o compromisso da Cia. com o teatro dos oprimidos.
Elba Rocha – O teatro dos oprimidos se dá todos os dias, noites e madrugadas, movendo o mundo. A Maldita Cia é movida pelo desejo de um teatro que faz perguntas ao próprio tempo. Atravessar, sinestesicamente, afetivamente, nossos parceiros espectadores, é a maior “revolução” que o teatro pode propor. É a experiência de sentir-se, e sentir-se em coletivo, que o teatro sob a nossa investigação pode realizar. Viver alguma coisa que os jogos de poder não permitem. Há mais do que decisões em jogo, muito mais do que poder, a potência é matéria do teatro.
VP – Que novos trabalhos vocês estão preparando?
Elba Rocha – Estamos resgatando o projeto Cena 3×4, uma rede de formação, troca e compartilhamento entre coletivos teatrais, em torno de práticas que estudam processos de criação onde sejam abolidas as hierarquias desnecessárias entre criadores, em busca de uma autoria coletiva. O projeto aconteceu no início dos anos 2000, em Belo Horizonte, fomentando a criação e a linguagem de diversos grupos da Cidade. Hoje estamos retomando essa rede. Retomar e fortalecer a cultura de criação em grupos, é o trabalho agora. Paralelamente, buscamos possibilidades de sustentabilidade para a apresentação do projeto Transe. Também estamos tecendo ideias para um novo espetáculo.