Por Ronald Rocha*—
O texto que segue foi preparado por encomenda e com base na aula proferida em 23/10/2021, disponível no YouTube como sessão da série “100 anos de comunismo no Brasil”, por seu turno promovida pela Escola Latino Americana de História e Política (Elahp). Pretende registrar, em forma panorâmica e sucinta, atendendo a exigências editoriais que fixaram o número máximo de caracteres permitidos, a experiência do Partido Revolucionário Comunista (PRC) na diáspora do movimento comunista brasileiro, focando na reestruturação da militância e nas políticas empreendidas organicamente, com suas grandezas e mazelas. Obviamente, a redação é prenhe de memórias e conclusões pessoais, decerto polêmicas, mas calcadas na práxis dirigente coletiva em relato e avaliação.
Sublinhe-se que tal esforço de rememoração e análise de modo nenhum pretende reavivar os contenciosos passados, muito menos colocar obstáculos extemporâneos à já tão difícil unidade no mundo laboral e das forças populares – particularmente, no que se refere aos revolucionários –, que tem a dimensão de um princípio. Ao contrário, tem como propósito exclusivo a verificação das linhas gerais que nortearam uma trajetória singular e os seus resultados, incorporando mais um elemento à história do movimento comunista no primeiro século de sua vida partidária no Brasil. Refere-se, pois, à herança e ao patrimônio comuns às militâncias partícipes das mais variadas vertentes, mostrando-se avesso, por sua importância e por seu caráter histórico, a mesquinhos patriotismos de grupo.
O PRC, um partido de orientação marxista, ganhou enorme notoriedade nos 1980. Reconhecido amplamente como agremiação com especial iniciativa e capacidade política, consubstanciou em cinco anos – e mais quatro, considerando-se as suas preparações organizacionais – uma vereda singular e significativa do movimento comunista. Surgiu em 1984, no fórum máximo projetado inicialmente como VI Congresso, de vez que o V acontecera em 1960, portanto, anteriormente à reorganização do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) dois anos depois. Ao fim, o Encontro se nomeou como I Congresso, de cunho fundacional. Na sequência, durou e atuou intensamente até 1989, quando foi extinta no III Congresso por deliberação majoritária de seus delegados, eleitos nas sessões estaduais.
Perpassada por discussões, nas formulações internas e disputas externas, o PRC deixou à posteridade uma riquíssima documentação, mesmo sem registro na legalidade: as Teses Oficiais, preparatórias para os congressos realizados; inúmeros artigos polêmicos, publicados nas Tribunas de Debates (TD) e as resoluções, todas referentes aos três fóruns máximos; as orientações do Comitê Central (CC), aprovadas em reuniões regulares ou extraordinárias; os ensaios da Revista Teoria e Política, mantida pela Editora Brasil-Debates, com assinaturas de militantes orgânicos e intelectuais progressistas; os ensaios e matérias do seu jornal tabloide impresso – Fazendo o Amanhã –, frequentemente autorais; e vários títulos acadêmicos, estimulados pelo glamour de sua trajetória singular.
Os antecedentes
O PRC surgiu no período inaugurado pelo golpe de 1964, que passou pelo Terrorismo Estatal institucionalizado mediante o AI-5 e se concluiu em 1988, quando a nova Constituição fez soar o dobre de finados que anunciava o fim do regime ditatorial-militar. Nos dilemas políticos e nas sombras repressivas da nova situação completou-se a crise do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Os seus primórdios vinham de 1958, traduzidos na Declaração de Março, que mesclara uma ideologia nacional-desenvolvimentista com a estratégia evolucionista, provocara pesadas críticas no V Congresso, caldeara-se com altercações quanto aos rumos da revolução brasileira, imbricara-se com as contendas sobre as divergências no movimento comunista internacional e preparara o cisma de 1962.
A fragmentação do PCB prosseguiria, já que a ineptidão na tarefa de oferecer uma resistência necessária e suficiente ao golpe, visando a barrá-lo, motivava uma luta interna crônica. No VI Congresso, 1967, desembocaram certas contradições até o momento irreconciliadas, que opunham o CC, na maioria inerte, aos militantes mais combativos, entre os quais vários quadros históricos. A direção nacional desautorizou as iniciativas por fora da parca legalidade vigente, afastando-se dos anseios imperantes nas massas mais avançadas. No polo diametralmente oposto, cresceu a onda voluntarista em política, espontaneísta em matéria de ação, imediatista no levante armado e liquidacionista em termos de organização, que logo desaguou no confronto militar, corajosa, mas isoladamente.
Precedido pelo esgarçamento nos laços internos e por ações disciplinares, o evento seria criticado, nos 1980, por Luiz Carlos Prestes. Na Comissão de Resolução, durante os trabalhos congressuais, o histórico dirigente refutara o trecho que asseverava o caráter “semicolonial” do Brasil, insistindo no seu cunho já capitalista, mas ficara em minoria como na véspera, quando apresentara o Informe de Balanço do CC. Como resultado, apareceram trechos dúplices na Resolução Política. O esforço do secretário-geral para fazer a disputa em duas frentes – contra o desenvolvimentismo burguês-reformista e o esquerdismo –, sem que o coletivo apresentasse uma posição amadurecida quanto à formação econômico-social e a etapa socialista, comprovou-se insuficiente para garantir a unidade.
O PCdoB, na VI Conferência, 1966, já centrava o ataque no regime político de caserna. Imediatamente, concluiu que a resistência teria choques armados e adotou as medidas pertinentes, atraindo inúmeros revolucionários de outras procedências. Do PCB veio a maioria do Comitê Estadual (CE) e o setor partidário ainda na Dissidência da Guanabara (DI-GB/P), ambos mediante a Conferência de Unificação Estadual, 1968, em meio às manifestações operário-estudantis então no auge. Um ano após, em Guerra Popular: o caminho da luta armada no Brasil, o CC apresentou a opção já deliberada, que seria positivada em 1972. As Forças Guerrilheiras do Araguaia (Foguera) enfrentaram três operações de cerco e aniquilamento. Em plena guerra dá-se o ingresso de Ação Popular (AP).
Entrementes, a crise conjuntural precedente ao golpe, que refluíra, recrudesceu com força no anticlímax do “milagre”, como admitido no pronunciamento presidencial de Geisel pela cadeia nacional televisiva – Saudação ao povo brasileiro, 30/12/1974. Algo se transformara: o ciclo longo de Kondratieff, inaugurado no pós-guerra pela expansão conhecida como Golden Age, adentrara em 1972, também no Brasil, a sua Fase B, marcada pela estagnação, vulgarmente apelidada como “crise do petróleo”. Sincronicamente, as correntes à esquerda efetivavam suas táticas eleitorais. O PCdoB fez a campanha pelo voto nulo em 1966 e 1970, mas participou do sufrágio em 1974, com fissuras, e 1978, em uníssono, cujos resultados potencializaram o campo democrático e os impasses políticos.
A conjuntura evoluía rapidamente, com as inconformidades e iniciativas oposicionistas sinalizando ampliações. Geisel, no Discurso aos dirigentes da Arena, em 29/8/1974, logo após a terceira e última campanha militar no conflito ao norte, anunciava uma flexão tática. Objetivava controlar o rumo da passagem política já cogitada em setores da burguesia, por meio da “sua” transição “lenta, gradativa e segura” para uma “democracia” vista como valor, conceito e substantivo universal-abstrato, isto é, sem conteúdo social e sem historicidade particular. Para manter o controle do processo e minimizar o risco de ruptura, os chefes repressivos planejaram eliminar os comunistas. Na Chacina da Lapa, 16/12/1976, executaram sumariamente Pedro Pomar, João Batista e Ângelo Arroio.
Além de atingir o Partido que dirigiu a contestação armada, o massacre premeditado abortou a discussão coletiva no CC acerca da experiência militar recente, que decidiria sobre o crucial, complexo e doloroso debate interno acerca da resistência guerrilheira. O documento Sobre o Araguaia, redigido pelo secretário nacional de organização, analisava corajosamente os êxitos alcançados pelo Partido e as dificuldades internas, inclusive as provocadas pelos reveses no combate. Pacientemente, buscava entender as causas do insucesso e as maneiras de seguir em frente com a irrenunciável unidade orgânica. Conforme o balanço, a derrota fora não “temporária” e causada por meras falhas da “Comissão Militar”, operacionais e táticas, mas “completa” e devida, basicamente, à “concepção”.
A VII Conferência Nacional
No crepúsculo dos 1970, quando as lutas proletárias e populares de massas experimentavam o novo ascendimento, com as inscrições nos muros das maiores cidades reivindicando “Anistia Geral, Ampla e Irrestrita” – por fim obtida ma non tropo em 1979 –, os exilados faziam suas malas e os dirigentes pecedobistas no exterior dedicavam-se a construir a VII Conferência. O Conclave ocorreu na pequena Tirana, banhada pelo Adriático, com delegados que majoritariamente vieram do Brasil e que permaneciam nas estruturas sobrevivas em vários estados, inclusive dois entre os quatro membros do CC ainda em atividade no País. Foram duas fases: setembro de 1978, ao fim do verão nos Balcãs, entrando em outono; março de 1979, quando se acercava o inverno albanês à primavera.
Na primeira, os trabalhos aconteceram com planura, sem debate profundo sobre a realidade nacional concreta e o período aberto, como demonstra o Informe Político então apresentado pelo secretário-geral, que sintomaticamente incluiu “a preparação da luta armada” entre as principais ”tarefas políticas”, embora relativizada pela expressão “em certos casos”. Na verdade, o texto parecia desconsiderar os elementos centrais da conjuntura e a própria situação do Partido, que fora severamente atingido e carecia das condições mínimas para então retomá-la. No entanto, a segunda sessão teria outro rumo, pois refletiu a inquietação trazida pelos delegados internos ao País, especialmente sobre as lutas entre classes que se desenvolvia e a correlação de forças na transição em curso.
Enquanto chegavam os delegados e as últimas porções de neve derretiam na Praça Skenderbeu – onde sobressai a estátua do herói quatrocentista no combate à invasão turca – reuniu-se o CC. Dos cinco presentes, um viera do Brasil e quatro residiam na Europa: Diógenes Arruda, Dynéas Aguiar, João Amazonas e Nelson Levy. Completando-se a prestação de contas quanto aos gastos na locomoção e às providências em matéria de organização, entre as quais a ordem do dia, o segundo ponto avaliou, como de praxe, os informes sobre os dirigentes nacionais que haviam passado pelas prisões. Um foi apresentado presencialmente, sendo aprovado sem ressalvas. Por fim, avaliou-se a conjuntura política nacional, ficando a decisão para o Pleno da Conferência, que seria em breve.
Pouco depois, no casarão com dois andares, grandes salas e muitos quartos, abriram-se os trabalhos. Em clima de camaradagem, o Informe Político recebeu contestações, centradas na tese de que haveria condição para outro levante logo após a derrota militar ocorrida no fim de 1973. A primeira intervenção da rodada remeteu à noção formulada por Lênin em A Bancarrota da II Internacional, de 1914-1915, citada: “Para um marxista, indubitavelmente, a revolução é impossível sem que haja uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução”. A pendência, que se procurou desqualificar pela palavra “conceitual”, resultou em mudanças no texto, mas insuficientes para deter a expectativa de que a crise política prenunciava uma revolta iminente.
No entanto, a Resolução, após a discussão, incorporou vários pontos de alta relevância. Concentrando a intervenção de massas na “conquista da mais completa liberdade política”, manteve o combate ao regime implantado pelos generais. Concomitantemente, preocupada em dialogar com as grandes massas, defendeu as seguintes consignas: revogação imediata e integral dos atos e leis arbitrários; anistia ampla, geral e irrestrita; Constituinte convocada por decisão do novo governo democrático-provisório e com eleição livre. Para tanto, a decisão pregou a união das “mais amplas forças políticas e sociais em torno das bandeiras democráticas e populares”, mas sem descurar de fortalecer a oposição operária e à esquerda, que devem desempenhar o papel de “núcleo mais ativo”.
No entanto, a pretensa “gestação” revolucionária, por mais que na formulação aparecesse mitigada, repercutiria na política partidária, pois acontecia pari passu à ilusão de que seria possível reproduzir mecanicamente a experiência bolchevique de outubro, indo aos propósitos estratégicos em breve prazo. Embora fosse correto afirmar que “a conquista da completa liberdade não era o fim em si mesmo” – pois os comunistas projetam ir além do capital e o resultado parcial era uma “fase necessária do processo político em curso”, devendo “servir ao avanço das lutas libertadoras” –, era confuso determinar uma propaganda pela “criação de um novo regime de democracia popular […] em marcha para o socialismo”. A passagem soava como agitação, visando à dobra imediata na conjuntura.
O aspecto positivo é que, finalmente, a revolução em duas etapas sumira do mapa estratégico, embora em silêncio total. Entre as demais polêmicas, sedimentou-se, implicitamente, após a controvérsia de uma década, que a formação econômico-social brasileira é capitalista e o proletariado, além de ocupar o lugar dirigente na revolução, tem foros de força motriz. Quanto ao balanço da guerrilha, a maioria – ressalvando-se a comovida e unânime homenagem ao heroísmo dos combatentes –, ficou aquém das opiniões predominantes na reunião da Lapa, que depois viriam completamente à luz com a libertação integral dos prisioneiros. Sem dúvida, o maior equívoco da Conferência foi sugerir que a linha militar, posta em prática no ápice da repressão ditatorial, deveria continuar em vigor.
O congresso atravancado e o regresso
Como a organização, para os comunistas, é uma dimensão da práxis – também no patamar teórico e técnico – e a forma por excelência mediadora da luta laboral com a política revolucionária, produziu a VII Conferência mais duas celeumas. No diapasão da primeira fase, apareceu a proposição de que o Pleno avaliasse a conduta na prisão de quatro membros do CC. Antecipavam-se as sanções disciplinares sem direito estatutário à defesa, rito sumário justificado pela existência de informações confiáveis. O método era intempestivo, pois os dirigentes atingidos seriam libertados em breve. À divergência, minoritária no encaminhamento, restou a opção de abster-se. Considerando-se que os envolvidos se relacionavam com a discussão de 1976, o epílogo foi um péssimo prenúncio.
Até por causa do clima pesado, que sugeria diferenças sem um tratamento adequando, a proposição de que o Congresso partidário deveria ser anunciado imediatamente, mas sem data marcada, resultou compreendida como a forma correta – baseada no centralismo democrático e amparada no Estatuto – para garantir a unidade política e orgânica. Mesmo porque o Partido vinha de 15 anos em total clandestinidade, imposta pela brutal repressão, além de se ter vinculado a combates armados, tudo sem a chance de avaliar coletivamente as suas trajetória e orientações, temas de polêmicas internas sempre adiadas. Com encaminhamentos contra e a favor, aprovou-se a Convocatória. Na sequência, o encerramento suscitou a esperança de consenso, que durou apenas 24 horas.
Como a Conferência era somente consultiva, por comando estatutário – mormente se realizada em forma bifásica –, o encaminhamento precisava ser ratificado pela direção nacional. O CC reuniu-se novamente, com cinco membros dos 16 restantes, vez que 11 permaneciam no Brasil, dos quais seis presos e mais um, Jover Teles, seria brevemente investigado por traição na Chacina da Lapa – da composição inicial, cerca da metade havia sido assassinada. O retorno ao Brasil e o exame da Convocatória eram os pontos na ordem do dia. O primeiro foi concluído, mas o segundo gerou impasse: três membros foram contra o endosso. Depois de horas o trabalho restou suspenso, para prosseguir em solo francês. Paris ostentava uma brisa primaveril quando retornaram os termos do litígio.
O assunto poderia ter sido encerrado em Tirana, pois o debate já ensejara várias rodadas com intervenções, cheias dos mais diferentes argumentos possíveis. Mas tudo precisou repetir-se na casa comum fora do Centro, como tantas outras nas cercanias do Metrô com suas linhas onipresentes. No primeiro dia e durante a tarde inteira, os infinitos aspectos do problema foram remastigados e ruminados. Estava claro que a maioria formada naquele Pleno parcial forçava uma unânime revogação, para o “consenso” a fórceps significar o ponto final do assunto. No dia seguinte, após as repetitivas ponderações, os defensores minoritários sustentaram que o debate ali acabara e propuseram uma votação. Feita com inapetência, ficou em três a dois. Foi-se o Congresso às calendas gregas.
Os delegados, ao pisarem o território pátrio, com notícias pela metade sobre o entrevero, prestaram seus informes de modo fragmentado. Rapidamente, alastrou-se o debate. Os CEs de SP (Estrutura 1), BA e RJ apoiaram o Congresso, tornando a discussão nacional. Também os recém-libertados apresentaram suas versões ou avaliações. Quando Arruda chegou, em outubro, viu a situação real e percebeu que da missa conhecera somente uma parte. Passou a dialogar mais amplamente, fora da bolha, em busca de soluções. Atormentado pelos problemas, foi pessoalmente receber o secretário-geral no aeroporto. Era novembro. Retornando, ainda no automóvel, passou mal. O seu coração, combalido e aflito, cedeu às superlativas fadigas e tensões. Parou quando menos podia.
Na circunstância configurada, o remanescente membro da Executiva Nacional escolheu por conta própria quem seria do CC ou reabilitado para entrar na primeira reunião realizada no Brasil após quatro anos, em março de 1980. Participaram 12 dirigentes. Sintomaticamente, ficou de fora um que integrara o Pleno desde 1971, inclusive os três encontros no exterior. Para justificar tal procedimento, alegou-se uma dúvida sobre a lista em que se anotaram os nomes cooptados nove anos atrás. No entanto, ficou notório que que somente assim os dois terços exigidos para medidas extremas, já maquinadas, seriam obtidos. Eis o resultado: quatro membros expulsos a toques de caixas, exatamente aqueles inconformados com a decisão de Paris e favoráveis à convocação do Congresso.
Ao contrário de uma retirada ou até um “racha”, simplesmente aconteceram exclusões visando a eliminar os dirigentes que tinham opiniões minoritárias e discrepantes. A seguir, aconteceu a dissolução dos CEs que, amparados estatutariamente, propunham o Congresso. Também houve um desligamento por solidariedade na estrutura de Minas Gerais, formalizado na reunião da comissão responsável pela participação partidária na Tendência Popular do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Dois anos após, ainda sob a vigilância ditatorial, o veículo A Classe Operária noticiou, falsamente, que teria existido “expulsão”, registro por si elucidativo. Como a liquidação nunca foi tida como alternativa, os quadros afastados no triângulo MG-RJ-SP marcaram um encontro na Semana Santa.
Surge o PCdoB (Esquerda)
Os dirigentes nacionais excluídos e um convidado foram chegando sem alardes à discreta Inhapim, sede municipal cruzada pela BR-116 e adjacente ao Vale do Aço mineiro. Todos apresentavam idades situadas entre os 34 e 40 anos. Em vários dias, venceram os temas elencados na reunião: VII Conferência; Guerrilha do Araguaia; recente reunião do CC; cenário do Partido; conjuntura política; Editora Brasil-Debates; Revista Teoria e Política. Considerando a crise orgânica, intensificada pelas medidas majoritárias tomadas pela direção nacional em março, resolveram sem votar, pois nem tinham organismos, convidar os CEs para uma conversa. Faltando-lhe uma formal representatividade, a Reunião Nacional de Consultas se daria em São Paulo e teria um quadro para cada estrutura.
O fórum se realizou em setembro, quando a Editora e a Revista já estavam em franco funcionamento. Percorrendo a pauta – mais ou menos espelhada na reunião de abril –, o passo em frente formalizou a Esquerda do PCdoB (PCdoB-E), que por algumas pessoas seria referida erroneamente como “A Dissidência”. Logo depois assumiu a responsabilidade, amparada na própria resolução da VII Conferência, de convocar o VI Congresso, em conexão com a sequência histórica de 1960. Em decorrência, constituiu a Comissão de Organização do Congresso (COC) e a Comissão de Teses (CT), além de nomear os seus membros. Aquela funcionou de fato como a instância dirigente, apesar de provisória. Na prática, terminou como Comissão Executiva Nacional por mais de um ano.
Um ano depois, a convocação da VIII Conferência Nacional garantiu que os rumos do PCdoB-E fossem decididos em uma instância estatutária. Como decorrência, providenciou-se a dilatação dos prazos para concluir os contatos e os textos preparatórios. Em 1981, após as manifestações no 1º de outubro – Dia Nacional de Lutas realizado pelo movimento sindical –, reuniu-se o Pleno em São Paulo. A discussão acerca da conjuntura gerou várias propostas. Quanto ao plano de organização, aprovou-se que a COC se transformaria na Comissão Nacional de Organização do Partido (Cnop). Também houve a decisão de aprovar um longo e ambicioso texto aos militantes, os Fundamentos Ideológicos das Normas Estatutárias, não à guisa de resolução, mas como contributo ao debate.
O mais relevante, porém, residiu na longa e proveitosa troca de opiniões sobre os materiais oferecidos pela CT, cada qual examinado em rodadas específicas por inscrição individual, como acontece habitualmente nos partidos marxistas. Como resultado, aprovaram-se as Teses sobre Programa, que apresentava uma consistente análise referente à formação econômico-social e a estratégia da revolução brasileira, de caráter socialista. Introduziu-se também como assunto congressual o Estatuto, que fora redigido com base na experiência do movimento comunista internacional e ainda incorporara os recentes aprendizados no País. Por fim, inaugurando-se uma tradição, definiram-se as Normas do VI Congresso e, respeitando-se o procedimento nos conclaves partidários, abriu-se a TD.
Ainda ocorreu, em abril de 1983, a IX Conferência Nacional, que atualizou a tática e apoiou a convocação da greve geral, por fim realizada em julho. Também abriu, imediatamente, o processo de assembleias nas células e as etapas estaduais, com prazos, visando à sessão nacional do Congresso no início de 1984. Ademais, liberou a resolução Lutar pela reunificação dos revolucionários comunistas, dirigida genericamente aos círculos e indivíduos marxistas. O esforço de organização era prioritário, mas naquela conjuntura o processo político nacional exigia um fino acompanhamento. A crise do regime se aprofundava quando saiu no Diário Oficial, em 19/4/1983, a emenda por fim mais conhecida como Dante de Oliveira, que passou a catalisar os anseios e impulsos democráticos.
As manifestações haviam começado em março. No meio do ano foram convocados vários atos com participação de massas, especialmente nas grandes cidades. A burguesia mostrava-se dividida. Muitos liberais-conservadores afastavam-se do situacionismo e demostravam suas simpatias com a eleição direta para presidente, lema incompatível com a manutenção do arbítrio e inaceitável para o Alto Comando. Abriu-se uma brecha extraordinária para derrotar o Governo Federal e até, como propunha o PCdoB-E, derrubá-lo por ações conjugadas na sociedade civil e na sociedade política. Naquele momento, a Cnop encampou a campanha pelas Diretas Já e, mantendo a linha de superar o regime – com as suas instituições –, cunhou a palavra de ordem oficial: Diretas com Liberdade.
A resolução foi aplicada em toda linha, seja nos eventos populares, como na “Plenária Nacional da CUT” – maio de 1984 –, seja nos entendimentos por cima. Uma tática radical, mas também suficientemente ampla. No Bairro Pinheiros, da Capital paulista, reuniram-se dois membros da Cnop com Teotônio Vilela, um capitalista, golpista em 1964 e senador pelo partido governista. O clima do entendimento reservado foi respeitoso. Com a figura já enferma, o notável político alagoano expôs a sua desavença com a situação em vigor e o seu motivo para votar na PEC no 5/1983: “redemocratizar” o Brasil. Os comunistas elogiaram a coragem do interlocutor, frisaram os consensos e apresentaram suas opiniões. Todos saíram seguros de que o ciclo militar estava no crepúsculo, porém, relutava.
O I Congresso, rumo ao PRC
Seria um caminho demorado e complexo. Apesar dos portentosos pronunciamentos aos milhões nas ruas, com energia e impulso incomum, que consubstanciavam o excepcional surto ascendente no campo democrático, nada garantia que a PEC fosse aprovada e, muito menos, que a influência liberal nas movimentações seria revertida ou neutralizada, pois se mostrava largamente predominante na sociedade política e na mídia. O próprio afluxo das amplas massas rumo à política – multidões que até aquela conjuntura se quedavam nas margens da contenda e só então viviam sua experiência – enclausurava o processo hegemônico no senso comum. Nenhuma via mais promissora existia do que mergulhar nas lutas reais de classes, com as suas características, aporias e limites.
Naquele dinamismo avassalador, que lembrava um carrossel, o PCdoB-E acolheu militantes com extrações distintas – Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP), AP ou e círculos vinculados à Revista Teoria e Política. Com boa presença entre os estudantes nos 1980, indicou dois presidentes na UNE por meio da corrente Caminhando. Mantinha deputados em legendas como MDB e Partido dos Trabalhadores (PT). Com estrutura nos principais estados, completaram-se as condições para o Congresso. Em janeiro de 1984, São Paulo, reuniu-se a sessão nacional, rompendo com a velha sigla. No dia 21 Lênin foi homenageado aos 60 anos de sua morte. Aprovaram-se as Resoluções do I Congresso do Partido Revolucionário Comunista – Programa, Estatuto e Tática – e o CC.
Tudo aconteceu em meio a vivas e memoráveis polêmicas. No patamar da estratégia, houve unanimidade quanto ao caráter socialista imanente à revolução brasileira, de vez que a formação econômico-social vigente foi definida como capitalismo dependente sob a dominância monopolista-financeira. Uma proposta estreita, porém, tentou sem alcançar êxito restringir à classe operária o alicerce do Estado reconstruído na ruptura e vigente na complexa transição ao comunismo. Se aceita, excluiria do poder político, de uma só vez, o campesinato e a pequena burguesia urbana, empobrecidos, que também compõem o bloco histórico. Tal invencionice criaria uma situação incompatível à democracia popular como regime político de liberdade ampla e das massas em protagonismo ativo.
Outra confusão misturou a categoria de relações produtivas – mormente a espécie de propriedade – com a de formação econômico-social, no referente ao capitalismo estatal. Semelhante indistinção abriu as portas para certa concessão ao antissovietismo, como disse Prestes ao secretário de organização, quando reunidos no apartamento residencial do velho comunista. Surgiram, também, posições hostis à questão nacional, como se o seu reconhecimento reeditasse o “etapismo”. Tal enfoque, que nem foi à votação, ignora que o capitalismo no Brasil é dependente. Mesmo que de modo nenhum a sociedade seja semicolonial, o reclamo por soberania é uma tarefa proletária chave, indissociável da luta socialista, que supõe o embate anti-imperialista interno e na geopolítica mundial.
A consolidação do Programa Máximo, como teoria e resolução, permitiu não só que o PRC na própria fundação tivesse um norte claro, apontando ao que Marx definiu como “associação de indivíduos livres”, como também que os seus militantes se ligassem às representações de massas e às multidões, sem receio de se diluir ou cair em condutas oportunistas e pragmáticas. Teriam, pelo menos em tese, a certeza de que as mediações táticas e as políticas flexíveis jamais seriam desfiguradoras, pois todos conheciam claramente os seus propósitos. Eis por que nunca precisariam jogar sua doutrina como tijolo sobre as entidades representativas de massas, nem temer a existência de frentes políticas entre correntes ou partidos, nem mesmo cair no sectarismo para suprir a insegurança.
Seguindo a mesma toada, confirmou-se o Estatuto, exceto quanto ao nome a ser definido para o novo partido, que acabou indo à votação. Surgira, na última hora, uma proposta sem a palavra “comunista” na designação, indício de uma propensão que só post festum seria desenhada completamente, mesmo porque o seu conteúdo se associava com a busca frenética de permissão legal para existência de frações durante os processos congressuais. Naquele momento, a sigla e o nome apareciam como debates normais, sobretudo entre militantes que vinham da crítica recente ao dogmatismo e negavam os vetos a priori. As normas orgânicas inovavam, mas cumpriam o mainstream e cimentavam o funcionamento coletivo, baseado nas metas comuns e no centralismo democrático.
A conjuntura suscitou controvérsias. Em oposição à Cnop, planteou-se a insurreição imediata, blanquismo redivivo de ultraesquerda, em que a vontade bastaria. Houve ainda um projeto puramente ambientalista. Foi também proposto que, ao contrário de criar o novo partido, a militância do PCdoB-E virasse uma corrente interna do PT. Outros, impressionados pela força da oposição liberal, punham o combate à conciliação no mesmo plano que ao regime, diluindo a direção do fogo tático. Para deter os arroubos estreitos e aventureiros, as Resoluções nem falaram de situação revolucionária. Mas, vergando a vara para fechar o espaço dos argumentos que desejavam parecer à esquerda, sugeriram, em hipérbole apressada, que o fim do regime poderia levar “de roldão o Estado burguês”.
O II Congresso abre a porta para o ecletismo
Em 1983 o PIB descera, depois subira. Mantinha-se a crise político-institucional e os partidos legais ocupavam os novos espaços que se abriam. No ano seguinte, o PRC apresentou a proposta sobre uma chapa unitária no 1º Congresso Nacional da CUT (Concut), que prevaleceu. Entraram na Direção Nacional dois militantes partidários: José Novaes, um camponês do CC, e Chico Mendes, o seringueiro do CE-AC que defenderia no 2º Concut a União dos Povos da Floresta. O Partido apoiou também a “Marcha à Brasília por Diretas Já”. Com a rejeição congressual em 1985, flui o acúmulo ao Colégio Eleitoral. Inexistia uma “intensificação acentuada […] da atividade das massas, […] empurradas […] a uma ação histórica independente”. Faltava o elemento chave da situação revolucionária.
De mais a mais, o proletariado ainda carecia de um forte partido e demais condições que lhe propiciasse a “capacidade”, como “classe revolucionária, de conduzir ações […] de massas vigorosas o suficiente para destruir […] o velho governo, que jamais cairá […] se não for ‘derrubado’.” No caso do PRC havia claros limites. Ao contrário de consolidar e ampliar o seu núcleo dirigente – para lhe garantir uma têmpera estabilizada e competente, bem como a imprescindível unidade política –, viveu a uma situação em que os seus quadros nacionais deram exemplo de fragmentação pública em vários aspectos. Assim, o CC passou a funcionar com base nos arreglos das reuniões periódicas, em busca de consensos a quaisquer preços, dispensando a disciplina e o centralismo democrático.
Há textos em que transparecem a Babel teórica. O secretário político, em 1984, escreveu que o Brasil estaria em “processo de gestação de uma situação revolucionária”, e assim retornou à imagem criptonaturalista já polemizada na VII Conferência. Incompreensivelmente, logo depois se dirigiu ao extremo diametral, criticando nada menos do que a “visão objetivista e fatalista da história”. Outra proposta, que, ao estilo dos embates internos aos partidos socialdemocratas, resolveu exibir o seu apoio em “1/3 do CC”, apresentou àquela tese um repto na TD. Após repetir algumas vulgaridades sobre a crise da economia, preferiu procurar uma premissa falsa para justificar o diagnóstico acertado, que seria dedutível do conceito clássico: “nenhuma previsão” para “uma situação revolucionária”.
Lênin se refere a “uma ação histórica independente” no que diz respeito à postura das massas perante a burguesia e o seu Estado, assim como distingue o “ser social” da volição externa e demiúrgica propugnada pelo idealismo. Deixa claro, portanto, que o protagonismo de massas sobre o qual fala é algo real, vale dizer, uma síntese de “múltiplas determinações e relações”, como formulada nos Grundrisse. Refuta, pois, as supostas criações mais ou menos racionais “da vontade” iluminista e pedagogista, seja “desses ou daqueles grupos e partidos”, seja “de tais ou quais classes”. Separa-se, a um só tempo, de Kautsky e do esquerdismo, rejeitando assim a dita consciência exclusivamente originária, “de fora”, que ambos cultivam. Mas o dirigente bolchevique “teria” que ser “corrigido”.
Para tanto, só haveria de ser “historicamente independente a ação revolucionária de massas com prévio caráter socialista”, com anterior “desenvolvimento das forças subjetivas da revolução”. A especulação consistia em que “a situação revolucionária deixara de ser um produto apenas de mudanças objetivas independentes da vontade dos grupos, partidos ou classes”. Assim, estampava-se um típico enfoque dualista: “mudanças objetivas” na realidade; “forças subjetivas da revolução” na mentalidade. Semelhante concepção forçava uma espécie de insânia “contemplativa” conforme a qual, no antepenúltimo ano anterior à saga de Outubro, teria o revolucionário soviético concebido as “transformações objetivas” com vacuidade subjetiva, isto é, sem o Gesellschaftlichen Seins de Marx.
Os Prolegômenos a Toda Metafísica Futura – lembrando Kant – exprimiram-se também no II Congresso, de Ouro Preto, Minas Gerais, em outubro de 1985. As resoluções, preparadas com Teses recortadas e coladas, inclusive a preparada pelo CC, acolheram o subjetivismo e o saco de gatos. Sobre a derrota situacionista no Colégio Eleitoral, esmoreceram o ataque ao regime – que teria “terminado”, pois conceitualmente mesclado ao governo civil – e centraram sua orientação no “combate proletário-revolucionário mais consequente à transição burguesa”. Tancredo seria idêntico a Maluf, equação inconcebível para o povo, inclusive para quem organizara, no eixo da BR-116, a campanha da oposição em 1978. A “desestabilização” da “Nova República” poupava o inimigo principal.
Tal simetria contribuiu para selar uma participação institucional exclusiva no PT, que adotara um discurso parecido. Para uns, era somente a cessão indicativa de legenda entre agremiações aliadas. Para outros, assumia foros de adesão “ao” partido legal, opondo-se a que o PRC o fosse com motivos distintos, mas complementares: o defensivismo, alegando cautela e inexistência de condições; o secretismo, como “princípio”. De vez que a resolução Construir uma Alternativa Operária e Popular definia o “partido” como “necessariamente clandestino”, a proposta para registro foi recusada. Capitulou-se, pois, ao pretexto que afastara o PRC dos palanques nas Diretas Já. O CC, como também o Fazendo o Amanhã que circulava desde julho, tinham nas mãos uma colcha de retalhos.
Os sinais da crise
O PRC crescera de 1985 a 1988. Além do boom sindical, expandira-se nos bairros populares de grandes centros e conseguira vereadores em cidades importantes, como Belo Horizonte, São Paulo e Fortaleza, nessa última elegendo Maria Luíza como primeira prefeita em capitais estaduais. Mas o III Congresso, de 1988, foi adiado por “atraso da publicação das Teses” e “dificuldade de avançar” na “elaboração teórica”. De fato, a hipertrofia institucional com dispersão político-ideológica comprometia o nível orgânico. Dois membros se afastaram do CC. Os materiais oficiais, feitos em comissões fareladas e hostis às sínteses, acabaram “jogados” na sessão nacional, capitulando-se “ao Deus dará”.
Em uma conjuntura extremamente complexa, o ataque de acefalia funcionou como ensaio geral da ruína. O Governo Sarney – que merecia dos comunistas uma postura oposicionista, mas nunca o ataque central, sistemático e sem mediações, remeteu ao Parlamento a Mensagem no 330/1985, propondo a convocação de uma Constituinte, afinal concretizada como instituto congressual pela PEC no 26/1985. A primeira reunião foi marcada para fevereiro de 1986. Com a oposição inicial de vários dirigentes, que desdenhavam o Movimento Pró-Constituinte, o 2º Concut aprovou em 1986 a “participação popular” e o mandato deferal encabeçado por Genoíno editou Nossas Exigências na Constituinte.
A Constituição, redigida na transição conservadora e sob a hegemonia do capital, resultaria em um regime democrático limitado e restritivo, como institucionalizaria o fim do regime castrense, além de outras conquistas e direitos populares, algumas referentes ao mundo laboral. O CC, alheio, publicava em junho de 1988 a resolução Aprofundar a Luta contra o Governo e pela Deslegitimação da Nova Constituição. Repetindo a de março, definia o projeto apresentado como “essencialmente” a posição “do setor mais conservador da burguesia” e dizia que “o combate à nova Constituição visa desmistificá-la e deslegitimá-la” como “pretenso estatuto regulador do comportamento de todas as classes sociais”.
Os assuntos candentes ignoravam o doutrinarismo, enquanto a presença orgânica do PRC no movimento sindical, como no 3º Concut, continuava, mas por iniciativa de alguns dirigentes motivados. Com a “globalização”, os conglomerados – alicerces da geopolítica monopolista-financeira – imprimiam seus valores à mundialização do capital. Entre os trabalhadores, os planos de “reestruturação” tangidos pelas emergentes forças produtivas traçavam o retrato interno do proletariado e lhe retirava direitos. No topo, a contrarreforma do Estado e o privaticismo simulavam o passado liberal, mas enfeitado pelo prefixo “neo”. A contraofensiva burguesa buscava responder à Fase Depressiva da Onda Longa.
Concomitantemente, o bloco socialista enfrentava dificuldades sérias – evidenciadas na crise que tornaria o Muro de Berlin o símbolo da restauração, em 1989, e que desconstituiria de vez a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1991 –, agravadas pelos multifacetados ataques imperialistas. Como se não bastasse, a performance pós-moderna declarava guerra sem quartel ao real e à razão, glorificando a “dominância” dos événements contingenciais, além de associar-se ao subjetivismo presente no “pensamento 68”, especialmente ao irracionalismo nietzcheano e heideggeriano. Os partidos comunistas foram expostos a uma pressão inédita e brutal, como poucas durante a sua história.
O “espírito” romântico de um “tempo” – zeitgeist, referido por Hegel – se dirigiu ao PRC no escalão das ideias, que os quadros mais prezavam. Um preceptor atento enxergaria, sob a empáfia crônica, o desabrigo: sem tradição histórica, salvo exceções contáveis como dedos em uma das mãos, estavam pouco vinculados ao movimento operário de massas, sobretudo às entidades representativas sindicais. Faltavam-lhes as relações pulsantes no mundo proletário e o senso prático, condições indispensáveis ao ângulo materialista. Procurando sustentar-se à margem das necessidades ontológicas na luta real de classes, a política fugia das próprias consequências, como reflexo de uma luz distante.
Além da vulnerabilidade, insinuava-se o pendor errático do ecletismo intelectual. Na maioria, os dirigentes ignoravam as obras fulcrais de Marx, Engels e Lênin, não raro chegando primeiro às orelhas ou resenhas de livros adversos. A encantação por Lukács cingiu-se à sua tentativa kantiana e hegeliana rumo ao marxismo, mas desdenhando as lições registradas no Prefácio de 1967 a História e Consciência de Classe. Desconheciam os Prolegômenos e a Grande Ontologia, só disponíveis em alemão pela edição póstuma de 1984 e no idioma italiano em 1990. Por Gramsci, a magia calcou-se nas edições parciais brasileiras e citações de intérpretes, pois apenas um quadro lera o Quaderni completo.
Cai a cortina de cetim
Decerto, alguns dirigentes nacionais do antigo PRC nunca foram marxistas, senão como adoção de autores como tênues referências intelectuais junto a outras na cultura “ocidental” e nas modas. Nos anos anteriores ao III Congresso, porém, a maioria rompeu até mesmo com semelhante concubinato. Poucos membros do CC agiam como tais: os desvarios individualistas se manifestavam sem qualquer pudor, inclusive nos instrumentos legais mantidos pelo Partido. As mesmas opiniões apareceram na TD, mas desta feita compativelmente às normas internas. Cabe rememorar os resultados contíguos das especulações, cristalizados em forma de voluntarismo e dualismo, exacerbados ao paroxismo.
A concepção idealista se revelou, como sol no zênite. Os seus debutantes – cumprindo rituais de passagem até 1989, quando aportaram no liquidacionismo total – sustentavam que o Partido seria uma ideia do naipe absoluto: “Assim, o problema histórico da possibilidade, da finalidade e da necessidade da Revolução Social surge primeiro, na História, como problema teórico, como consciência histórica […] O Partido torna-se o princípio, o meio e o fim do problema histórico da revolução”. Se o real é “resultado”, a sua causa dependeria de uma enteléquia originária e fundante. Assim o neoplatonismo explicava o noumena – virtude “superior”, “criadora” do “fenômeno” que aparece aos sentidos.
Em 1987, o fazia com genericidade. Um dizia: “É necessário erguer uma realidade produzida pelo sujeito, um mundo concebido pelo saber, uma sociedade produzida pela consciência fundada numa universalidade onde [sic] todos se reconheçam iguais, independentes e livres.” Já em 1989, visando a demolir o PRC e assim rasgar uma das inconfortáveis “duas camisas”, outro insistia: “realizar uma avaliação crítica da nossa trajetória desde 1984, encerrar […] a existência da organização então criada”; “sempre estive comprometido com o nosso projeto original. Hoje, contudo, considero que caberá ao congresso desconstituí-lo, substituindo-o por outra concepção, com […] as implicações práticas”.
Paralelamente – vez que a luta real de classes continuava, em vias de se refletir após 29 anos na disputa eleitoral direta para presidente –, o secretário de organização viajou a Rio Branco, Rio de Janeiro e Montevideo, com a tarefa de revelar um agente provocador ligado à repressão. Passando-se por membro no Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T) e no PDT carioca, o infiltrado assediava no Acre a militância do PRC, PT e Igreja Católica, dizendo-se porta-voz de “guerrilheiros” peruanos e oferecendo armas para um levante na fronteira. Com indicação do MLN-T, foram os planos de interferir na eleição de 1989 – atingindo Lula e Brizola – desmascarados e os partidos alertados.
Em contraste com sua desenvoltura externa, o CC apresentava entorpecimento nas questões internas, que giravam em torno de frases abstratas e sem relação com a realidade objetiva, menos ainda com as lutas reais de classes. A sessão nacional se aproximava, sem orientação alguma ou perspectiva de resolver o impasse. O secretário político transfugira rumo à onda liquidacionista, que absorveu a Comissão Executiva, com exceção de um membro. Com a situação interna insustentável, sem alternativas e interlocuções, o secretário de organização concluiu rapidamente um texto que defendia o legado partidário e o entregou ao Pleno do III Congresso reunido em agosto de 1989, São Paulo.
Na ocasião, a rodada sobre organização não passou de um simulacro. A proposta majoritária, com dois terços de votos, aglutinados em SP e RS, decretou: “a nossa trajetória […] resultou na desconstituição da […] base teórico-filosófica que sedimentava a nossa unidade enquanto PRC” – o “marxismo”. A dissolução do Partido no PT foi reforçada pelo segundo projeto, mais pitoresco por tentar manter um grupo de quadros secreto. A tese rejeitada obteve, aproximadamente, um terço de apoio, concentrados em MG. As demais bancadas se dividiram. Imediatamente, o secretário de organização rejeitou participar de qualquer seita conspiratória e outras discussões, pois o Pleno partidário se autoextinguira.
Caíra, então, a cortina de cetim, já puída e desbotada comparativamente àquela que se abrira em 1980, há nove anos, e às Resoluções do I Congresso do Partido Revolucionário Comunista, em 1984, que inauguravam: “Um partido que nasce profundamente comprometido com a luta da classe operária e das massas populares contra a burguesia e a sua cidadela, a ditadura militar […] Nascido no dia 21 e janeiro, data comemorativa do 60º aniversário da morte de Wladimir Ilicht Lênin, […] afirma seu vínculo histórico e ideológico com a obra revolucionária deste grande continuador dos fundadores do socialismo científico, Marx e Engels.” Em suma, o PRC foi tal vaga-lume: brilhou muito e viveu pouco.
Ergue-se novamente a bandeira rubra
Pode-se periodizar, genericamente, a experiência peerrecista em quatro capítulos. Primeiro, a reconstrução, que vai do encontro em 1980, marcando a Reunião de Consultas para setembro, até o I Congresso do Partido, fundacional, em 1984. Na sequência, o rápido crescimento político e organizacional, indo ao II Congresso, em 1985. Em terceiro, ainda na expansão, quando aparecem os sinais da crise teórico-ideológica, seguindo até 1989, após a reunião do CC, que posterga suas tarefas imediatas – referentes à conjuntura e à sobrevivência partidária – e renuncia, pois, ao seu papel dirigente, relegado a comitês locais. Por fim, a liquidação, completada na sessão nacional do Congresso derradeiro.
Girava o carrossel, configurando campos irreconciliáveis. O exorcismo do marxismo “em crise” foi o diapasão da paisagem. Os comunistas enfrentaram o debate público na perspectiva contra-hegemônica, pois dizia respeito a quase dois mil camaradas, sem falar nos simpatizantes. O primeiro foi na “Plenária Nacional” de fevereiro – SP, 1990 –, marcada para sacramentar “uma nova tendência do PT”. Ali houve uma bifurcação. A maioria se ligou ao Manifesto por uma Nova Esquerda. Outros, então em minoria, mas com muitos vínculos militantes pelo Brasil afora, organizaram provisoriamente o Movimento por uma Tendência Marxista no PT (MTM), que depois decidiria sobre o rumo definitivo.
A “Nova Esquerda”, proclamando a sua límpida concepção dualista e idealista sobre a história, manteve-se no socialismo, porém, vacilando e o redefinindo como “projeto racional e ético”, baseado em valores universais como “liberdade”, “humanidade” e “verdade”, agregando-lhes outra simulação abstrata: “democracia”. Instantaneamente, “avançou” ao passado bernsteiniano, que procurava legitimar-se no senso comum da habermasiana comunicação. A pérola rósea, ingênua e sincera, reluz em 1991: “eu me subordino à ética, e não ao interesse de classe, nem a uma visão totalitária da sociedade humana que é o comunismo.” Concluíra-se o “transformismo”, como referido por Gramsci no Quaderni.
Em sentido antagônico, surge a publicação em livro, pela Editora Interferência, SP, 1989, da proposta minoritária no III Congresso, ampliada e com anotações – Teses Tardias; capitalismo e revolução social no Brasil moderno. Dois anos depois, Democracia Divina e Democracia Profana – editado pelo Projeto Joaquim de Oliveira, MG, 1992, e apresentado por Florestan Fernandes – critica os pensamentos majoritários em suas manifestações imediatamente posteriores. Todavia, sem qualquer laivo de pragmatismo, valem as suas consequências concretas: o exótico neokantismo pós-moderno, mergulhado na confusão da ética com a moral, fracassou e prejudicou, seriamente, o movimento comunista.
O ponto mais elevado na disputa pública foi o Ato em Defesa do Marxismo, na Faculdade de Direito, USP, Largo São Francisco, SP, 1991. Quando, no auge da reação internacional, muitos se consumiam na própria crise de valores que parecia terminal, mil revolucionários de várias vertentes lotaram o Auditório Nobre. A figura central era Florestan Fernandes, à época deputado federal, intelectual marxista de grande prestígio. À mesa, o secretário de organização, antes imerso nas tarefas internas, usou da palavra em nome dos comunistas presentes, sobre os quais caía o ataque dos prófugos e da mídia burguesa: “O marxismo surgiu umbilicalmente ligado aos ideais revolucionários da modernidade”.
Continuou, desafiando a faina do luto ao movimento comunista para supostamente se “atualizar”. “Modernidade significa contraposição ao arcaico no sentido de revolucioná-lo, […] como Fausto, que ousou dar uma ordem ao sobrenatural” no tempo verbal imperativo: “escavaca este mundo antigo e engendra um mundo novo”. Prosseguiu: “É isto que nós marxistas queremos, hoje: escavacar este mundo burguês, este mundo de exploração, este mundo de opressão, este mundo de alienação, e engendrar um mundo novo, através da transição socialista”. Para concluir: “somos críticos, […] estamos abertos, queremos o diálogo e queremos mais que todos; porém, somos revolucionários incorrigíveis.”
Eis a senha para rever o fio vermelho de 1922, que passou pelo Partido da Refundação Comunista, no V Congresso do novo PRC, 2018. Trata-se, porém, de outra história, em que o princípio da unidade comunista se funde aos 100 anos dos partidos celebrantes. Fica do antigo PRC um breviário da experiência: o vínculo dos coletivos com as massas proletárias é necessidade; as lutas reais de classes tem na política sua expressão máxima; o Estatuto é mediação entre a práxis política e sua dimensão teórica; o prisma ontonegativo ao Estado recusa o politicismo; a formação teórico-ideológica é chave na construção partidária; o trabalho contra-hegemônico é intrínseco à política revolucionária.
*Nova revisão para o ensaio publicado no livro: POMAR, Walter (org.). 100 anos do comunismo no Brasil. Curitiba, Kotter Editorial, 2022.
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