Por Everaldo de Oliveira Andrade*—
PEDROSA, Mário (brasileiro; Timbaúba/Pernambuco, 1900 – Rio de Janeiro, 1981)
1 – Vida e práxis política
Mário Xavier de Andrade Pedrosa nasceu na Zona da Mata pernambucana. Foi desde a juventude um filho desgarrado. Sua família era originária de senhores de engenho do Nordeste, que se voltaram depois para a administração pública; seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, foi senador e ministro do Tribunal de Contas. Mário Pedrosa foi enviado pela família, em 1913, para estudar na Europa, e lá ficou até 1916. Entre 1920 e 1923, na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, tomou contato com as ideias socialistas e o marxismo, despertando para a vida política e intelectual a serviço da classe trabalhadora, luta de que jamais se separaria; formou-se em 1923, mas sua vida tomaria outros caminhos.
Ele fez parte da primeira geração de militantes comunistas do Brasil que aderiam à luta revolucionária no momento seguinte à Revolução Russa (1917). Em 1925, se aproxima do PCB através do jornal A Classe Operária. No ano seguinte, filiou-se ao partido, e em março de 1927 começou a trabalhar em João Pessoa (PB) como agente fiscal, mas logo desistiu da profissão. Em São Paulo, assumiu o trabalho de organização do Socorro Vermelho (que apoiava prisioneiros políticos comunistas). Na mesma época, passou a escrever regularmente para a revista teórica do partido, e trabalhou como jornalista no jornal Folha da Manhã.
No final de 1927 foi indicado pela direção do PCB para frequentar a Escola Leninista em Moscou, curso de formação de militantes da III Internacional. Em novembro de 1927, já em Berlim, aprofundam-se as crises políticas no interior do PCUS, na URSS. Ele ficaria na Europa até 1929, e aí aderiu às propostas da Oposição de Esquerda russa (dirigida então por Trótski, Kamenev e Zinoviev), que se contrapunha ao poder de Stálin. Mário voltou ao país em 1929, disposto a construir um núcleo da Oposição de Esquerda no PCB, e encontrou uma polêmica no partido – sobre alianças políticas –, que opunha Rodolpho Coutinho à maioria da direção. Iniciou então a organização do Grupo Comunista Lênin (GCL), lançado oficialmente em 1930, com a publicação do jornal Luta de Classes. Em 1933, junto a outros militantes, fundou a Editora Unitas, que passaria a publicar textos e livros revolucionários.
Com a formação, em 1931, da Oposição Internacional de Esquerda, o grupo liderado por Pedrosa muda de nome para Liga Comunista do Brasil (LCB). Atuam com o objetivo de combater, dentro da III Internacional (IC), o stalinismo, visto como uma orientação que se afastava das bandeiras democráticas e revolucionárias. Nesse período, a IC se inclinava a uma política antifascista, de colaboração de classes com setores das burguesias. Ademais, agravava-se a pressão contra adversários do stalinismo, com muitas expulsões por divergências com a direção – ocasião em que sofreram perseguições inclusive antigos bolcheviques, que tinham sido companheiros de Lênin.
No Brasil, Mário Pedrosa liderou a resistência, em particular a defesa da unidade da classe trabalhadora no combate ao fascismo – que se erguia. Em São Paulo, é formada a FUA (Frente Única Antifascista), agrupando muitas organizações socialistas e anarquistas, que passa a editar o jornal O Homem Livre (no qual Pedrosa publicou vários textos). Em 1934, a FUA decidiu impedir o desfile dos fascistas integralistas em São Paulo; ocorreu um confronto armado na Praça da Sé, e Pedrosa foi um dos atingidos por tiros.
Nos anos seguintes, há novos choques políticos. Os comunistas brasileiros alinhados com Moscou, orientados pela IC a buscarem uma aliança com a burguesia, criam a ANL (Aliança Nacional Libertadora) – em uma tentativa de frente democrática ampla. Contudo, a aventura militar comunista de 1935 serviria como pretexto para a repressão ao conjunto das organizações dos trabalhadores, facilitando o caminho para a ditadura de Vargas. Pedrosa criticava a ANL, por ter nascido de um acordo entre dirigentes do Partido Comunista e alguns militares e políticos pequeno-burgueses. Sua ação ganhou praticamente toda a seção paulista do PCB, liderada por Hermínio Sachetta, num momento de crescentes perseguições (ditadura do Estado Novo). Pedrosa exilou-se na França, em 1937, fugindo da polícia varguista, e logo se integrou às tarefas políticas do movimento pela IV Internacional, um desdobramento da Oposição Internacional de Esquerda. Em 1938, em conferência realizada em Paris, foi delegado, representando as seções latino-americanas; ao final foi eleito representante da América Latina e membro do I Comitê Executivo da IV Internacional. No ano seguinte, mudou-se para Nova Iorque com toda a direção da IV Internacional, recém-eleita, e dois anos depois se afastou da organização, por discordar da proposta de defesa incondicional da URSS.
Com o fim da guerra em 1945 e sua volta ao Brasil, Pedrosa dirige a publicação do jornal Vanguarda Socialista no Rio de Janeiro, agrupando antigos simpatizantes. O grupo em torno do jornal aproximou-se de outros grupos socialistas contrários ao stalinismo, e daria origem à chamada “Esquerda Democrática”, que teve seu manifesto de fundação aprovado em agosto de 1945; já em agosto de 1947, adota o nome de Partido Socialista Brasileiro (PSB), que duraria até 1965. Em 1956 o coletivo liderado por Pedrosa e Raquel de Queiroz se afasta e forma a Ação Democrática.
Ao mesmo tempo que exercia ativamente sua militância política, Mário Pedrosa desenvolveu a atividade profissional de crítico de arte – sempre baseando sua análise no marxismo –, por meio de que buscou libertar a arte brasileira do seu isolamento nacional, provinciano. Defendeu para arte brasileira a necessidade da renovação da experiência, do espírito ventilado e internacionalista, valorizando ao mesmo tempo a identidade local. Tratava-se de um posicionamento político e libertário em relação à produção e criação artística, que se chocava de um lado com o nacionalismo conservador, mas também com o realismo socialista e panfletário dos artistas ligados ao PCB ou em sua esfera de influência. Esteve presente nos grandes eventos de arte a partir dos anos 1950; produziu uma densa obra teórica, com inúmeros artigos; foi curador da Bienal de Arte de 1961. Entendia que era preciso ver “a arte como o exercício experimental da liberdade”. Em 1959 ajudou a realizar um congresso internacional de críticos de arte com o tema “Brasília, a cidade nova e a síntese das artes”, trazendo diversas personalidades do mundo para debater a construção de Brasília. Ao longo de todo esse período mantém intensa e constante militância jornalística sobre temas políticos e de crítica de arte nos principais jornais do país.
O golpe militar de 1964 trouxe Mário Pedrosa novamente para a linha de frente da militância política direta. Em 1966, saiu candidato a deputado pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), e divulgou seus livros Opção Brasileira e Opção Imperialista, pontos altos de sua elaboração política e teórica marxista. Passou a desenvolver uma atividade militante clandestina de registros e envios de denúncia à Anistia Internacional dos casos de tortura praticados pela ditadura brasileira. Em 1970, a polícia descobriu sua rede de contatos; ele conseguiu fugir do país e buscou refúgio no Chile, então sob a presidência do socialista Salvador Allende – quem lhe propôs a criação de um Museu de Arte Moderna, ideia que ele abraçaria com entusiasmo. A nova instituição foi batizada com nome de “Museu da Solidariedade”, projeto que termina abruptamente em 11 de setembro de 1973, com o golpe militar chileno. Depois de uma semana clandestino, Pedrosa conseguiu ir ao México e se instalou em Paris; neste novo exílio, produziu a obra A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo.
Mário Pedrosa viveu em Paris até outubro de 1977, quando, doente, pôde voltar ao Brasil, já no período de abertura da ditadura militar – que se deu por força das mobilizações populares. O movimento pela criação do Partido dos Trabalhadores encheu-o de novas esperanças; teve um papel ativo na luta política pela fundação do novo partido, saído das lutas concretas dos trabalhadores e da juventude. Sua célebre carta a Lula – ou “Carta Aberta a um Líder Operário” – apela à construção de um novo partido operário e que se reivindique marxista. Seus diversos artigos em jornais da época testemunham seu engajamento político nesse período, que se desdobrou em inúmeras reuniões e atividades. Em 1980, publicou seu livro Sobre o PT; no mesmo ano, foi homenageado e se tornou o filiado número 1 do PT, ao encabeçar a assinatura do livro de atas, no domingo de 10 de fevereiro – em que se fundou o partido. Ele estava com 79 anos e discursou brevemente afirmando a originalidade e a força de um novo partido de massas saído de baixo, das lutas operárias e de massas, para construir um novo e original caminho de luta. Em novembro de 1981, o jornal Pasquim publicou sua última entrevista, na qual ele afirmava: “Ser revolucionário é a profissão natural de um intelectual… a revolução é a atividade mais profunda de todas… Sempre sonhei uma revolução para o Brasil”. Em 5 de novembro de 1981, faleceu no Rio de Janeiro; e sua esperança se tornaria uma necessidade cada vez mais urgente para o povo brasileiro.
2 – Contribuições ao marxismo
Há três grandes momentos na trajetória de Mário Pedrosa que destacam fases fundamentais da sua elaboração política marxista: a década de 1930 e o combate ao integralismo (fascismo brasileiro da época); o período inicial da ditadura de 1964 e sua análise sobre a conjuntura internacional e seus desdobramentos no país; e sua fase final, quando se destacam os textos dirigidos para a construção do PT. É preciso acrescentar ainda que ele dedicou boa parte de sua vida profissional à crítica de arte e ao jornalismo, atividades que desdobraram sua intensa elaboração marxista para o campo da cultura em geral, com repercussões nos campos da arquitetura, da museologia, da sociologia e da psicanálise.
Pedrosa realizou uma produção marxista rica e original, a partir das experiências de lutas da sua militância no Brasil e seu engajamento internacionalista. Ajudou a desenvolver uma elaboração sobre a realidade brasileira, com base no marxismo, incorporando de maneira orgânica teses centrais de Trótski, Rosa Luxemburgo e vários outros teóricos comunistas. Sua primeira contribuição teórica deu-se em torno das avaliações sobre a insurreição de 1930; a direção do PCB avaliou que o acontecimento era produto de contradições imperialistas entre a Inglaterra e os Estados Unidos; Pedrosa discordou afirmando que ocorria uma reorganização das classes dominantes do Brasil, com uma disputa de frações da burguesia por privilégios econômicos internos. Estas posições foram desenvolvidas em colaboração com Lívio Xavier, em texto intitulado “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, que destacava a incapacidade de as burguesias realizarem a revolução democrática nos países atrasados. Assim, a unidade nacional brasileira tendia a se esfacelar sob o peso da contradição entre o desenvolvimento desigual do capitalismo nos estados regionais, fruto dessas contradições. A forma da Federação Nacional brasileira, nas condições criadas pela pressão imperialista, teve como resultado a guerra civil conhecida como Revolução de 1930. A análise entrelaça o quadro nacional e internacional combinados do capitalismo com as insuficiências políticas da burguesia nativa em construir um projeto próprio de nação.
O golpe do Estado Novo, de 1937, liquidou com as pretensões mais imediatas dos fascistas brasileiros naquela década. Mas chama atenção o destaque que Pedrosa demarca em vários textos desse período a respeito dos atalhos golpistas e das relações promíscuas entre os bandos fascistas e os setores autoritários militares. Se em 1937 esse caminho foi barrado, em 1964 o problema se colocou novamente, na medida em que o fascismo não seria um fenômeno isolado, mas parte integrante e excepcional do funcionamento do regime capitalista em geral, que teria continuidade das décadas seguintes.
Em seus textos de 1937, Pedrosa já analisava as relações do fascismo com o capitalismo, como elementos de um mesmo componente social – posteriormente silenciadas e combatidas pelos liberais como se fossem de universos distantes. Com o golpe militar de 1964, Mário Pedrosa decide empreender um balanço e análise de fôlego sobre as perspectivas do imperialismo, seus desdobramentos na economia e luta política brasileira e as perspectivas da revolução socialista no país. Em 1966 publica Opção Imperialista e Opção Brasileira, livros cujo alvo imediato foi combater o golpe – que demonstrava o entrelaçamento entre a história da formação do capitalismo no país e uma combinação mais recente das forças golpistas (entre as camadas médias, com traços fascistizantes, as oligarquias rurais, e as influências externas dos EUA). A direita conservadora brasileira possuía traços e ações de caráter fascista entranhados em sua gênese social, os quais remetiam à década de 1930 – quando o fenômeno tomou corpo no movimento integralista, que não desaparecera. O antigo fascismo da década de 1930, e que ele chamara de “fascismo colonial”, continuava sendo parte fundamental do arsenal da burguesia brasileira, principalmente quando se tratava de inviabilizar a frágil democracia. O que caracterizava a ditadura militar de 1964 era que ela não representava no poder nenhuma das classes sociais dirigentes em particular, mas um tipo peculiar de “bonapartismo militar”, algo que lhe era peculiar. Isto seria produto de condições igualmente peculiares, como uma combinação das tendências e necessidades mundiais do capitalismo internacional com a realidade nacional das classes dominantes locais, acuadas frente a uma situação revolucionária produzida pela mobilização popular. Como “bonapartismo militar”, a ação da ditadura ocuparia ainda o lugar e papel do fascismo como movimento organizado de massas. Se na década de 1930 já se configurava uma tendência a maior centralização do estado brasileiro, condição imposta ao mesmo tempo pelo capitalismo no Brasil e pelas fragilidades da burguesia nacional, tanto no plano interno como internacional, a ditadura iniciada em 1964 era vista como a renúncia e derrota definitiva dos últimos traços de soberania e autonomia de frações organizadas da burguesia nacional. E isso se expressava no fato de que a burguesia perdera o controle, como classe social, do regime bonapartista – agora em mãos da corporação militar.
O conceito de “bonapartismo” foi uma ferramenta central manejada nas análises que Pedrosa realiza nos dois períodos críticos da conjuntura em que atuou: a década de 1930, e a de 1960 (as das duas ditaduras brasileiras). Para ele o bonapartismo é o conceito marxista que melhor permite a compreensão da permanente oscilação do regime político de um estado dependente. Dessa maneira, o chamado “ciclo nacional populista desenvolvimentista” do pós-II Guerra não é visto como uma fase específica e de ruptura na história política e econômica brasileira, mas antes como uma oscilação à esquerda, sob pressão das massas, de um mesmo regime político bonapartista de características comuns. Com seu método de análise, Pedrosa segue, de maneira dialética, os deslocamentos do regime político nacional e seu específico lastro econômico; as oscilações do regime bonapartista são compreendidas sob o impacto das pressões do mercado mundial e do seu núcleo estadunidense.
Pedrosa se utiliza também de outro conceito fundamental, o de “desenvolvimento desigual e combinado”, como ferramenta articuladora para a análise das oscilações internas do regime bonapartista na conjuntura política nacional, que articula as conexões do capitalismo nacional e internacional. Seus primeiros textos mais densos, escritos na década de 1930, já possuem esse fio condutor interpretativo. E podemos observar que os seus principais artigos e livros, já no período da ditadura de 1964 (como A Opção Brasileira e A Opção Imperialista), combinam dialeticamente essas ferramentas, categorias e conceitos. A expressão desse fenômeno é, para ele, a própria história política e econômica, a luta de classes e os seus resultados na dimensão da luta cotidiana do país. Compreender o que se passava no Brasil desde o golpe de 1964, e como se chegara a esta situação, implicava entender os deslocamentos do regime bonapartista desde os anos 1930, suas oscilações autoritárias e democrático-populares, mas também o capitalismo nacional com suas dinâmicas internas e relações com o mercado mundial pautadas por uma dinâmica desigual e combinada.
Mário Pedrosa tornou-se também uma referência na utilização da interpretação marxista da arte no Brasil – e desde uma perspectiva livre e revolucionária que se contrapunha ao então estrito realismo socialista. Em 1933, inaugura seu futuro caminho de crítico de arte, com uma série de conferências analisando a obra da artista alemã Käthe Kollwitz, que expunha trabalhos em São Paulo com temáticas sociais. Se, para Mário, arte e política caminhavam juntas, os caminhos para superar o capitalismo e libertar a criação artística convergiam. A brutalidade do capitalismo e dos meios de comunicação deveriam ser superados, porque o materialismo grosseiro da sociedade burguesa ajudava a fazer da cultura e das artes um privilégio dos ricos. O capitalismo reproduzia a miséria cultural ao mercantilizar todas as esferas da sociedade. A sociedade capitalista transformava o homem moderno trabalhador em alguém incapaz de enxergar a riqueza artística do mundo, impedindo-o de ter uma imaginação livre e inovadora. Seria preciso fornecer, através de uma nova educação artística, a possibilidade para desenvolver a sensibilidade e a criatividade das crianças, o sentido das emoções que dão ao homem o impulso espontâneo natural para criar o novo. Sua proximidade com os artistas franceses do movimento surrealista encabeçado pelo escritor francês André Breton e sua militância trotskista abriram novos caminhos. Em 1938, Breton juntamente com Trótski e o pintor Diego Rivera escreveram o “Manifesto por uma arte Revolucionária e Independente”, defendendo a total liberdade para a arte e sua essência profundamente revolucionária. Esse documento foi uma referência para Pedrosa, como crítico da cultura, concebendo a dimensão política da criação artística como mais ampla, coletiva e profunda – como possibilidade de libertação da humanidade do jugo do capitalismo, como “exercício experimental da liberdade”.
3 – Comentário sobre a obra
Mário Pedrosa não tinha ilusões nas veleidades democráticas da burguesia brasileira e muito menos nas intenções supostamente progressistas dos Estados Unidos em relação à América Latina; destaca que toda a estruturação do complexo econômico-militar mundial estadunidense, sua amplitude imperial de controle e articulação da totalidade dos aspectos da economia, política e cultura teriam sido gestados como “reformas contrarrevolucionárias”, na década de 1930.
Aqui estaria o ponto de intersecção do que ele conceitua como os “totalitarismos” nazista e estadunidense, com repercussões na conjuntura brasileira. Haveria uma linha de continuidade, como ele destaca em Opção Imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), que se prolongava submersa por uma suposta guerra fria: “A luta do Ocidente democrático contra o Oriente comunista é uma luta de dragões de fábula para enganar os povos”. A retórica democrática e anticomunista encobriria tão somente a permanência do autoritarismo mais profundo e sofisticado – o dos EUA. Não se trata aqui portanto de uma virada tática, mas do aprofundamento de uma orientação estratégica anterior de funcionamento do sistema capitalista, cada vez mais centralizado e concentrado nas mãos do estado. O objetivo central do livro é avaliar as novas tendências do imperialismo estadunidense, como continuidade das chamadas reformas contrarrevolucionárias inauguradas pelo nazismo, nos anos 1930. O capitalismo expresso pelas grandes corporações representaria um estágio ainda mais avançado de simbiose entre a ação dos governos dos EUA e os interesses por novos mercados vindos das gigantescas corporações. Compara e discute com entusiasmo os avanços da economia planificada da União Soviética; do ponto de vista do reforço do papel econômico da classe operária, os vê como fundamental para qualquer política emancipadora. O futuro socialista, como horizonte necessário, exigia não só uma ruptura com as ilusões defendidas pelos planejadores desenvolvimentistas e nacionalistas, até então hegemônicos (antes da ditadura), mas também com os novos dispositivos neoliberais implantados, desde fora, pela ditadura.
A perspectiva de uma transição ao socialismo deveria estar no horizonte e ser pensada como saída concreta e viável à economia brasileira atrasada. Esse caminho é analisado no livro Opção Brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966). A ditadura implicara o fim das ilusões nacional-desenvolvimentistas, ou de uma via independente e autônoma para o capitalismo no Brasil – defendida pelo PCB. Mário teve a ousadia de refletir sobre um caminho socialista de superação: como romper com o atraso econômico e não se iludir com as falsificações e ilusões na burguesia brasileira? O excesso de população agrícola seria o primeiro nó de estrangulamento, e uma reforma agrária permitiria a integração de uma parte substancial dessa população com a propriedade da terra. Investimentos intensivos e maciços teriam de ser feitos no setor dos bens de produção para responder a tempo e quantitativamente às novas demandas. A população liberada das servidões do campo se integraria ao exército de trabalhadores industriais e do serviço público. Assim, ele entende a planificação socialista como alternativa concreta para o Brasil da década de 1960 em diante.
Sua elaboração teórica no campo das artes e da cultura é muito complexa para ser resumida em poucas linhas, mas cabe afirmar que está entrelaçada com sua visão marxista e revolucionária. O seu livro Mundo, homem, arte em crise (São Paulo: Perspectiva, 1986), junto aos quatro livros póstumos organizados por Otília Arantes – Política das artes: textos escolhidos (São Paulo: Edusp, 1995), Acadêmicos e modernos: textos escolhidos (São Paulo: Edusp, 1998), Forma e percepção estética: textos escolhidos (São Paulo: Edusp, 2000), Modernidade cá e lá: textos escolhidos (São Paulo: Edusp, 2000) – reúnem a mais rica coletânea de textos de Pedrosa sobre a crítica de arte, embora estejam longe de esgotar sua produção sobre arte e cultura, ainda dispersa em inúmeras revistas e jornais. Para ele, o artista capaz de se aproximar da natureza, da sociedade, auxiliava na formação de uma consciência de classe para os trabalhadores. A arte provinha da natureza e da capacidade cada vez maior do homem controlá-la; a própria criação de materiais e técnicas se refletia na evolução dos estilos artísticos. O capitalismo, porém, levava o homem a se distanciar da natureza. Os artistas que cultuavam o moderno como novo deus estavam na verdade distanciando o homem do resgate da natureza, ajudando a aprisioná-lo no mercado capitalista – ou então apoiando um processo de burocratização, como o que ele enxergava na URSS. Arte e política caminhavam juntas, e os caminhos para superar o capitalismo e libertar a criação artística convergiam. A brutalidade do capitalismo e dos meios de comunicação deveriam ser superados, porque o materialismo grosseiro da sociedade burguesa fazia das artes um privilégio dos ricos, reproduzindo a miséria cultural ao mercantilizar todas as esferas sociais; sob tal regime, o trabalhador era impedido de desenvolver sua percepção artística, tendo tolhida sua criatividade. Defende assim uma nova educação que promova a sensibilidade desde cedo, o impulso humano natural para criar o novo.
Entre seus últimos livros que debatem a conjuntura política está A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, em que resgata o legado da revolucionária polonesa e sua atualidade em relação às mobilizações operárias que então ocorriam, retomando muitas das reflexões de 1966 e avaliando que o capitalismo vivia uma de suas mais profundas crises mundiais.
Em seu último livro (publicado em vida) – Sobre o PT (São Paulo: Ched Editorial, 1980) –, retomou e reforçou sua militância política marxista. Defendeu a necessidade de uma Assembleia Constituinte livre e soberana, que seria uma saída democrática e revolucionária para reconstruir a nação desde abaixo e romper de fato com as estruturas autoritárias da ditadura militar. Insistiu na urgência de um partido dos trabalhadores e de uma central sindical. Entretanto, mesmo depositando grandes esperanças na construção do PT, não se iludiu nem deixou de assinalar os desafios e perigos disto; era preciso empreender um combate político contra as inúmeras tentativas que se lançavam à época para conter e amarrar o jovem e independente movimento operário brasileiro.
Assim, Pedrosa escrevia em um dos seus últimos textos em janeiro de 1980 no Jornal da República: “O partido dos trabalhadores deve atuar e destacar-se autonomamente como classe… é preciso destacar a diferença histórica que existe entre as classes dominantes e o operariado… a missão do proletariado contemporâneo como classe consciente de seus próprios interesses”. Sua mensagem foi sempre explícita: para se abrir caminho ao socialismo, era preciso aprofundar a luta de classes contra a burguesia, garantir sua independência.
Dentre as muitas obras de Mário, citamos ainda: Os socialistas e a terceira guerra mundial (Rio de Janeiro: Vanguarda Socialista, 1948); Arte, necessidade vital (Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1949); Panorama da pintura moderna (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952); Dimensões da arte (Brasília: MEC–Serviço de Documentação, 1964); Arte, forma e personalidades: 3 estudos (São Paulo: Kairós, 1979); Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília [org. Aracy Amaral] (São Paulo: Perspectiva, 1981).
A maior parte dos textos políticos de Mário Pedrosa foram publicados em jornais – e ainda não estão reunidos em livros.
4 – Bibliografia de referência
ABRAMO, Fúlvio e KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na contracorrente da História. São Paulo: Sundermann, 2015.
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Mário Pedrosa, o golpe de 1964 e a crítica ao desenvolvimentismo. São Paulo, Perseu, fev. 2016. Disp: https://revistaperseu.fpabramo.org.br.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Mário Pedrosa, itinerário crítico. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
D’ANGELO, Martha. Educação estética e crítica de arte na obra de Mário Pedrosa. Rio de Janeiro: Nau, 2011.
FIGUEIREDO, Carlos Eduardo de Senna. Mário Pedrosa, retratos do exílio. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
MARQUES NETO, José Castilho (org.). Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2001.
OITICICA FILHO, César. Mário Pedrosa (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
Notas
*Everaldo de Oliveira Andrade é professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo; doutor e mestre em História Econômica (USP); diretor do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica Sérgio Buarque de Holanda (FFLCH-USP). Autor de, entre outras obras: Revoluções na América Latina Contemporânea: México, Bolívia e Cuba (Saraiva, 2000).
*Com edição de texto de Yuri Martins-Fontes e Joana Coutinho, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário Marxismo na América, obra coletiva coordenada por essa organização; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.
Artigo publicado originalmente no site do Núcleo Práxis.
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