De algumas décadas para cá, na conjuntura em que a “gelatinosidade” crônica da política tradicional começou a ceder lugar para os movimentos e partidos mais orgânicos – principalmente, após a derrota infligida pelas forças democráticas e populares ao regime ditatorial-militar –, os governos se viram instados a preparar os seus planos e a prestar contas públicas sobre as suas iniciativas. Nesse novo quadro, a referência datada nos 100 primeiros dias se transformou em uma espécie de marco simbólico, em que o mandatário precisa mostrar sua “cara” inicial ou pelo menos antecipar suas intenções principais.
Luiz Inácio Lula da Silva, domingo, dia nove de abril, em artigo publicado no jornal Correio Brasiliense, comportou-se conforme o protocolo recém-afirmado. No balanço, asseverou que deu prioridade ao “inadiável”. Deveria ter acrescentado, ainda, o que foi possível. De qualquer forma, ressalte-se a sua consciência de que labutou, cotidianamente, para manter os entendimentos construídos a duras penas durante a campanha eleitoral. Operou sem clareza teórica, mas com desenvoltura, mesmo com as incompreensões manifestadas no espectro à esquerda e cristalizados na forma de um rechaço à frente ampla.
Sublinhe-se: trabalhou duro em uma conjuntura difícil. Se a ideia de “reconstrução” do Brasil incorpora um exagero retórico – tornado comum nos segmentos progressistas, contaminados pela fantasia de que a burguesia poderia desejar uma literal redução do capitalismo a escombros em tempos de relativa “paz” – foi realmente muito importante o esforço pela unidade. A postura de que “não existem dois Brasis” – o que “votou em mim” e o que “votou em outro candidato” – e de que “somos uma Nação”, é relevante para disputar, politicamente, as frações “de baixo” hoje ainda sob a influência da extrema-direita.
Deve ser destacado, ainda, que tais palavras expressam, inadvertidamente, a desautorização aos grupos mais sectários do identitarismo, que subjetivam o território pátrio como colcha de retalhos entrecortada por inexistentes nações particularistas – imaginadas politicamente pelos exclusivos critérios “étnico-raciais” – e que o veem como depósito para outros infindáveis guetos estanques. Tal concepção estimula o conflito contínuo em torno de seus temas fragmentados e os sobrepõe à coesão em torno dos interesses brasileiros, inclusive o combate consequente às várias formas de preconceito e discriminação.
Por cima das enésimas diversidades, pontifica o resgate a programas desfigurados por completo nos anos anteriores, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos. Também se instauraram novos ministérios, dedicados a iniciativas em favor das mulheres, do embate contra o racismo e do apoio às populações originárias. Para o proletariado, especial importância teve o ato que recriou – depois de uma extinção mais que sintomática – o Ministério do Trabalho e Emprego, reeditando-se as providências de fiscalização legal, políticas para o mundo laboral e diálogo com as entidades sindicais gerais.
Também faz sentido valorizar o reencontro com prefeitos e governadores, bem como a discussão aberta sobre o ensino médio, além de retomar uma diplomacia com altivez, com as viagens internacionais, a presença no topo do Brics e o retorno à Unasul. O presidente, sintetizando a própria conduta, procurou ligar o presente ao futuro. Tudo bem, “o Brasil voltou” e não é pouco. Todavia, é hora de sinalizar o rumo da caminhada, visando a barrar o controle do Banco Central pelo metabolismo do capital, resgatar os direitos suprimidos nas contrarreformas trabalhistas e recuperar o patrimônio público privatizado.