Por José Reginaldo Inácio—

 

Os fatos amadurecem na sombra, poucas mãos, não submetidas a qualquer controle, tecem a trama da vida coletiva, e a massa ignora pois não se preocupa. Os destinos de uma época são manipulados segundo visões restritas, interesses imediatos, ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens ignora pois não se preocupa. Contudo, os fatos amadurecidos dão seus resultados; a trama tecida na sombra alcança seu limite: então a fatalidade oprime tudo e todos, a história se assemelha a um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto que a todos vitima, os desejantes e não desejantes, os que sabiam e os que ignoravam, os ativos e os indiferentes. (Gramsci, 2020, p. 32) 

  

Dúvidas, hipóteses ou certezas? 

Já não se trata mais de sair apenas à procura de uma vaga de emprego.  

De entrar na fila desesperadora do mal-estar da exclusão social e da meritocracia escravocrata, colonizadora, mantida há anos pelo capital, é muito pior do que isso.  

Num sistema cuja lógica extrativista expõe as vísceras da degradação ambiental, desde a natureza inorgânica e orgânica, todas as espécies vivas, inclusive a humana, ao nível de sua extrema pestilência, resta-nos a indiferença?   

Creio que entre nós, antes de irmos adiante, é preciso recordar Antonio Gramsci, porque a indiferença não pode ser nossa réstia. A indiferença é a amostra do que aí está. Ela “opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com que se pode contar; é o que interrompe os programas, subverte os melhores planos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a sufoca” (Gramsci, 2020, p. 31), e, atualmente, nesse momento, a indiferença é parte de uma trama que legitima algumas das piores deliberações com as quais o povo brasileiro pode contar.   

Para a espécie humana, quase em sua totalidade dependente do trabalho para viver, restou-lhe a sujeição às piores fileiras da degradação, do sacrifício para uma incerta e insegura subsistência e, se possível, sobrevivência. 

Conviver com a imposição de uma seletividade sistêmica, na qual ficar na fila do desemprego se tornou um mal menos pior, pois as outras, as filas mórbidas, letais, intermináveis, só crescem.  

A disputa, agora, é desumanizadora. Não reflete a presença viva do corpo e do espírito como ente que suspira e sopra o elã vital à humanidade.  

As vagas sobrantes não são complementares e constitutivas para incluir mais vida, tampouco à condição humana é instilada à classe trabalhadora.  

Dúvidas? Contradições? Elas existem?  

Quem são os entes na defesa do emprego, da renda, da igualdade, da justiça social: os representantes das elites econômicas/empresariais?  

A quem se atribui a confiança e o conhecimento sobre a prevenção sanitária, a infectologia, a epidemiologia etc.: ao pesquisador/cientista em saúde, aos profissionais da enfermagem e da medicina (auxiliares, técnicos, enfermeiros, médicos etc.), ou à fina flor dos altos escalões da política e da magistratura que “harmonizam” suas ações aos interesses das grandes corporações econômicas e empresariais?  

Na emergência patológica, endêmica ou acidental, onde se deve procurar um indicativo para a cura: num hospital (unidade de pronto atendimento, clínica, consultório etc.), num laboratório ou nas cortes palacianas dos Três Poderes: Palácio do Planalto, Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal?  

São só essas dúvidas, contradições? Ou certezas?  

 

Sinais recentes de certezas e contradições  

Desde que a irracionalidade sistêmica imperante, na qual a lógica é de um “Estado falhado” (Santos, 2020), é admitida pela ordem institucional estabelecida (em seus Três Poderes) e a evolução técnica preventiva à saúde e à vida, seja da engenharia, seja da medicina do trabalho, foi descaracterizada, permitindo-se se impor à população – especialmente à trabalhadora –, como um determinante propositalmente calculado, a tétrica disputa até por oxigênio, conseguir o ar para respirar se tornou imperativo. O suplício é tão mortal que a dor pela fome, nessa condição, se tornou um mal menor.    

Uma disputa que tem na morbidade e na letalidade a corrida, muitas delas fatais e sem fim, por um Equipamento de Proteção Individual (EPI) ou Equipamento de Proteção Coletiva (EPC), por vaga em uma unidade móvel de emergência, numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI), num respirador… Até chegar à lúgubre disputa nas filas e vagas do necrotério, do rabecão, da funerária, de um cemitério, de uma cova… Ou de uma vala comum, por mais incrível que pareça, isso não é só a representação de um momento áureo das mais estranhas contradições sistêmicas capitalistas, mas, sim, da intensificação de outras dimensões de suas possibilidades.     

No caso do Brasil, as hipóteses de diagnósticos possíveis dessa realidade ou cenário, algumas delas, ou melhor, muitas, foram identificadas e delas desencadeadas deliberações e medidas milimetricamente ajustadas e equacionadas a obstar ao máximo qualquer contraditório – do qual o sindicalismo é estrutura e estruturante – que represente o enfrentamento real à atualização perene da barbárie do capital.  

O que queremos dizer com isso é que as leis, por aqui, como já demonstrado – via de regra, principalmente a partir de 2016, mas não só desde aí, forjicadas pelo executivo e buriladas pelo legislativo, tais como a Emenda Constitucional n. 95, aprovada em 2016 (Souza e Oliveira, 2019); as legislações que modificam profundamente os direitos do trabalho no Brasil – especificamente as leis n. 13.429/2017, n. 13.467/2017 (Lacaz, 2019), n. 13.844/2019, n. 13.846/2019, n. 13874/2019 e EC 103/2019, entre outras –, em detrimento dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, estão sendo aprovadas sob essa perspectiva, e o judiciário, em suas cortes superiores, tem se demonstrado um guardião supremo de todos os ritos que a sacrificam aos deuses do mercado. 

 

Primeiras contradições da essencialidade: entre a realidade, o sagrado e o profano 

Nos piores momentos da história da classe trabalhadora, a contar da Revolução Industrial, coube ao sindicalismo reverter essa condição e neles o papel do sindicalista foi da maior relevância. Contudo, hoje, é importante que se diga, o papel dos sindicatos ganha outra dimensão. A legislação tem sido adulterada em sua concepção protetiva e a cada dia se torna mais um óbice do que um instrumento à ação sindical no sentido da reversão desse cenário, pois essa atividade tem sido colocada e tratada como um ato ilegal, no qual a prevalência do individual sobre o coletivo e a ruptura com a autonomia das assembleias o exemplifica. 

O sindicalismo, desde sua origem, à margem da ordem estabelecida, sempre foi decisivo e signatário dos principais atos históricos nos quais o socorro humanitário precisou de orientação e ação qualificada para superar o sofrimento coletivo. Apesar disso, por aqui, os Três Poderes ignoram a história e a essencialidade da ação sindical2. Não que isso tenha relevância como determinante para essa ação (sindical) nesse contexto estatal dominante, até porque é a gênese de seu constitutivo a subversão à ordem estabelecida, e não sua obediência.  

Não se pode esquecer que a ordem estabelecida atual chegou ao extremo de decretar (Brasil, 2020) como essenciais e vitais, durante o estado calamidade (pandemia de Covid-19), as atividades religiosas, para que alguns setores religiosos pudessem entreter e justificar a morte e a espera de um devir sagrado, glorioso, aos que aqui se purificarem na extrema exaustão laboral (mórbida ou letal) e sacrificarem seus corpos e espíritos3 aos deuses do mercado

Como disse Agamben (2012): 

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o título de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas. 

Como a descrição do que é tido como essencial, para esse governo, perde qualquer senso de uma conotação racional, objetiva, ela sofre distorções, profanações e decompõe-se na ilógica mística da fé e determina que quando ecoarem os estertores da morte uma crença malsã pode ser ativada. Nela quem trabalha torna-se uma matéria inumana, corpo e espírito, inerte e disforme, num altar sistêmico, onde não há a existência do outro (humano), porque nele “as condições de possibilidade para poder ouvir a voz do outro”, que deveriam ser “muito claras”, elas são inexistentes. Sequer o estampido do grito ecoa sob as condições desse sistema. Para se ouvir essa voz, a voz do outro, disse Dussel (1977, p. 65), “é necessário que sejamos ateus do sistema”. Compreender que o sistema glorioso/sacrossanto capitalista usa amplos segmentos religiosos como antro à sua “própria” teologia da prosperidade ou da espiritualidade dizimal perene. Sem essa compreensão torna-se inapropriada qualquer fé, pois sua predição, além de cegar, insensibiliza e impede a percepção da realidade, da dor, do sofrer, do sentir-se-com, do cuidar-se de si e do outro. 

Essencialidade para a vida, de quem?  

O morador piedoso e politicamente livre da Nova Inglaterra é uma espécie de Laocoonte que não faz o mínimo esforço por se livrar das serpentes que o constringem. Mâmon é o seu ídolo, e eles o adoram não só com os seus lábios, mas também com todas as energias do seu corpo e do seu espírito. A seus olhos a terra nada mais é que uma bolsa de dinheiro [valores], e estão plenamente convictos de não terem outra destinação aqui embaixo além de ficar mais ricos do que seus vizinhos. O negócio se apoderou de todos os seus pensamentos, sua única distração consiste na alternância entre os objetos do mesmo. Quando viajam carregam, por assim dizer, suas bugigangas ou sua loja nas costas e não falam de outra coisa além de juros e lucro. Se desviarem os olhos por um instante de seus negócios, isto ocorre tão somente para bisbilhotarem os dos outros. (Marx, 2010, p. 57-58) 

Quando cultos supremos reverberam nos Três Poderes projetos, leis e/ou sentenças4-5-6 que impulsionam ou libertam tais práticas, resta muito pouco a ser dito, porém muito a ser feito. A omissão está instalada. A profissão terá que ser de fé mesmo. Não qualquer fé, mas uma crença malsã, na qual os convertidos, o povo, em êxtase e adoração, permanece piedoso e em extremo sacrifício. Como lembra Marx (2010, p. 57): “a própria proclamação do evangelho e ministério cristão se transformaram em artigo de comércio, e o mercador falido negocia com o evangelho do mesmo modo que o evangelista enriquecido investe em seus negócios”. Assim é como se postam e comportam certas cepas de líderes religiosos nos palácios e cortes. Assim como um vírus, eles são como uma peste mutante que fragiliza a imunidade do corpo social, mais ainda no atual estágio predatório do capitalismo.        

É importante, ainda com Marx (2010, p. 58), lembrar que, para eles, “o dinheiro é o deus zeloso de Israel, diante do qual não pode subsistir nenhum outro. O dinheiro humilha todos os deuses do homem – e os transforma em mercadoria”. Sequer o “falso dilema” indicado pelas direções da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo Monetário Internacional (FMI)7 prevalece diante desta veneração sagrada: “salvar vidas ou salvar empregos”. Para esses líderes religiosos e certas excelências tríplices do Poderes, não é a vida nem o emprego que deve despender grande esforço, mas o sacrifício é para o deus absoluto do dinheiro, do lucro. Para eles, continuo com Marx (2010, p. 58), “o dinheiro é o valor universal de todas as coisas, constituído em função de si mesmo. Em consequência, ele despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, do seu valor singular e próprio”. Com isso, à classe trabalhadora, sua decomposição, o seu suplício e morte são à mamon, à riqueza material ou à cobiça, daí, que “o dinheiro é a essência do trabalho e da existência humanos, alienada do homem; essa essência estranha a ele o domina e ele a cultua” (Idem). 

Voltemos à mística essencialidade. Ela não pode ser vista como uma caricatura de um “mito”, mas como uma das características de um governo que durante o agravamento de sua própria crise, da degradação econômica, da exacerbação descontrolada da desigualdade e da miséria em face da intensificação pandêmica, precisa de um agente para neutralizar a revolta do povo com a política excludente e ultraliberal vigente. Para isso, o uso do convencimento religioso como forma de alienar e inculcar no coletivo a aceitação de seu estado passa pelo processo obscurantista de que a sujeição a todo o sofrimento, privação, indignidade e injustiça, injustificável sob qualquer condição, na verdade, é, de fato, um privilégio, um passaporte para a glória, a salvação daquele que foi ou que for “divinamente” escolhido. 

Disse o jovem Marx (2013, p. 151-152) que “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”.  

Em outras palavras, uma dose narcótica ou alucinógena, para que o povo se entorpeça e não sinta a cruel realidade, o sofrimento com todo tipo de fome ou de dor. Por isso, diz Marx, “a exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusão”. 

Temos que ter em mente, e é isso o que Marx anuncia e que aqui reiteramos: “A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado”, como aquele “que chegou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, em torno de um verdadeiro sol”.  Só a partir daí se compreende que “a religião é apenas um sol ilusório que gira em torno do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo”. Por isso, ao se regulamentar a atividade religiosa como essencial para superar um momento de calamidade pública, que exige transformação da realidade ou da ordem estabelecida, nega-se o que aqui propomos ao se questionar esse ato governamental que viola o sentido místico originário da religião para dissimulá-lo como um ato político relevante. Questionável? Claro que sim, porque perverte o sentido real de qualquer resistência ou ação que possa revelar como é possível, também, subverter a ordem estabelecida a partir da revelação de que “a crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política” (Marx, 2013).  

Num momento de intensificação da opressão humana, da mortificação do corpo e do espírito, das formas mais violentas e vis da repressão e da exploração, é fundamental anular qualquer possibilidade de os sentidos operarem para resistir a essa situação. Dessa maneira, por óbvio, não se trata de uma caricatura pervertida e dissimulada, tampouco de insinuar à incompetência, mas, sim, de a caracterização de uma ação planejada de governo, na qual aparelhar certos segmentos religiosos significa usar da ilusão para neutralizar a resistência dos pobres e miseráveis e, mais ainda, daqueles que dependem do trabalho para viver. E da mesma forma, sabemos bem disso, que desaparelhar e deslegitimar a ação sindical está em mesma direção, assim como anular a função de qualquer ente estruturado ou institucional (ministério público do trabalho, justiça do trabalho, universidades, agentes de vigilância sanitária etc.), cuja finalidade seja fiscalizar, denunciar e/ou impedir esse estado opressor e aviltante da condição humana. Por óbvio, também evidente, é infirmar o papel que exercem de conscientizar o coletivo laboral e prepará-lo para se proteger e combater as formas e personalidades do capital corporificadas nas égides estatais estruturantes do estado de mal-estar social vigente

 

A emergência da essencialidade sindical: riscos, ambientes e limites     

Em que pese sua relevância circunstancial e histórica, parte significativa do sindicalismo tem passado por uma crise de identidade classista, e, com isso, deixa em evidência, até mesmo ao senso comum, a percepção de que há uma parcela quantitativamente considerável da ação sindical que passou a ser tratada como um mero instrumento da política.  

Assim como Paulo Pedroso (2020) disse sobre o sindicalismo português, aqui não é tão diferente: “Hoje, os sindicatos têm reduzida ou nula influência política e os políticos oscilam entre instrumentalizá-los e ignorá-los”. Primeiro, porque boa parte se sujeita a ser um utilitário partidário ou um serventuário de governos a serviço das elites econômicas dominantes. E, o que é pior, não se pode afirmar que seja apenas uma hesitação, pois há entidades criadas e dirigidas com essa exclusiva finalidade; já, outras, infelizmente, vacilantes – entre mandatos sindicais – lideradas nesse sentido.  

Todavia, noutro sentido, quando neutralizar o movimento sindical é ato constitutivo de domínio (político, econômico e social), as elites constituídas orientam as suas estruturas de poder, principalmente o legislativo, para isolar o sindicalismo, aí em sua totalidade, e passa a ignorá-lo radicalmente se suas demandas significarem a síntese de resistência ao status quo ou de um processo transformador da realidade social.  

É oportuno, também, não perder de vista qual é a senda, o ambiente, onde a vanguarda sindical, nesses tempos, tem frequentado ou tentado frequentar. Contudo, trata-se de uma frequência não limitada à crise sanitária relativa à Covid-19. Mas é nela, nessa crise, que é possível e é importante observar, na elaboração de Ronald Rocha (2020), uma tendência (não somente circunstancial) que tem sido a mola mestra desviante do papel sindical guiado por uma visão induzida pelas elites dominantes instadas nos espaços tríplice do poder, ou seja: 

Com a desmobilização das massas em fase de afastamento social e sem uma presença proletária de peso no miolo do enfrentamento, as “soluções” migram para entendimentos e acertos congressuais, judiciais, militares e palacianos, terrenos caracterizados pela maioria e pela hegemonia do capital, em que os partidos à esquerda e as forças populares transitam com poucas chances de cumprirem um papel determinante ou mesmo relevante. (Rocha, 2020)   

Quando se dá conta dessa implicação, é bem provável que outra já tenha sido superada. Trata-se de um limite abissal das relações compostas nesse sistema. Nele se estabelecem fronteiras para delimitação de espaços configurados para servir ao Estado do capital, dito e aclamado como Democrático de Direito.  

“A ideia de um mundo sem fronteiras”, de Achille Mbembe (2019), parece-nos adequada para compreender que, a partir de certo limite, entramos num território que só aceita “certas presenças” se confinadas nos guetos nele criados para desapropriar a condição de quem trabalha ou tem no trabalho seu meio de sobrevivência, até porque  “[…] as fronteiras contemporâneas”, isto é, os espaços do dito Estado Democrático de Direito, capitalista – temos que nos lembrar sempre –, “correm o risco de se tornarem” –e por aqui já se tornaram – “lugares de reforço, reprodução e intensificação da vulnerabilidade para grupos estigmatizados e desrespeitados, para os mais marcados racialmente, cada vez mais dispensáveis”, ou seja, “aqueles que, na era do desamparo neoliberal, pagam o preço mais alto […]”. Uma vulnerabilidade que havia sofrido considerável mutação e que foi, em boa medida, amenizada durante o processo histórico de construção da lógica civilizatória de criação dos direitos fundamentais de proteção social, cujo principal agente dessa transformação foi o sindicalismo. No entanto, desde a virada do século XX para o XXI, os espaços dos Três Poderes têm se tornado, prioritariamente, lugares exclusivos para reforçar, reproduzir e intensificar essa vulnerabilidade, por isso se transformam nos ambientes públicos preferenciais para a sublevação classista e a subversão social à ordem estabelecida e em ascensão. 

 

Considerações finais: a essencialidade sindical 

Apesar das limitações e contradições postas, não se pode perder de vista que das instituições remanescentes ao enfretamento da degradação e precarização irrestrita das condições, direitos e ambientes do trabalho, a sindical praticamente é a única que se mantém ativa em seu ideário. Permanece, apesar de todos e intermináveis ataques, não só dos Três Poderes, como a principal trincheira de defesa da classe trabalhadora e, sem nenhuma dúvida, hoje, mais do que nunca, já é perceptível por estratos importantes das classes trabalhadoras, que a ação sindical se tornou e tem sido mais relevante para o trabalhador do que a dos políticos e do judiciário na relação capital trabalho. Afinal, independentemente do processo inercial de resistência ou de concessão, de parte decisiva do sindicalismo, foram as determinações do executivo e a sustentação ampliada da maioria do legislativo federal, com a conivência quase total do judiciário, que aniquilaram com as principais proteções sociais do trabalho, às quais, nesse momento, poderiam, com certeza, atenuar o impacto pandêmico na vida de quem trabalha. 

Aparentemente é compreensível o porquê de a visão laboral estar se deslocando, basta responder à simples pergunta: qual o papel do legislativo, do executivo, também do judiciário na retirada dos direitos historicamente conquistados pelas classes trabalhadoras por meio do movimento sindical?  

Como possível resposta, de repente, contrapor-se com uma análise comparativa é fundamental para poder destacar o compromisso que se tem ou não em relação ao povo brasileiro, em especial com as classes trabalhadoras. Comparar quais são as instituições que agem pela manutenção e conquista de direitos e quais os destroem e/ou impedem sua conservação. Do contrário, em face dos indicativos até aqui postos, será difícil se pensar uma saída. Um cenário ampliado ou abreviado desse longo ano nos amplia a visão para uma imagem de insegurança e incerteza. Mas, isto é certeiro, não se pode imaginar nada sobre futuro sem minimamente olhar pro passado. Sem isso, tornar-se-á difícil conseguir antever os riscos do desamparo da degradação instituída por esse conjunto estatal (legislativo, executivo e judiciário). Porque foi esse conjunto, ou melhor, sua maioria, que ao dar legalidade aos atos do executivo conferiu à população miserável, faminta, desalentada, desempregada, subutilizada, um viver de bicos legitimados sob a máscara da intermitência, da informalidade no trabalho, um mundo pior, sem dignidade, sem justiça social, portanto com uma imunidade física, mental e social altamente comprometida para a dura travessia que virá.  

 

Referências 

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BRASIL. Decreto n. 10.292, de 25 de março de 2020. Diário Oficial da União, 26 mar. 2020.  

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