Por Ronald Rocha*—
Quando a tarde caía sobre a planura de Brasília na quarta-feira, dia 9/11/2022, o general Paulo Sérgio Nogueira, responsável ministerial pela Defesa, encaminhou “A Sua Excelência o Senhor Ministro Alexandre de Moraes”, via Ofício no 29.126/GM-MD, o esperado Relatório Técnico da Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação pelas Forças Armadas. O material, preparado pela Efasev, tem 63 páginas, inclusive 11 anexos. Respondia, então, às condições criadas pela Resolução TSE no 23.673/2021, que, no afã de isolar ou neutralizar os apelos autogolpistas em direção à caserna, entreabriu a brecha inadequada e polêmica de introduzir, em termos formais, os quartéis na disputa eleitoral.
Obviamente, a recepção mostrou que os sujeitos políticos abordaram o texto conforme os seus interesses políticos. Já no dia seguinte o cnnbrasil.com.br, site pertencente a um conglomerado privado atuante na esfera da comunicação, destacou em chamada que o “Relatório das Forças Armadas não exclui possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas”. Por sua vez, o tse.jus.br, em nome da justiça especializada na questão eleitoral, frisou que o “Relatório das Forças Armadas confirma segurança das urnas” e informou que o “recebeu com satisfação”. Entrementes, as falanges bolsonaristas, pretextando a hipótese inverossímil de ladroeira, pediam, sem qualquer rubor, a intervenção castrense.
A bem da verdade, a fraude real estava estampada na publicação de um texto pelo gov.br na mesma quinta-feira, 10/11/2022. Associando-se a uma das interpretações, o título do portal optou pelo sensacionalismo: Relatório das Forças Armadas não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas. Depois, colocou abaixo, no segundo plano e sem destaque, o título da peça original, uma protocolar expressão: Nota Oficial. Por fim, à guisa de logotipo, introduziu discretamente a palavra “Defesa”, precedida pelo pedaço da bandeira nacional. Trata-se do padrão imposto à coisa oficial, há quatro anos guarnecida pelo verde-amarelo do patriotismo exclusivamente cromático.
O artifício consistiu em conferir um relevo hipertrófico à manchete, anulando a “neutralidade” que, sem dúvida, deixou descontente o editor ávido para bajular o chefe ocasional. Obviamente, o texto que a seguiu foi rebaixado a um detalhe ou à mera complementação de um fato já declinado. A esperteza inaugural, porém, de modo nenhum anuvia o foco sobre a redação, que traz especulações gravíssimas e descabidas. Ficam justificadas, pois, as críticas dirigidas por muitos ao Tribunal Superior Eleitoral: o convite feito às Forças Armadas (FAs), para que participassem de um procedimento estranho às suas competências e atribuições, decerto propiciou certa intromissão indébita e perigosa.
O problema foi parcialmente corrigido por Alexandre de Moraes. O ministro que atualmente preside o TSE, sobre o Relatório asseverou que o assunto “acabou faz tempo”, tentando jogar uma pá de areia sobre o cadáver. Todavia, o precedente ainda continua existindo, vez que teve desdobramentos. Ao novo governo caberá corrigir a distorção, tornando-a passado enterrado e “inexumável”: a cúpula militar precisa eximir-se de se meter nos assuntos que nada possuem de comum com suas funções, para restabelecer um padrão que jamais deveria ter sido violado, mesmo que o regime democrático brasileiro seja restritivo e limitado, além de funcionar sob a hegemonia e o aparato estatal burguês.
A breve mensagem do general Paulo Sérgio Nogueira soa como a montanha que pariu apenas um camundongo. Começa procurando se autojustificar: “Com a finalidade de evitar distorções do conteúdo do relatório enviado, ontem (9.11), ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Ministério da Defesa esclarece que o acurado trabalho da equipe de técnicos militares na fiscalização do sistema eletrônico de votação […]”. Vai, assim, debulhando as suas incoerências, na forma de nem uma coisa nem a outra. Como faltasse prova, nada pôde afirmar em favor do autogolpe tentado pelas hordas em face do resultado: “embora não tenha apontado [..]”. O trecho reluta em assumir a “existência de fraude”.
Entretanto, curvando-se às exigências palacianas, “também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”. No momento em que a voz das urnas é acusada como trapaceira, uma insistência em “aspectos que demandam esclarecimentos” alenta os conspiradores que imploram pela quartelada. Mesmo porque tais elucubrações resumem-se a duas hipóteses – ambas com abusividades abstratas e sem amparo em qualquer indício concreto – sobre o processo encerrado, post festum. Para rememorá-las: “possível risco à segurança na geração dos programas” e “possibilidade da influência de um eventual código malicioso […]”.
As FAs, nas suas operações, usariam tais critérios? O Exército, Marinha e Aeronáutica deixariam tanques, navios e aeronaves nas bases por inexistir a certeza integral de que nenhuma intercorrência indesejada – casual ou prevista em cenários alternativos – aconteceria mesmo que lhes faltassem os indícios? Haveria qualquer iniciativa humana sem algum risco hipotético? Haveria tropas e apetrechos completamente imunes a falhas, como as perfeições utópicas, numênicas ou celestiais? Ou vivem no mundo real, onde à práxis falta o controle completo sobre as condições objetivas, os fatores subjetivos e os resultados? Contestariam uma vitoriosa missão por causa de senões apenas imaginários?
Ademais, alguém deixaria de viajar por haver uma possibilidade intelectual de acidente? Ou, depois de chegar ileso ao destino, exigiria que se repetisse o translado sob a exegese de uma possível chance anterior de morte ou ferimento? Só poderia existir fraude “na geração dos programas” e na “influência de um eventual código malicioso” em caso de um conluio integralmente confidencial e sem indícios pelos inúmeros juízes, auditores, funcionários e órgãos envolvidos. Eis o absurdo filosófico: as pessoas que sustentam semelhante arranjo conspirativo, teoricamente ideal, deveriam ser capazes de apontar o ser que afirmam existir, em vez de clamar para que o TSE prove um não-ser “inindiciado”.
Aparecem com fluidez o “possível” ou a “possibilidade” positivos; porém, a negativa é posta com asserção absoluta: “não é possível assegurar que os programas […] executados nas urnas eletrônicas estão livres de inserções maliciosas”. Como se não bastasse, joga lenha na fogueira: “o Ministério da Defesa solicitou ao TSE, com urgência, a realização de uma investigação técnica sobre o ocorrido na compilação do código-fonte e de uma análise minuciosa dos códigos que efetivamente foram executados […], criando-se […] uma comissão específica de técnicos renomados da sociedade e de técnicos representantes das entidades fiscalizadoras”. “Com urgência”, isto é, antes mesmo da posse?
Mas o estorvo continuou no terceiro dia consecutivo de pronunciamentos públicos, como se partissem de um agrupamento político. No dia 11/11/2022, novo documento foi divulgado, agora como Nota das Forças Armadas ao Povo Brasileiro, assinada pelos comandantes militares. Conforme os autores, “a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira” declinam, como assunto, as “manifestações populares que vêm ocorrendo em inúmeros locais do País”. Ora, fazer avaliações acerca de contenciosos na sociedade civil nunca foi tarefa de órgão militar, exceto nas ditas “repúblicas de bananas”, em que a classe dominante abusa de golpes para manter os seus privilégios e domínios.
Além da impropriedade procedimental, o texto se refere aos “direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente, e à liberdade de locomoção no território nacional”. Na sequência, especifica “por meio da na Lei no 14.197, de 1º de setembro de 2001”, sintomaticamente, a regulamentação de que “Não constitui crime […] a manifestação crítica aos poderes constitucionais”. Sim, os democratas e progressistas são pioneiros em sua defesa, pois a exigiram na luta contra o regime ditatorial-militar imposto em 1964, muitos ao preço de suas vidas.
Todavia, sabem que toda liberdade possui limites. Por exemplo, a prática e a propaganda nazifascistas carecem de cobertura legal, como também o financiamento e a execução de ato golpista contra os direitos fundamentais. Pensando no mau entendedor, para quem a vida e as frases – mais do que meia palavra – são insuficientes, os procuradores do MPF, inclusive o titular especializado nos Direitos do Cidadão, entenderam que movimentos como em Brasília, no QG do Exército, possuem “um caráter antidemocrático, e até mesmo criminoso”, pois “buscam a ruptura da ordem constitucional”, incitam os militares à intervenção e sabotam o voto popular. Ignorá-los seria leniência, e prevaricação.
Em face das confusões artificiais que prejudicam o processo democrático e geram instabilidades institucionais, o que de fato exige “urgência” é a restauração do que as FAs sempre afirmaram prezar, isto é, a hierarquia e a disciplina. Tais “princípios” vão além da mera obediência de subordinados aos superiores na escala das carreiras. Incorporam também o dever de se sujeitarem à Carta Magna e às demais normas derivadas, que formalizam o direito acima das corporações. Portanto, às FAs, contrariamente à redação dos seus comandantes superiores, cabe não a função de “moderadoras” – como no “poder” imperial do Brasil oitocentista –, mas sim a de acatarem ou de respeitarem a Constituição.
*Sociólogo, professor e autor, entre outros livros, do recente Anatomia de um credo (o capital financeiro e o progressismo da produção).
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