Por Philip Pilkington*—

O mundo ocidental enfrenta hoje um sério risco de cair em outra grande depressão. Esse risco veio à tona não por causa de um mau orçamento elaborado por um governo desajeitado, ou mesmo por conta de alguma especulação nefasta que tenha varrido os mercados financeiros. Em lugar disso, veio à tona por causa da deterioração das relações econômicas globais ao ponto de uma guerra total. Para entender por que isso provoca o risco de uma depressão, devemos voltar aos anais da história e lembrar o que desgraçou o mundo na década de 1930.

Houve um tempo em que a pergunta mais importante na economia era: “O que causou a Grande Depressão?” Essa pergunta começou a ser feita durante a própria depressão e continuou sendo feita ao longo de anos – aproximadamente até a década de 1980. Após a crise financeira de 2008 e a chamada Grande Recessão, a questão voltou a borbulhar, mas, provavelmente porque a grande recessão não foi uma grande depressão, aquela pergunta só foi feita por alguns poucos anos.

Economistas, como economistas que são, sempre buscaram uma resposta simples, com as diferentes escolas disputando influência para ter a melhor delas. Os keynesianos atribuíram a depressão à falta de apoio do governo a uma economia em declínio. Os monetaristas alegaram que era devido à má gestão da oferta de dinheiro pelos bancos centrais. Os austríacos alegaram que a depressão foi uma resposta econômica natural a muitos gastos imprudentes na década de 1920 e que deveriam ter sido autorizados a purgar o sistema por inteiro.

A realidade é que essas respostas simples nunca foram convincentes. A Grande Depressão foi um evento histórico, e sempre exigiu uma explicação histórica. Antes que as escolas econômicas se solidificassem em torno de seus vários dogmas, isso era bem conhecido. O próprio Keynes, por exemplo, teria rido das explicações “keynesianas” posteriores da depressão. Ele havia escrito em 1919 um livro intitulado As Consequências Econômicas da Paz, sobre a Conferência de Paz de Paris – na qual atuou como delegado –, onde advertiu que o Tratado de Versalhes levaria a uma depressão.

A depressão, como Keynes previu, surgiu da estrutura econômica desequilibrada que emergiu da Primeira Guerra Mundial. A guerra em escala tão terrível havia devastado por inteiro as relações econômicas, tanto internamente aos países, devido ao redesenho da economia para a produção de guerra, quanto internacionalmente, à medida que os blocos aliados se esfolavam e espantavam o resto do mundo. A coisa sensata a fazer depois da guerra teria sido tentar restaurar as relações econômicas a um certo equilíbrio o mais rápido possível.

Os delegados da Conferência de Paz de Paris fizeram exatamente o oposto. Eles viam o Tratado de Versalhes, parafraseando Clausewitz, como a continuação da guerra por outros meios. As potências aliadas queriam punir a Alemanha, a quem culpavam pela guerra. Sobrecarregaram então o país com uma carga de dívida impossível e logo adiante ocuparam o Ruhr, a região mais produtiva da Alemanha. Os norte-americanos também queriam ser pagos. Os Aliados tinham acumulado dívidas enormes com eles, ao comprarem armamentos durante a guerra. Em vez de assumirem uma posição superior e cancelar a dívida – como os aliados costumavam fazer até então – os norte-americanos exigiam ser pagos, e com taxas de juros relativamente altas.

A década de 1920 foi uma década de dívidas e decadência porque o sistema internacional foi construído sobre uma instável pirâmide de dívidas. Em 1929, tudo desmoronou. Mas esse foi apenas o gatilho. As dívidas que vinham se acumulando eram o espelho das relações econômicas desiguais e insustentáveis entre os países. A Europa era uma economia perdida, que vivia de rolar cada vez mais empréstimos norte-americanos. Quando a pirâmide entrou em colapso, a Europa foi-se com ela.

A depressão de fato se instalou quando o colapso da Europa deu origem ao colapso do comércio global. Entre 1929 e 1933, esse comércio caiu cerca de 30%. A rigor, a Europa tinha se tornado um buraco negro econômico. Todas as transações que realizava com outros países se viram minadas, e por consequência seus problemas econômicos se espalharam como um câncer pela economia global. Esse câncer provou ser especialmente virulento nos Estados Unidos, que na época era o maior parceiro comercial da Europa. Vários países, desesperados para proteger suas economias domésticas, se engajaram em guerras comerciais, impondo tarifas sobre mercadorias estrangeiras. E o comércio global desabou ainda mais.

Hoje vemos dinâmicas muito semelhantes se movendo no mundo que nos cerca. A dívida vem se acumulando nas economias ocidentais há décadas, mas tornou-se particularmente aguda nos últimos três anos. Isso se deve, em primeiro lugar, aos enormes gastos para manter as pessoas alimentadas durante os lockdowns na pandemia e, em segundo lugar, aos custos crescentes – especialmente de energia – produzidos pela guerra na Ucrânia.

E agora parece que estamos prontos para entrar na segunda fase da repetição histórica: o colapso da Europa. O colapso da Europa ocorrerá porque ela não tem mais acesso a energia suficiente para suas necessidades econômicas. No início da crise, quando a Rússia reagiu privando a Europa do gás tão necessário, muitas pessoas – inclusive eu – podiam até mesmo desdenhar a situação, como um desdobramento temporário. Uma vez que a guerra estivesse resolvida, acreditávamos que o gás seria religado. Mas agora os gasodutos do gás russo foram explodidos no que parece ser um ato de sabotagem norte-americana. Não há como voltar para a velha Europa agora.

Com acesso insuficiente à energia, seu preço no continente permanecerá extremamente alto pelos próximos anos. A indústria europeia, para a qual a energia é um insumo fundamental, deixará de ser competitiva. Se os fabricantes europeus quiserem continuar a fazer negócios, terão de aumentar os preços dos seus produtos. Isso tornará tais produtos não competitivos frente àqueles dos Estados Unidos e da China. Esses não estão sofrendo escassez de energia. E isso colocará os fabricantes europeus fora do mercado. A Europa sangrará em empregos-chave. A gangrena se espalhará, pois os futuros funcionários da indústria não terão salários para gastar na economia, e teremos uma depressão no continente.

Alguns podem supor que isso ofereceria uma oportunidade para outros países ocidentais. Muitos pensam que, por exemplo, a indústria europeia viria a se reassentar nos Estados Unidos. É improvável que esse seja o caso. Se a indústria europeia desmoronar, a Europa volta a ser um buraco negro econômico – como aconteceu na década de 1930. O comércio estará minado e seus principais parceiros comerciais sentirão o refluxo. Em suma, se os Estados Unidos tentarem capturar as manufaturas europeias para suas plagas, logo descobrirão que não haverá ninguém para comprar o que elas produzirem.

Consideremos as estatísticas. O escritório do representante comercial dos Estados Unidos estima que, em 2019, os Estados Unidos transacionaram mais de 5,6 trilhões de dólares em comércio – cerca de 26% do PIB. No mesmo ano, o comércio com a União Europeia foi estimado em 1,1 trilhões – cerca de 20% do seu comércio total. Se a Europa afundar no abismo, essa cifra vai se desidratar.

Quais as consequências para os Estados Unidos? Por um lado, as exportações para a Europa cairão e os trabalhadores americanos perderão empregos. Não será uma simples perda cíclica de empregos, como acontece em uma recessão, onde os empregos voltam à medida que os negócios voltam ao normal. Esses empregos estarão perdidos enquanto a Europa trabalhar (ou, mais precisamente, não trabalhar) com custos de energia proibitivamente altos. Eventualmente algumas importações das quais os Estados Unidos dependem da Europa também não poderão ser substituídas pelo comércio com outras nações ou pela produção doméstica. Os Estados Unidos serão forçados a comprar esses bens aos preços europeus mais altos, reduzindo por consequência a renda real dos cidadãos americanos.

Quando a Europa acordar para a confusão em que está metida, provavelmente tentará reagir buscando salvar suas indústrias por meio de tarifas. Em tal situação, a opção menos ruim para a Europa – não para a economia global, mas para a Europa especificamente – será aumentar as tarifas sobre importações, para tornar os produtos internacionais tão caros quanto os produtos domésticos que sofrem com a inflação dos custos de energia. Mais uma vez, estamos de volta à década de 1930, onde, ainda que seja do interesse individual de cada país se envolver numa guerra comercial, não o é do interesse coletivo. Um cenário de pesadelo.

No entanto, há uma diferença fundamental entre o mundo das décadas de 1920 e 1930 e o de hoje. No período entre guerras, não havia um bloco econômico rival real para o Ocidente. A Rússia era um pequeno ator, a China era uma economia agrícola, e o que hoje chamamos de “economias em desenvolvimento” (Brasil, Índia, África do Sul etc.) era tudo menos “em desenvolvimento”. Esse não é mais o caso. Na esteira da guerra na Ucrânia, o mundo em desenvolvimento começou a se unir, como a aliança BRICS+. Esta aliança parece ter como objetivo a dissociação da economia ocidental tanto quanto possível.

O BRICS+ é uma força a ser reconhecida. Tem amplo acesso à energia – com a Rússia e a Arábia Saudita sendo dois dos maiores produtores de petróleo do mundo. Tem acesso a recursos essenciais – o Brasil é o principal produtor de minério de ferro do mundo. E tem uma potência fabril pujante o suficiente para transformar as coisas do solo em coisas na prateleira: a China.

Não está claro se a aliança BRICS+ será derrubada junto com o Ocidente, se este cair em depressão. Não sofre os mesmos problemas com dívidas, por exemplo. Tampouco grande parte da aliança BRICS+ enfrenta um colapso industrial iminente por conta de preços de energia inacreditavelmente altos, como a Europa está hoje. Além de algum potencial para sérios conflitos geopolíticos – na Ucrânia e em Taiwan – o BRICS+ parece ter um atestado de saúde econômica relativamente limpo e muito espaço para crescer no futuro.

As decisões que levaram à grande guerra energética europeia de 2022 provavelmente entrarão para a história como alguns dos maiores erros de cálculo econômico e geopolítico da história da humanidade. Eles se juntarão ao Tratado de Versalhes e às guerras tarifárias da década de 1930 na cesta de párias da política, que as gerações futuras serão ensinadas a evitar a todo custo. Como os europeus chegamos aqui? Como essas más decisões foram tomadas em nosso nome? Isso eu deixo para os futuros historiadores resolverem, provavelmente quando os arquivos forem abertos.

*Philip Pilkington é economista. Autor, entre outros livros de The Reformation in Economics (Palgrave Macmilan).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel. 

Publicado originalmente em The Critic e retirado do site A Terra é Redonda.

 

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