Nenhuma dúvida pode restar sobre a vontade autogolpista que habita o cerne do projeto extremo-direitista e impregna suas operações, mesmo quando mascaradas por recuos e refreamentos passageiros, conforme as nuances da conjuntura e oscilações psicológicas do chefe palaciano. Tais momentos se deram, notadamente, quando a resistência democrática foi mais forte, na sociedade civil e no interior de órgãos estatais. Entretanto, as tentativas de flexão careceram sempre de credibilidade, por serem, sejam insinceras, sejam efêmeras, sejam meros detalhes de uma lógica, irrefutavelmente, autocrática.

O episódio mais recente ocorreu na entrevista organizada junto a sete canais de YouTube, relacionados ao público evangélico e selecionados a dedo por transitarem na juventude. No vídeo, assim transmitido para cerca de 500 mil pessoas, Bolsonaro – treinado, obviamente, pelos marqueteiros da sua campanha – revelou-se contido, mas sem convicção. Afirmou que se arrepende pelas palavras e declarações, mas tentou mitigá-las, dizendo que foram causadas pela sinceridade virtuosa e pelas provocações dos profissionais que labutam na imprensa: “batiam na tecla o tempo todo e queriam me tirar do sério”.

Nesse jogo de vai e vem, procurando neutralizar em poucas horas os seus anos de inconfidências ultraconservadoras e discriminatórias, que dispensam referências específicas porque já fixados na memória nacional, o primeiro mandatário aborda o ponto nevrálgico, minuciosamente preparado para diminuir a superlativa rejeição: “Se essa for a vontade de Deus, eu continuo; se não for a gente passa aí a faixa”. Entrementes, inclinava o rosto para baixo, evitava olhar direto na câmera e falava em tom hesitante, já demonstrando claramente que os vocábulos brigavam com as suas concepções mais recônditas.

Logo depois, na capital britânica, o padrão comportamental se restabeleceu. Como em O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Stevenson, a outra personalidade aflorou. Em menos de uma semana, o candidato verbalizou exatamente o contrário do que havia prometido: “se nós não ganharmos no primeiro turno, algo de anormal aconteceu no TSE”. Continuando, repetiu: “se eu tiver menos de 60% dos votos, algo de anormal aconteceu no TSE”. De modo semelhante à urdidura do romance gótico, em que o “médico” é vencido pelo “monstro”, na trama reacionária o protofascismo igualmente prevalece.

O transtorno de personalidade múltipla torna inútil qualquer manobra tática, pondo a perder as iniciativas demagógicas de véspera eleitoral, uma de cada vez. As pesquisas retratam o fenômeno. Em um dia, o “democrata” sussurra para indecisos. Nos seguintes, com a sucessão de rompantes, o falangista grita para sua horda fanática. Quem acredita em tamanho cinismo? Eis porque as estatísticas expõem a descrença na esquizofrenia política do retrocesso. Assim vai andando a frente ampla, em sua luta para eleger Lula-Alckmin em breve, com a maior margem possível ou, eventualmente, na segunda rodada.

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