O portal Vereda Popular continua publicando a Linha Sindical do Partido da Refundação Comunista (PRC), aprovada no Ativo Nacional Sindical e depois ratificada pelo Comitê Central. Segue o Capítulo II.
II – A substância, o caráter e o papel do movimento sindical
Ao contrário do que acontece com os trabalhadores individuais ou pequeno-burgueses, que atuam isoladamente – mantendo a sua autonomia de estabelecer o fim e o controle da atividade laboral –, no modo de produção caracteristicamente capitalista a teleologia se concentra nas mãos, no cérebro e na vontade dos empresários. Já o proletariado, agente efetivo do processo criador, que lhe acrescenta valor, vê-se – no ato de concretizar nos bens as potências intelectuais e cognitivas de sujeito coletivo – despojado da prerrogativa de escolher o que, com que, por que e para quem produzir. Assim, o resultado domina a potência humana que o gerou, reforçando a sua condição de mera mercadoria. Eis a condição que se apresenta ao assalariado para se reproduzir como força de trabalho.
Tal “sortilégio” se ancora em classes que estão condenadas à unidade na contradição e que expressam, na dinâmica da vida cotidiana, interesses inconciliáveis: a burguesia, buscando a valorização de seu capital, e o proletariado, propugnando melhorias na remuneração de sua força laboral e garantias correlatas. Esse antagonismo imanente, além das vontades em jogo, dispensa imputações morais de sentido. As angulações e preferências dos observadores que analisam ou simplesmente percebem a realidade social mudam, mas jamais serão neutras. Na cognição e na ação, duas óticas essenciais se digladiam dentro da aporia irrecorrível na ordem burguesa: a do trabalho e a do capital, com variações à direita ou à esquerda, em gradiente que vai da conciliação ao conflito.
Decerto, tal binômio é apenas uma dimensão do complexo societário do capital, que abarca também outras classes e camadas. Mas constitui o pilar básico da formação econômico-social, porquanto a pequena burguesia – com suas diferentes camadas, na cidade e no campo – só pode habitar nos poros da produção mercantil e da prestação de serviços, constituindo, ao lado de semiproletários, lumpens e trabalhadores desempregados ou “supérfluos”, o terreno periférico à contradição fundamental. Em consequência, sua grande importância política se associa à impotência de estribar projetos alternativos à ordem vigente: como só lhe restam formas ideológicas oscilantes entre os polos antagônicos do conflito social, suas posturas são acessórias ou cativas, mesmo quando adotam vieses extremos e sectários.
Sobretudo no Brasil, país com extensão continental e atravessado por enormes diferenças, a começar por sua formação econômico-social complexa, a compreensão da trama evolvente nos subterrâneos da sociedade pressupõe que se decifrem seus nexos e articulações reais. Se bem exploradas e analisadas, as manifestações vivas do cotidiano poderão indicar os elementos da estrutura social e da luta de classes operantes. O procedimento de partir do efetivamente existente, extraindo-lhe as forças atuantes e formulando conceitos que os expressem, auxilia os movimentos do mundo do trabalho, especialmente os ativistas sindicais, a evitar as visões ilusórias, deturpadas, superficiais e até mesmo conspirativas sobre os acontecimentos, que permeiam os olhares do senso comum.
A história do movimento proletário é a crônica do combate à exploração e à opressão nos últimos três séculos. Mesmo nos períodos de calmaria, o ator principal encontrou meios para sair da passividade. Em muitas conjunturas, formas de luta mais ou menos radicais se impuseram, expressando, nem sempre de forma consciente, a intuição de se rebelar contra as condições infames em que ocorre a sua sobrevivência e a reprodução do trabalho. O impulso espontâneo contra a mais-valia absoluta gerou formas antediluvianas de resistência – da revolta contra máquinas até sociedades filantrópicas de ajuda mútua – que, aos poucos, foram suplantadas pela constituição de entidades capazes de organizarem as massas no embate por suas reivindicações mais sentidas. Surgiram os sindicatos e também os partidos políticos.
Os sindicatos se estruturam como instituições de massa representativas de todos os assalariados pertencentes a uma categoria econômica, sem exceção, dentro de certo contorno territorial, estendendo-se a sua base social para além do conjunto formado pelos filiados formais. Sua coluna vertebral de atuação está na abordagem prática da contradição trabalho versus capital, no concernente à resistência contra a exploração e a opressão, como acontece nas lutas por remuneração e condições laborais adequadas e melhores. Tais entidades constituem, pois, veículos por excelência para que os proletários elevem sua compreensão a respeito das causas do sobretrabalho, anteponham limites à extração ou distribuição de mais-valia, construam uma organização forte e se preparem para novos combates. As mesmas características se encontram nas instituições que, por causa de injunções legais, são obrigadas a adotarem a forma de associação profissional, como representações de praças e soldados.
Os sindicatos se distinguem de outras organizações de massas em aspectos fundamentais. O movimento popular-comunitário – de bairros, vilas, favelas, conjuntos residenciais e áreas ocupadas por famílias sem-teto – gera entidades representativas de contorno genérico, pois têm base social diversificada, exprimindo a composição da periferia econômico-social das cidades: assalariados, semiproletários, desempregados, donas de casa, jovens, pequeno-burgueses e até empresários subalternos. Por seu turno, as instituições temáticas, sem limite espacial ou de classe, encerram conformação ainda mais indiferenciada no plano social. Já os diretórios e grêmios estudantis representam alunos de vários níveis e redes, independentemente de sua extração social.
Tais entidades, ainda que de massas, organizam segmentos exteriores à lógica da produção e do serviço associado à contradição trabalho-capital, que é o fulcro da organização sindical. Embora sejam instituições de luta popular, tornar-se-ia postiço e danoso tentar fazer com que assumissem funções incompatíveis com seus propósitos e sua composição social multifacetada. O esforço de iniciativa comum, em torno de objetivos determinados e da solidariedade mútua, sempre garante a amplitude necessária para alcançar vitórias. Contudo, as particularidades – na esfera da organização e da atuação – precisam ser preservadas. Ignorá-las equivaleria, também, a diluir os sindicatos e a luta de classes, bem como, na outra ponta, criar ilusões substitutivas à necessária frente de unidade popular.
A forma clássica e mais importante da luta sindical é a greve, de ocorrência tão antiga quanto a própria existência da moderna burguesia, pois se frutifica e se interpõe na produção e na circulação regidas pelo capital, interrompendo a entrega da mercadoria-trabalho, paralisando a valorização, freando a oferta de serviços, obstaculizando a comercialização e instaurando a negociação associada para rever o contrato anterior. Em sua deflagração, o caráter social do trabalho impregna também a troca no comércio, violando a apropriação privada do sobreproduto, cuja redistribuição é rediscutida e, em caso de vitória, refeita. Eis por que tal meio de combate ocupa o centro das formulações teóricas sobre o direito laboral. Todavia, a greve geral é uma forma de luta, como tal sujeita à conjuntura, à correlação de forças, ao nível de consciência, ao patamar de preparação e ao objetivo intencionado, jamais uma finalidade permanente, contínua e mítica, à revelia das condições concretas.
O temor e o ódio do patronato ou do Estado ao movimento paredista se direcionam ao ato proletário capaz de alterar o equilíbrio estabelecido na taxa de exploração e na hierarquia da empresa, como também de colocar em xeque o individualismo imanente ao conceito burguês de pessoa – sujeito isolado que impregna com sua vontade a mercadoria –, já enfraquecido ao se instaurar o dissídio judicial. A reação do Estado burguês o confirma em sua tipicidade: procura impor ao coletivo a personalização da resistência, já que provoca intencionalmente as tensões ou rupturas nas negociações, confiando nas leis e nos procedimentos judiciais, parâmetros da coerção que no limite garante a proteção ao capital e a marginalização do movimento sindical, exatamente no seu momento de maior expressão e força conjunta.
Além do instrumento grevista, cuja radicalidade e complexidade desaconselham improvisações, os sindicatos utilizam variadas formas de luta, mas sempre fundadas em avaliações criteriosas sobre as condições objetivas e subjetivas de preparação, condução e desfecho. Ademais, seus combates podem assumir conteúdos políticos, seja como fruto da evolução espontânea de pleitos econômicos, seja como resposta direta a problemas surgidos em sua relação com as imposições globais da classe burguesa ou com as instâncias do Estado. Se, de fato, as entidades representativas de massas têm como função básica o zelo pelos interesses específicos de sua categoria perante o patronato, é também verdade que a experiência histórica mostrou movimentos reivindicatórios tantas vezes interpenetrados com assuntos políticos e até mesmo entrelaçados com tal esfera desde o nascedouro.
Caso surja, em campanhas salariais, uma pressão externa – como a intransigência das autoridades públicas, a promulgação de leis antioperárias, a repressão estatal e a sentença abusiva na Justiça do Trabalho –, o conflito se tornará político. O mesmo caráter, ainda que mediado, apresentarão a solidariedade a outras categorias, o protesto contra o cerceamento à livre manifestação, a exigência de mudanças na lei e a intervenção em processo eleitoral, tanto mais quanto a mobilização for geral e pleitear reformas no regime institucional, como a ampliação dos direitos democráticos da população. Tais exigências, que são suprapartidárias, podem sensibilizar vastos contingentes de massas, favorecer o acúmulo de forças e até, conforme a conjuntura, facilitar o trânsito da defensiva à ofensiva ou a radicalização das lutas.
O ingresso dos sindicatos nas disputas eleitorais, parlamentares e jurídicas por meio exclusivo da marcha ascensional, empírica e autárquica do movimento espontâneo, nada pode gerar além da mimetização da ideologia sensível à sociedade política do capital, rebaixando-os a mera massa de manobras dirigida por “benfeitores” de ocasião, quando não por representantes burgueses mais conservadores. Somente a luta de classes permitirá que o proletariado problematize a exploração e a dominação que o subordina na sociedade alienada. Em Que Fazer?, Lênin sublinhou que “a consciência das massas operárias não poderá ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não aprendem a aproveitar os fatos e acontecimentos políticos concretos da atualidade ardente para observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida intelectual, moral, política […]; para bem conhecer-se, a classe operária deve ter uma consciência precisa das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea, conhecimento […] fundado na experiência da vida política”.
Marx já havia destacado o papel central do proletariado. “A grande indústria concentra em um só lugar uma multidão de pessoas desconhecidas entre si. A concorrência divide seus interesses. Mas a defesa dos salários, seu interesse comum diante do patrão, as une em uma ideia comum de resistência, de coalizão […]. As coalizões, a princípio isoladas, organizam-se em grupos, e, perante o capital sempre unido, manter essa associação vêm a ser mais importante que a defesa dos salários […]. Nessa luta – verdadeira guerra civil – reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários à batalha futura.” Hoje, o caráter social da produção e a concentração de capitais integram os diferentes trabalhos concretos e refundem seus frutos em bens compostos.
Os desdobramentos da reivindicação econômica em formas superiores de luta ou a eclosão direta de conflitos políticos se manifestam como contingências, imanentes ao caráter aproximativo do domínio humano sobre a realidade. Embora imprevisíveis no conjunto de seus elementos, são acontecimentos ricos, que evidenciam facetas despercebidas e formam a consciência das massas. Nunca um evento pode ser antecipado em seus mínimos detalhes: por mais elaborada que seja uma teleologia, sempre emergirão elementos inesperados. A dialética intrínseca do movimento impõe aos sindicalistas os limites próprios do planejamento: ao desfecharem e conduzirem a luta em uma circunstância dada, jamais terão condições de conhecer e dominar, a priori, todos os fatores objetivos e subjetivos intervenientes.
Todavia, é possível e necessário captar a essência objetiva do movimento sindical, que determina seus elementos, contornos, papéis e tarefas permanentes, imunes às flutuações conjunturais, por mais casuais que pareçam, e ao mero desejo de indivíduos ou agrupamentos, por mais talentosos e influentes que sejam. Reconhecer e valorizar as legítimas iniciativas políticas das entidades representativas não significa confundi-las com posturas e ações caracteristicamente partidárias, que pressupõem uma doutrina, explícita ou embutida, assumida ou perceptível em suas práticas, mesmo que ensejadas e desfechadas por agremiações oportunistas e fisiológicas, cujos membros também se diferenciam das pessoas exclusivamente componentes da categoria econômica. Eis por que Engels observou, em 1881, que “Ao lado ou acima dos sindicatos de cada ramo da indústria surgirá uma união geral, uma organização política da classe operária no seu conjunto”.
Um partido digno de intitular-se comunista conta com uma estratégia, uma tática geral, políticas conjunturais e formas singulares de organização, elaborações adequadas ao objetivo de superação revolucionária do Estado burguês, de ascensão ao poder político e de trânsito à sociedade humano-universal. Portanto, seus militantes partilham uma fisionomia político-ideológica e uma doutrina singulares. Por seu turno, um partido conservador, mesmo pragmático, compromissado ou insatisfeito com governos, defende o Estado e a exploração capitalista, mais ou menos intensificada, atenuada ou reformada. O mesmo enfoque expõe os traços peculiares de formações intermediárias ou terceiristas, como agremiações socialdemocratas, social-liberais e de massas, inclusive as suas nuances e seus grupos internos.
Ao contrário do que acontece no ambiente partidário, por opção de seus membros e imposição de suas lógicas, não prevalecem como critério de participação no sindicato quaisquer alinhamentos filosófico, ideológico, doutrinário ou político. Ainda que todas as opiniões sejam importantes em fóruns apropriados – correntes de opinião e debates teóricos –, nas entidades representativas do proletariado as discussões, as filiações, as mobilizações, as propagandas e as disputas se referenciam nas lutas da categoria e iniciativas unitárias mais amplas. Logo, os militantes dos partidos políticos têm espaço na atividade sindical, desde que respeitem suas características, seus meios participativos e seus fóruns decisórios próprios, bem como partilhem as avaliações e escolhas coletivas.
Acima de tudo, os sindicatos devem ser preservados, em vez de aparelhados ou transformados em correia de transmissão heteronômica. A política partidária não é a única forma de fazer política. A incompreensão dessa questão nuclear, em especial na contemporaneidade, acarreta dois grandes malefícios: em uma ponta, rebaixa a atividade partidária pelo imediatismo pragmático, inibindo a sua potência transformadora e a diluindo nas instâncias de massas; na outra, suprime a função representativa genérica das organizações de massas, que passam a ser de apenas uma parte da categoria. Longe de qualquer apologia ao apoliticismo economicista ou semianarquista, a crítica deve sublinhar que o confessionalismo prolifera em articulação com o pluralismo, abduzindo as potências do movimento e o colocando à mercê das políticas burguesas.
Eis por que, ao ignorar os fundamentos ontológicos dos sindicatos, considerando-os como naturalmente inclinados em direção a opções pós-capitalistas, o conceito de “sindicalismo revolucionário” breca sua identificação com toda a classe, além de substituir o Partido. A demarcação com tal postulado implica, para o marxismo, em contraste com o reformismo, a formulação de uma linha revolucionária para o movimento sindical, transpondo para o patamar da política partidária o atributo que o anarcossindicalismo e as correntes doutrinaristas de ultraesquerda imaginam pertencer, por definição, ao ser social empírico. Assim, torna-se preciso levar em conta as características dos períodos e conjunturas: por exemplo, lutar em condição desfavorável, sob a ofensiva da reação, é muito diferente que pugnar em uma situação revolucionária.
Nesse quadro, o método democrático renova toda a sua importância e delicadeza como traço inelutável da prática sindical. As instituições de todos os trabalhadores, caso queiram reforçar-se, estão condenadas a se contrapor à rotina elitista, bem como instadas a compreender e combater os fundamentos sociais e as posições que minam a unicidade da representação e a unidade em torno de uma plataforma mínima de ação, a ser construída com base na história e renovada em cada situação, conforme o desenvolvimento da luta de classes. As entidades não têm o direito de restringir a participação de nenhum indivíduo pertencente à sua base, por motivos estranhos ao seu caráter, intencionalmente ou como consequência de concepções estreitas e sectárias.
Ademais, o sindicato precisa ser permeável e aberto a críticas e sugestões, sempre visando a melhorar sua atuação, acolher as diferenças e se fazer respeitado pela categoria que representa. Às bases devem ser garantidas e estimuladas, não só a participação nos eventos e ações, como também as condições suficientes para sua aproximação e seu protagonismo nas diversas esferas democrático-decisórias, como assembleias, reuniões setoriais, organizações por local de trabalho e representações várias. Trata-se de enfrentar uma das maiores debilidades que hoje solapam as entidades: o desinteresse em mobilizar e integrar o conjunto da categoria, seja por concepção ideológica estruturada, seja por submissão ao senso comum, seja por motivações de controle mesquinho.
Hoje, as mudanças na estrutura produtiva, administrativa e gerencial, com fortes alterações nos padrões tecnológicos e organizacionais, criam condições para que a burguesia tente moldar a subjetividade proletária, convidando seus empregados a serem filhos da “grande família” empresarial, em que todos seriam sujeitos, opinariam e realizariam tarefas “flexíveis”. Todavia, permanece o despotismo patronal, frequentemente imediato, especialmente em conjunturas de crise econômica. Ressalvando-se a importância das reflexões e ações gerais, somente a militância cotidiana, no local de trabalho e em torno das questões mais sensíveis das categorias, gera as experiências e confianças mútuas necessárias à reconstituição das lutas, com vistas a novo fluxo ascendente.
Os desafios são por demais instigantes. Em face de questões persistentes, antigas e complexas, bem como de outras emergentes, o ativismo superficial é medíocre e impotente. Os militantes sindicais não têm alternativa de saída produtiva, senão a de se debruçarem sobre os velhos e novos nexos causais imanentes à materialidade inerente ao mundo do trabalho. Para tanto, urge conhecer e vivenciar o cotidiano das categorias, captar as contradições mais evidentes, tratá-las de modo adequado e mobilizar os proletários em torno das questões candentes que os afetam. As diretorias não podem ficar na dependência de “especialistas” externos. Precisam preparar-se como quadros dirigentes, assumir compromissos, testá-los na prática cotidiana e avançar nas lutas.